Euclides da Cunha e Canudos: o povo irrompe na história

 A obra mais popular e, com justiça, mais importante escrita por um estudioso da história do Brasil no início do século 20 foi Os Sertões, de Euclides da Cunha, que faz um relato humano, científico e dramático da luta popular dirigida por Antonio Conselheiro em Canudos, no interior da Bahia.

Por José Carlos Ruy

Guerra de Canudos - Flavio de Barros/Museu da República

É a primeira obra que traz a luta do povo para o centro do relato histórico. Pioneirismo que resumiu, melhor do qualquer outro da época, as contradições e ambigüidades da concepção da história que se forjava. inspirada na ciência européia pouco adequada para dar conta das realidades sociais, históricas e humanas que os autores brasileiros enfrentavam e os escritores estudavam.

Republicano radical, formado na Escola Militar, sob influência direta do positivismo de Benjamin Constant, para Euclides da Cunha o caráter científico da história decorria da incorporação das ciências sociais da época.

Assim, ele foi radical ao apoiar na geografia o estudo da história, inspirando-se diretamente nos escritos do alemão Friedrich Ratzel, o grande geógrafo do final do século 19 e um dos pais da geopolítica. Nele Euclides encontrou a inspiração para o próprio plano de Os Sertões e sua valorização do meio geográfico e da terra onde ocorria a luta. Euclides aceitou também os preconceitos racistas vigentes e amparou no evolucionismo e no darwinismo social a crença na desigualdade racial entre os homens. Assim, o determinismo climático, geográfico e racial estavam na base de sua concepção de história.

Nesta homenagem à ciência então dominante, ele mal escondeu a contradição entre o sentimento de um homem de espírito que viu seu povo em ação, sentimento registrado nas anotações do Diário de uma Expedição, onde registrou as informações usadas depois em sua obra prima, Os Sertões. Anotações que foram relativizadas, na obra maior, pela reflexão do cientista influenciado pelas idéias racistas e limitadas da época, levando-o a adjetivar os sertanejos como racialmente inferiores.


25º Batalhão de Infantaria na trincheira durante a Guerra de Canudos

Mas o sentimento foi mais forte que a reflexão alienada, e surgiu, aqui e ali, em Os Sertões, testemunhos notáveis do valor daquele sertanejo que, disse, era, “antes de tudo, um forte”. Euclides justificou a revolta liderada por Antônio Conselheiro dizendo que "o sertanejo defendia o lar invadido e nada mais". Registrou, com grande simpatia e admiração épica, a ação dos revoltosos:

E escreveu, no final de Os Sertões: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando cairam os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram apenas quatro: um velho, dois homens feitos e uma criança na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”.

Em Os Sertões o povo irrompeu definitivamente no cenário da historiografia brasileira e, com ele, a velho relato histórico, voltado para a ação da classe dominante, justificador de governos e da razão do Estado, voltada ao litoral, foi definitivamente ultrapassado.

Na obra de Euclides da Cunha, diz o historiador José Honório Rodrigues, "os excessos científicos gastos pelo tempo e pela própria evolução científica" valem menos que "a simples e nua luta". Euclides da Cunha assinala o início de outra etapa na historiografia, na qual o ideal "era ver nossa história à luz de sua própria substância, a evolução do seu povo, sua solidariedade interna, a marcha de seu progresso, os obstáculos que desde a Colônia se puseram às suas conquistas e seus triunfos, e o muito que ainda resta fazer".

Ao contar a épica de Canudos, ao relatar a luta imensa daqueles sertanejos quealmejavam uma vida melhor e mais livre, Euclides da Cunha trouxe, em sua escrita, a luta do povo para o centro do relato da história. História de gente que tem a ousadia de lutar e a coragem de não se render.