A Fazenda vem à cidade

As equipes econômicas brasileiras sempre se deslumbraram com Wall Street e os milionários de Nova York, mas desde o golpe o compadrio se aprofundou.

Por Julio de Oliveira Silva*

Temer, Meirelles, Padilha - Reforma da Previdência

Dizem que Joaquim Nabuco, quando chegou via Nova York para assumir o posto de primeiro embaixador brasileiro em Washington, ficou bestificado com as luzes de natal. Meu Deus, que cidade rica. De fato, boa parte do ouro do mundo está literalmente enterrada em Manhattan, onde na superfície de suas ruas vivem muitos de seus donos. Não sem motivos, gerações de autoridades econômicas brasileiras visitam a cidade e trazem em suas pastas muitos problemas, mas também alguns presentes dignos de pai para filho.

Durante muito tempo os economistas trataram de um único assunto, a dívida externa. Pedíamos prazos e condições, eles condicionavam o apoio à redução das ambições brasileiras de desenvolvimento. Enquanto o Brasil e demais latino-americanos, aliados históricos dos EUA, encontravam por aqui fria recepção, obrigados a aprender "duras lições" antes de ter o direito aos frutos do capitalismo, os adversários da véspera tiveram pavimentado seu caminho ao desenvolvimento por meio do Plano Marshall. Coisas da geopolítica.

O impasse da dívida não foi solucionado, apenas ruiu com os calotes dos anos 1980. O episódio não deixou de ter, no entanto, momentos pitorescos. Uma charge da época retrata uma mulher que, diante do desprezo do marido, pergunta-lhe por que a olha como se fosse um título de dívida brasileira.

O Brasil precisava então recuperar a confiança dos investidores. Para tanto, o presidente-eleito Fernando Collor enviou em missão Zélia Cardoso de Melo, escolhida ministra da Fazenda. Conta o embaixador Marcilio Marques Moreira, que pouco depois a sucederia no ministério, que a ministra cancelou compromissos oficiais para aproveitar a tarde na cidade e que chegou à noite em um restaurante para um encontro com o titular das Finanças do Japão, entre outras autoridades, em uma carruagem do Central Park.

A postura incompatível com o cargo, sem entrar nos seus méritos como economista, não deve ser motivo de crítica pessoal à ex-ministra. No fim das contas, ministros são funcionários escolhidos pelo presidente, e o presidente no caso era um arrivista sem contatos com o establishment econômico do País. Zélia era um quadro de médio escalão no Ministério da Fazenda quando conheceu o então governador de Alagoas. Era uma das poucas conhecidas de Collor no meio econômico, e assim se tornou ministra.

Distinta era a situação de FHC, ele mesmo um acadêmico, que se cercou de uma equipe "dos sonhos", digna das salas de cinema, acreditam alguns. Muitos possuíam experiência nos Estados Unidos, em universidades e no setor privado, como Pedro Malan e Gustavo Franco. Eram desde o início familiarizados com o mercado e o modo de se fazer negócios por aqui. Não tomavam carruagens no Central Park.

O perfil de nossas autoridades nessa área não se alterou com a chegada de Lula ao poder. Recordemos a Carta aos Brasileiros (leia-se: mercado) e a escolha, malfadada, em retrospecto, de Henrique Meirelles, ex-presidente do BankBoston, para o Banco Central. Lula entendia, ao contrário de Collor, a necessidade de quadros com capacidade de interagir de modo efetivo com a banca, qualquer que fosse a política adotada pelo governo.

Tal avaliação tem, porém, um custo. É difícil traçar uma linha a partir da qual a familiaridade se torna promiscuidade, a interlocução se torna conluio. Desde a nomeação de Joaquim Levy por Dilma Rousseff, em 2015, e em especial após o golpe, é seguro dizer que essa linha foi largamente ultrapassada.

O resultado mais nefasto dessa dinâmica é a impossibilidade de se levar adiante uma política econômica transparente e republicana. A mudança nos últimos anos foi visível. Visitas e reuniões passaram a ser decididas diretamente com as empresas e instituições onde trabalharam (ou virão a trabalhar) nossas autoridades. Enquanto isso, o Ministério das Relações Exteriores foi relegado a funções "logísticas", levando e buscando no aeroporto, certas vezes sequer participando das reuniões.

A portas fechadas, gente como Levy e Meirelles decide o futuro do País com seus convivas do mercado financeiro. Suas famílias se frequentam, é natural a pergunta "como vai a esposa?" (e sabem os nomes das esposas). Os brasileiros, em especial, deslumbram-se com a intimidade com a elite global. Quem não lembra dos abraços entre FHC e Bill Clinton? E entre bagels e amenidades, discutem privatizações e reformas que afetarão todos os brasileiros por sabe-se lá quanto tempo.

A economista Monica De Bolle, insuspeita de esquerdismo, notou, com algum atraso, a desconexão da equipe de Temer com a situação do brasileiro comum. Daí a impopularidade de muitas das propostas do governo. Não é necessário doutorado em nada, apenas alguma história básica, para saber o que acontece quando a economia é deixada nas mãos dos bilionários. Fácil adivinhar. Ou alguém se torna bilionário por meio de políticas públicas inclusivas e populares?

*Julio de Oliveira Silva é economista e diplomata, vice-cônsul do Brasil em Nova York. O artigo reflete exclusivamente as ideias do autor e não representa, de maneira alguma, posicionamentos ou proposições do Ministério das Relações Exteriores