Cura gay: "A discriminação é que nos adoece”, dizem LGBTs

No último dia 18 de setembro o juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho, do Distrito Federal, concedeu liminar autorizando que psicólogos possam oferecer terapia de “reversão sexual”, processo que ficou popularmente conhecido como “cura gay”.

LGBTs - Vinícius Sobreira

Desde 1999 o tratamento é proibido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), já que não considera que “comportamentos e práticas homoeróticas” possam ser classificadas como patologia (doença, anomalia), desvio ou distúrbio. Desde 1990 a Organização Mundial de Saúde (OMS) também não considera a homossexualidade como doença.

O enfermeiro Mário Carneiro, morador do Recife, diz se sentir ofendido com a decisão do juiz federal. “Sou gay, me interesso afetivamente e sexualmente por pessoas do mesmo gênero que eu. E não sou doente”, afirma. Para ele, é uma notícia que não esperava ver no seu país no século 21. “É um retrocesso. Recomento que ninguém procure esse tipo de tratamento, pois ele não vai dar em nada e pode ser muito danoso para a pessoa”, alerta.

Já a estudante Maiara Nogueira, lésbica, acredita que a liminar tem fundo político, para fortalecer os deputados da bancada cristã-fundamentalista. “É mais uma medida para a ‘bancada evangélica’ poder dizer por aí que está governando a nação ‘conforme a vontade de Deus’ e assim conseguirem mais votos”, afirma.

Para Mário, a liminar também é fruto de pouca reflexão sobre o tema. Carneiro analisa que nossa sociedade impõe uma norma-padrão de comportamento heterossexual, a chamada heteronormatividade, em que os casais são compostos por pessoas de gêneros opostos e sexos opostos. E qualquer comportamento de gênero ou sexualidade diferente desse padrão, é considerado “anormal”. E por isso os tratamentos de “reversão sexual” nunca são voltados para as pessoas heterossexuais mudarem sua orientação, porque elas já são consideradas “normais”.

“Alguém já pensou num heterossexual indo ao psicólogo por estar 'se sentindo hétero', pedindo ajuda profissional para mudar sua orientação sexual? Não. Porque isso é uma hipótese absurda. Na nossa sociedade, ser hétero é a única opção 'normal', que não precisaria mudar”, reclama o enfermeiro. Ele aponta ainda que a heterossexualidade, assim como a bissexualidade, a homossexualidade ou transexualidade, são todas normais e naturais. Portanto, conclui Carneiro, a liminar concedida pelo juiz federal é uma decisão que está direcionada exclusivamente à população de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBTs), já que são esses que serão submetidos às supostas terapias. O enfermeiro considera que a decisão judicial é uma tentativa de classificar como “doença” as expressões de gênero e a diversidade sexual.

Maiara acredita que mesmo a própria população cristã sabe que a proposta de “reversão sexual” é algo que não deveria existir. “Mesmo quem tem vida religiosa, seja católico ou evangélico, se for um pouco mais esclarecido, vai entender que essa situação é absurda, porque eles já entendem que a orientação sexual não é uma questão de escolha”, avalia Nogueira. Ela recorda que já lhe disseram que sua vida sexual já foi classificada por outros como “luxúria” e “vício”. “Eu me senti ofendida. Mas isso de dizer que é doença é ainda pior. Eu acho que o que nos adoece mesmo é ficarmos ouvirmos esse tipo de comentário das pessoas”, acredita.

Ajuda profissional

Tanto Mário como Maiara consideram que sim, boa parte da população LGBT precisa de apoio psicológico. Mas não para uma suposta “reversão sexual” e, sim, para que essas pessoas consigam superar as dificuldades de viver numa sociedade que com frequência as maltrata, oprime e violenta. “Antes de nascermos, quando nossos pais descobrem qual é o nosso sexo biológico, eles já criam expectativas de que seremos heterossexuais. Quando crescemos, se não nos encaixamos nessa expectativa, nesse padrão de sexualidade, acabamos entrando ‘em crise’. Acho que a maioria das pessoas LGBTs passam por esse momento da vida em que questionam a própria sexualidade”, diz o profissional de saúde.

Maiara Nogueira completa que essas pessoas precisam de tratamento para se aceitarem como são. “Essa pessoa precisa ser acompanhada, ter apoio, para conhecer sua própria natureza, para superar esses comentários de que ela é doente, um ‘ET’ que não faz parte da humanidade”, diz. Carneiro aponta ainda que “a nossa sociedade é cruel com pessoas homossexuais” e que, por isso, a psicologia tem muito a contribuir para que as pessoas com orientação sexual ou de gênero diferente do padrão possam se compreender e se aceitarem. “O problema não está em mim ou na minha sexualidade. O problema é essa sociedade que não me aceita e me adoece”, diz.

Família

Perguntados sobre as famílias que acreditam que o correto é colocar os filhos nesse tipo de tratamento, Mário ressalta que se a família quer o bem da pessoa, não deve submetê-la a essa suposta terapia de reversão sexual. “Colocar uma pessoa nesse tipo de tratamento é uma agressão psicológica, uma violência. Ser homossexual é normal e não há tratamento para isso”, diz o enfermeiro. Para ele, se a família tem dificuldade de conviver com a sexualidade do outro, a família é quem deve procurar para si o acompanhamento psicológico, não por estarem doentes, mas para aceitarem as diferenças, entenderem o seu parente LGBT e passarem a conviver bem no seio da família.

Tanto Maiara como Mário classificaram um possível tratamento como “maldade” e “agressão”. “Ao tentar anular sua sexualidade como se fosse um padre, um monge, eunuco ou algo assim, a maior probabilidade é que ela não consiga se encontrar. Isso afeta a saúde física e mental da pessoa. É perigoso”, considera Maiara. Mário Carneiro afirma que esse tipo de tratamento está fadado ao fracasso. “Não há sequer evidências científicas de que isso poderia funcionar. Por isso a Organização Mundial da Saúde condena. Esse tipo de tratamento, ele é que desencadeia problemas psiquiátricos. E aí sim a pessoa fica doente”, conclui o enfermeiro.