"Fascistas e democratas usam as mesmas togas", afirma juiz

Ao homenagear Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, que se matou no último dia 2, Lédio Rosa de Andrade, desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e professor da UFSC, fez um discurso emocionado e com duras críticas ao Judiciário. “Só a tragédia pode chamar a atenção de uma população que vive uma histeria coletiva. Só a tragédia".

Lédio Rosa de Andrade - Reprodução

"Como desembargador, tenho vergonha. Porcos e homens se confundem. Fascistas e democratas usam as mesmas togas", lamenta.

Leia o discurso:

Magnífica reitora, senhor governador do Estado, família UFSC, parentes do Juninho, amigos. Senhoras e senhores. Tentarei, em um esforço muito grande, manter o mínimo de racionalidade, porque confesso que, neste momento, o sentimento, a emoção me toma.

Uma tristeza profunda me corrói por dentro. Uma raiva forte. Uma indignação maior ainda, diz que nós temos que ir adiante, que não podemos parar, porque o momento que o nosso país passa é grave, é perigoso e precisa de ação.

Accioly, Juninho, que saudade da Rua Santos Dummont, onde morávamos quando crianças, onde passamos nossa juventude, onde jogávamos bola na rua e xadrez dentro de casa. Tênis de mesa em dias de chuva. Onde cometemos nossos primeiros crimes, temos que confessar. Pois ali furtamos algumas goiabas. Também rosas para as nossas namoradas. Todos nós juntos. Você era pequeno, Juninho. O Accioly um pouco mais adulto. E eu e o Cao da mesma idade.

Frequentamos o colégio Neon. Brincamos, brigamos e estudamos. Porque éramos de família humilde, só tínhamos a nós e a nossa capacidade. E assim seguimos adiante. Chegamos a esta universidade como alunos, alunos de Direito. E enfrentamos a ditadura militar. A arma no governo. O reitor aqui há pouco falou, administrava, tendo que aturar na marra, uma sala secreta dos agentes da polícia, que nos fotografavam, que nos espionavam, que poderiam nos prender se escutássemos um Chico Buarque ou um Vandré.

E que ironia a história e o destino do que foi naquele hall da reitoria que eu, o Cao e tantos outros líderes estudantis, como o Adolfo, já falecido (…) fizemos as maiores assembleias do tempo da ditadura. Milhares e milhares de alunos sentavam no chão e nós usávamos a escala como palanque, para denunciar a prepotência e defender a autonomia da universidade pública e gratuita. Nós sabíamos que não estávamos em um Estado Democrático de Direito. Nós sabíamos que poderíamos ser presos. Nós sabíamos que tivemos colegas e amigos presos, torturados e alguns assassinados, porque aquele era o regime que nos administrava. Mas não esmorecemos.

Fizemos a nossa luta e ganhamos, porque acabamos com a ditadura. Ela terminou. A vida seguiu. O Cao foi para Brasília acompanhar o combatente senador Nelson Wedekin, voltou e terminou o seu curso de Direito. Fez mestrado, fez doutorado, e eu tive a honra de estar nas duas bancas dele.

Discutíamos, conversávamos, estudávamos, pesquisávamos, porque sempre fomos contra o fundamentalismo. Sempre fomos contra os argumentos fáceis, néscios, cheios de verdades, mas roucos, vazios, formulas vazias.

Trocamos de lado: de estudantes, passamos a professores desta casa. E como o Cao se orgulhava disso. Como ele gostava disso. Como ele tinha nisto a sua vida. E da vida humilde, da Rua Santos Dummont, do nosso querido Tubarão, construiu outra vida, típica de professor aqui em Florianópolis. Apartamento de professor, nem carro tinha. Vida de professor. Prática de professor. E foi nessas condições que chegou a seu maior sonho: a reitoria desta universidade. Claro que todos nós temos vaidade.

Todos nós temos um ego e precisamos dele para viver o dia a dia. É claro que chegar a reitor tem um pouco de ambição, de todos que já chegaram. Mas, acima de tudo, acima da ambição, o Cao tinha a vocação. Tinha o desejo pelo ensino. Tinha vontade de fazer da UFSC o que estava fazendo com a sua equipe, uma das maiores universidades desse país.

E vejam que coisa, senhoras e senhores. A ditadura não nos prendeu. E nós achávamos que tínhamos a derrubado. Cometemos um erro, porque os ditadores de espírito nunca morrem. Esses estão sempre aí. Estão aqui, nesse momento, alguns deles, esperando a hora de voltar. Essa luta não acaba. Nunca acaba esta luta. E se nós descansarmos, eles voltam. Eles voltam.

Quando se fala em Estado Democrático de Direito, nós estamos falando de muito sangue, de muita guerra, de conquistas feitas com o suor e o esforço dos nossos antepassados. Quando se fala em ampla defesa, em Estado Democrático de Direito e contraditório, isso não é brincadeira. Isso não é brincadeira.

Esses néscios que estão por aí dizendo bobagem não sabem o que é uma ditadura. Não sabem que eles serão os primeiros a clamarem por estado de direito daqui a pouco. E foi dentro dessas condições que o Cao se deparou com a mais perfeita ditadura, que é a ditadura feita em nome da moral, que é a ditadura feita em nome da justiça, que é a ditadura feita em nome da democracia.

É claro que um Estado Democrático de Direito precisa de imprensa livre. É claro que um Estado Democrático de Direito precisa de independência do Judiciário. Que o Judiciário e os juízes julguem livremente, sem pressão. Só que também é claro que essas instituições absolutamente importantes para a democracia a cada dia, a cada momento são deturpadas.

Em nome da liberdade de imprensa, se exerce a liberdade de empresa privada para impor desejos privados à coletividade. Em nome da liberdade de julgar, neofascistas humilham, destroem, matam. Como professor de criminologia, eu levei uma vez meus alunos à penitenciária daqui. E me levaram no setor de segurança máxima, onde o Cao passou uma noite. Eu tive uma crise de pânico pela opressão arquitetônica. Não entrei. Saí correndo lá de dentro. E fiquei a imaginar… Eu estava lá por livre e espontânea vontade, com meus alunos. Eu fiquei a pensar, “E se tivessem tirado a minha roupa? E se tivessem me feito uma revista intima? E se tivessem me acorrentado nos pés e nas mãos?”. Eu morreria aquela noite. Eu não sairia de lá vivo. E o Cao saiu. E o Cao saiu.

O Cao, que sempre lutou com flores na mão contra canhões, que sempre usou a palavra contra a insensatez, que sempre conversou e que nunca causou mal a ninguém. Acabou encontrando a pior das ditaduras lhe oprimindo. Acabou encontrando aquilo que nenhum de nós quer passar. E eu termino falando: o Cao sempre foi um professor e morreu como professor nos dando a última lição. A última lição do nosso mestre foi de que contra a mais absoluta injustiça, que contra o terrorismo de Estado, só a tragédia pode chamar a atenção de uma população que vive uma histeria coletiva. Só a tragédia.

Essa noite, com dificuldade de dormir, eu fiquei a pensar quanto a humanidade errou e não parou Hitler no tempo certo. Quanto a humanidade errou e não parou Mussolini no tempo certo. E fiquei pensando… Eles estão de volta.

Será que nós vamos errar de novo e vamos deixar eles tomarem o poder? Para nós termos que trocar as flores por armas e fazer outra guerra para derrubá-los? Será que já não basta? Será que já não é hora de todos nós nos unirmos e exigirmos consequências? Se a família assim quiser. De irmos até as últimas consequências, pedindo que sejam apurados esses atos de arbitrariedade? Já não é hora?

Bertolt Brecht já nos disse. Já estão levando não só os vizinhos, já estão levando nossos amigos próximos, e vão nos levar. A vida é isso, companheiros. É luta permanente. E a democracia não permite descanso. Não permite descanso.

Eu, hoje, como professor da UFSC, sou uma pessoa que tem orgulho e alegria. Como desembargador, tenho vergonha. Porcos e homens se confundem. Fascistas e democratas usam as mesmas togas.

Eles estão de volta, temos que pará-los. Vamos derrubá-los novamente.

Obrigado".