O abalo sísmico d'Os Sertões de Euclides da Cunha

Após o fim da Guerra de Canudos, em 1897, a história do conflito no interior da Bahia virou livro. A obra "Os Sertões", de Euclides da Cunha, foi publicada em 1902 e desde então virou referência da Guerra até os dias atuais.

Angela Gutierrez - Somos Vós

O Diário Plus conversou com a pesquisadora Angela Gutiérrez, que tem pós-doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sobre "O retrato do Conselheiro. As múltiplas faces do beato de Belo Monte". Além disso, Gutiérrez é membro da Academia Cearense de Letras e do Instituto do Ceará.

Leia a entrevista na íntegra:

Qual a importância da obra de Euclides da Cunha para a literatura brasileira?

Cento e vinte anos depois da Guerra de Canudos, ainda persiste a importância de Os sertões, livro que perenizou o tema de Canudos e a figura de Antônio Conselheiro na literatura, na cultura e na história brasileiras, e ainda persistem o pasmo e a indignação diante de episódios bárbaros – degola de combatentes conselheiristas, extermínio de prisioneiros civis, comércio e abuso sexual de crianças, prostituição de mulheres e meninas – narrados por Euclides.

Hoje é possível apontar n’Os sertões teses científicas ultrapassadas e, para os padrões éticos de hoje, até mesmo preconceituosas e politicamente incorretas, como as que se referem à inferioridade das raças mestiças e à caracterização do Conselheiro como um insano mental, enquanto avultam cada dia mais a qualidade literária desta obra e a sua relevância como obra de interpretação do Brasil.

Em suas grandes linhas, a narração da guerra continua historicamente válida, embora passível de controvérsia em muitos detalhes. O desenvolvimento narrativo tornou-se, mesmo, paradigmático, verdadeiro cânone da história de Canudos.

Outra face importante d’Os sertões é a da sua contribuição à cultura por apresentar um caráter seminal com relação às artes e à literatura. São inúmeras as manifestações artísticas – na pintura, no desenho, no cinema, na fotografia, no teatro, na escultura, no vídeo, na fotografia etc –, assim como manifestações literárias – na poesia, na tragédia, no cordel, no teatro, na ficção, especialmente, no romance – que nessa obra se inspiram.

Qual a importância da obra para o jornalismo da época?

Antes da Campanha de Canudos, não havia no Brasil a figura do correspondente de guerra. Assim, a presença de Euclides e de outros correspondentes de jornais no front (teatro de guerra) proporcionou aos leitores a possibilidade de acompanhar o desenrolar dos acontecimentos, com a rapidez possível na época, através de outra novidade – o telégrafo.

Embora sem as possibilidades tecnológicas de hoje, quando as notícias são divulgadas ao vivo, com imagens em movimento, no instante de seu acontecer, houve um grande passo na rapidez da difusão dos acontecimentos da Campanha de Canudos. A lamentar que os jornais, muitas vezes, apresentassem as notícias e os comentários editoriais de acordo com seus interesses e preconceitos, sem preocupação em documentar a realidade dos fatos.

Qual sua avaliação sobre o retrato que o livro traz sobre a Guerra de Canudos?

Euclides era um intelectual fin-de-siécle, com os conhecimentos científicos e os conceitos filosóficos que suas leituras e sua formação como engenheiro e militar lhe facultaram. Sem dúvida, o olhar de Euclides em sua obra magistral é diferente do olhar do intelectual de hoje, assim como muitas teorias aplaudidas na transição do século 19 para o século 20, estão, na contemporaneidade, ultrapassadas, pertencendo agora à história dos conhecimento humano.

É interessante, porém, ressaltar que os paradigmas teóricos de Euclides, que hoje consideramos preconceituosos e o são, chocaram-se com seu contato com a brutal realidade da guerra e, desse confronto, surgiu uma das principais características de sua obra: o uso do paradoxo para tentar juntar dados opostos – os dados de sua observação como testemunha e aqueles de seu quadro conceitual – no desenho dos retratos da Guerra, do Conselheiro, dos combatentes de Belo Monte, dos combatentes militares, em especial, do Coronel Moreira César.

Qual foi o impacto da obra de Euclides na época que ele foi lançado?

A obra Os sertões provocou um abalo sísmico na sociedade brasileira do início do século 20, sobretudo entre os membros da chamada elite culta. Depois de acompanhar a Guerra de Canudos pela ótica da imprensa da época, que a enxergava como uma tentativa de retorno à monarquia, e de aplaudir os vencedores como heróis, os leitores deparam-se com o outro lado da História no livro de Euclides. A obra estremece anteriores certezas, ao denunciar a Campanha de Canudos como “um crime contra a nacionalidade” e ao mostrá-la como um retorno à barbárie.