"No Brasil de hoje, a democracia é uma mentira", defende Rincon

Em entrevista registrada dias antes dos shows de lançamento oficial do aclamado "Galanga Livre", o rapper Rincon Sapiência relembra sua trajetória, opina com ceticismo sobre o pleito presidencial de 2018 e fala sobre o combate ao racismo e ao conservadorismo no País

Rincon Sapiência

Danilo Albert Ambrosio é um cidadão paulistano, de 32 anos, nascido na Cohab 1, comunidade de habitações populares verticais edificadas em Artur Alvim, na periferia da zona leste de São Paulo.

Em 2010, a vida ordinária do jovem teve, no entanto, um rebuliço. Já assumindo o codinome Rincon Sapiência, vulgo artístico derivado do craque colombiano que conquistou o mundial interclubes pelo Corinthians em 2000, Danilo arrebatou a cena do Hip-Hop brasileiro com o lançamento do clipe oficial de sua composição Elegância, escrita por ele no ano anterior.

Depois de enfrentar uma sucessão de subempregos e muita produção solitária, em 2014, o lançamento do EP SP Gueto BR não deixou dúvidas: o MC confirmava ali sua vocação para figurar como um artista hereditário da melhor tradição de craques da rima do País, como Sabotage, Black Alien, Mano Brown e Xis, os dois últimos de grande influência nos seus dias de formação.

Em maio último, o aguardado primeiro álbum de Rincon Sapiência veio à tona, incensado por um sem-número de avaliações positivas na imprensa local. Justo. Inspirado na saga mítica de Galanga, ou Chico Rei, monarca africano que, ao ser escravizado e trazido ao Brasil, conseguiu libertar a si e a outros escravos, depois de matar seu senhor de engenho, Galanga Livre reúne 13 composições primorosas e é sério candidato a figurar no topo da lista de melhores lançamentos musicais de 2017.

Dias depois de retornar de uma turnê europeia que percorreu cinco países, Espanha, Inglaterra, Irlanda, Suíça e Portugal, Rincon Sapiência recebeu a reportagem de página B! na sede paulistana da Boia Fria, produtora que, há dois anos, agencia sua ascendente carreira.

Em um longo bate-papo, marcado pela descontração e a sagacidade do artista, de oratória tão dinâmica e fulminante como em suas rimas, Rincon relembrou sua trajetória, opinou com ceticismo sobre o pleito presidencial de 2018, falou de apectos aparentemente frívolos perante a crônica social do rap, mas que ganham outros valores em seu discurso, como a importância da afirmação pela moda e do direito à dança. Além de mensurar a importância de uma viagem que fez à África em 2012, ele também esmiuçou, entre outros temas, o combate ao racismo e ao conservadorismo em ascensão no País.

Claro, o carismático MC também falou da expectativa para os dois shows de lançamento oficial de seu novo álbum, Galanga Livre, que ocorrerão nesta sexta-feira (29) e no sábado (30), no Sesc Pompeia.

Confira as melhores respostas de Rincon para a PaginaB!, selecionadas pelo Portal Vermelho: 

Da infância para a adolescência vivida na Cohab 1, como seu deu a transição do Danilo para o Rincon?

Rincon Sapiência – Cresci num ambiente musical bem forte, não no sentido de ter músicos na família, mas de se ouvir muita música. Nosso entretenimento sempre foi, e até hoje é, ouvir discos. Sempre teve muito vinil e fita K-7 em casa, aparelho de som 3 em 1… Por parte do meus pais tinha o lance da black music norte-americana, artistas como Marvin Gaye, Michael Jackson, entre outros, e o lance da música brasileira, do samba, do samba-rock, do Jorge Ben.

Imagino que a juventude deles foi vivida na virada dos anos 1970 para a década de 80, quando era muito forte em São Paulo a cultura dos bailes black de periferia.

Isso mesmo. Meu pai inclusive – não vou lembrar de todos os detalhes – conheceu minha mãe num baile, em uma festa de rua que acontecia sempre. Durante muito tempo minha mãe falava pra gente “pô, por que vocês não dançam, por que não se divertem? No meu tempo, a gente se juntava pra ouvir música e dançar samba-rock". Meu pai, muito vaidoso como eu, sempre usou cabelo bem redondo, as calças brifadinhas, com o risco certinho na perna. A música conectou os dois, então, naturalmente, quando eles tiveram filhos, a gente acabou crescendo nesse meio musical. Tenho dois irmãos e o mais velho, quando ele tinha uns 12 anos, veio com o lance do rap.

Como eles se chamam?

Leandro, que é cinco anos mais velho que eu, e Evandro, o do meio. Eu sou o nome que não rima. A quebra do fluxo (risos). Leandro ouvia muito rap com os amigos da escola. Muitas vezes eles faziam trabalhos em casa e os amigos dele colavam com os vinis, as fitas K-7 e as fitas VHS, que também era outro entretenimento forte.

Ele pegou a geração do rap que surgiu no Brasil no começo dos anos 1990?

Sim. Nesse fervor do rap da periferia ele era o adolescente que, apaioxonado, curtia os lançamentos dos discos, as fitas, os clipes, as roupas e tudo mais. Tem aquele lance do irmão mais velho ser a influência do mais novo, que quer verstir as mesmas roupas, quer ter uma turma parecida com a dele, e eu era aquele negritinho que queria estar ali no meio, mas, durante muito tempo, meu irmão falava “vai pro seu quarto”. Queria ficar com os parsa dele. No começo, ele brigava memo. Ia colocar uma fita K-7 pra ouvir, encontrava a música em outro ponto e dizia "você está mexendo nas minhas coisas!". Com o tempo, ele passou a entender que era um lance que eu realmente gostava e ele começou a agregar, a me contar como era o rolê, o bate cabeça, o que era os “lagartixa” (segundo o grupo Doctor MCs, autor de Melô, o Lagartixa, no meio do rap, trata-se de um indíviduo considerado pouco autêntico, um "tipo inconveniente que só quer aparecer").

Além do rap, você também era apaixonado por futebol, sonhava em ser jogador.

Com 15 anos, eu queria ser jogador profissional, mas comecei a desencanar, porque fui crescendo e me apaixonando pela rua. O futebol tem suas disciplinas, e comecei a entrar naquele lance de querer arrumar namoradas, de ficar na rua. O futebol e suas responsabilidades começaram a pesar e eu vi que gostava mais de me divertir do que daquela regra de treinar toda semana e jogar nos finais de semana. Foi aí que compus meu primeiro rap e montei minha banda.

Como era viver na Cohab 1? Pra quem não tem a dimensão, não é exagero dizer que o condomínio é uma "cidade"?

Se comparada com Cidade Tiradentes e Cohab 2, nem tanto. Mas é muito grande, ao mesmo tempo em que é um lugar que, batendo perna, você anda a quebrada toda, vai para as quebradas vizinhas. Na Cohab 2 pra você ir para determinado lugar tem que ir de busão. Na Cohab 1 sempre andei a pé. E foi ali que rolou a magia, desencanei do futebol e comecei na música. Deu um certo choque com a família, porque eles me apoiavam muito no futebol, que é um mercado bem mais promissor e rentoso do que a música, um caminho mais difícil – ainda mais no rap, um movimento de periferia, sem perspectivas maiores de colocar música no rádio ou em novela.

Suas letras falam do cotidiano da periferia com a mesma desenvoltura que falam da própria música, do cinema, da moda. Como você formou esse repertório tão diverso de informações?

Levei um tempo. Como sempre falo, desde que conheci o rap, meus ídolos sempre foram os Racionais MCs. Mas era muita pretensão um moleque como eu querer ser como os Racionais ou contar experiências fodidas de vida em uma música de cinco minutos. O rap deles contava uma realidade muito adulta, de quem está no front. Quando ouvi o Xis descobri que ele tinha essa característica do rap do Racionais – o lance do orgulho racial, de falar da periferia –, mas num estilo mais zona leste, do cara que gosta de futebol, que fala sobre a relação dele com as garotas, que tem um estilo visual bacana, uma desenvoltura diferente da dos demais rappers.

Compor sempre foi uma experiência solitária? Você, muitas vezes, fazendo tudo?

Sim, fazendo tudo, mas, nessa época, com algum apoio do meu irmão, Leandro, e também de um DJ do Radial, um baile que fui muito

Onde rolava esse baile?

No Tatuapé (bairro da zona leste de São Paulo). Tem um primo meu da zona norte, que é muito tirador de onda, e ele às vezes dormia em casa para ir com o meu irmão no baile de sábado do Radial. No domingo, eles acordavam contando histórias da noite, das mina que eles pegaram, do meu primo zoando os lagartixa dançando. Então, pra mim era um sonho fazer parte daquilo. Quando comecei a sair para fazer balada peguei a época dos clubbers. Ia muito para a Broadway ouvir música eletrônica, drum n’ bass; Dj Marky, Patife, essas fita. Comecei a sair com um amigo pretinho, clubber. Ia lá me divertir, mas para mim era um pouco difícil arrumar umas minas, porque o pessoal me chamava de "mano". Todo mundo clubber, os cabelo arrepiado com sabonete de glicerina, e eu colava carecão memo, tipo rapper (risos).

Lembro que nessa época, de forma pejorativa, os clubbers de bairros nobres, como o Jardins, chamavam esse pessoal de "cyber-manos"…

Na real, tinha os clubbers e os cyber-punks (vindos das periferias de São Paulo) que também curtiam música eletrônica, mas coisas mais pesadas, como o Prodigy. Era uma classe mais rude. Os clubbers eram meio que os emos daquela época. Tinham medo dos cyber-punks, porque às vezes saiam até umas tretas. Skatistas também não gostavam de clubbers. Então, o meu perfil era esse que os clubbers tinham medo (risos). Foi nessa época que comecei a arrumar meu pessoal, umas namoradinhas, e vi que conseguia virar a noite e curtir ouvindo música. Eu ainda era menor de idade, mas lá no Radial não rolava fiscalização. Numas três vezes que fui pra Broadway pensei "acho que agora consigo ir pro Radial". E lá era outra fita. Não me sentia um extra-terrestre no rolê. Um dos DJs, o William, que morava na Cohab, tinha computador, Soundforge (software de edição de áudio), sabia samplear, coisas que não eram tão democráticas. Muitas vezes, para fazer as batidas, eu ia na casa dele ou de algum amigo que tinha computador. Mas o massa é que em pouco tempo de rap eu tive essa fase de usar o Hip-Hop Ejay, e pude ter um trabalho autoral e autêntico, mesmo com as minhas limitações. Às vezes, eu ia para algum festival de rap que cantava um milhão de grupos e via muitos parecidos com Racionais, Facção Central, De Menos Crime, e eu já tinha um lance meu.

Voltando ao rap Elegência, a letra traz uma mensagem que, para alguns, pode soar contraditória e gostaria que você abordasse essa leitura. Explico: no ano passado, fiz duas reportagens que contavam a história dos bailes black em São Paulo e dois dos entrevistados, o Seu Osvaldo, primeiro DJ do País, e o Serjão Discotecário, que faleceu recentemente, disseram que nos anos 1960 e 1970, para além do lance da autoestima, o negro tinha também a obrigação de se vestir bem para evitar ser mal-visto pelos brancos. Como você vê esssa questão?

Na real, o que vejo como marcante é que, por exemplo, nessa época que escrevi Elegância, surgiu uma safra de novos rappers, como eu, Emicida, Rashid, Projota, e essa é uma música que fala muito dessa retomada, de trazer um pouco esse lado da autoestima, que sempre teve no rap. Mas, pelo jeito que era a periferia antes, as coisas passavam muito pela crítica social, pela denúncia. A gente chegou num momento em que a classe pobre de periferia estava começando a ter mais poder de consumo, a conseguir se inserir melhor na sociedade, a ocupar mais espaços, então, Elegância é, para mim, uma música marcante por causa disso. Muitas músicas dessa época têm esse fator, mas Elegância se destacou. Algo interessate, porque o rap sempre falou de humildade, das origens. A gente vem da periferia, a gente tem que ter orgulho de onde veio, mas não tem que achar da hora ser desfavorecido. Acho que o discurso da Elegância passa por isso. Eu mesmo falando disso pode parecer muita pretensão, mas eu vejo o rap se preocupando com o visual a partir de Elegância. Uma música vanguardista, no sentido de assumir que uma coisa é você ser um cuzão egocêntrico outra coisa é você ser vaidoso, entendeu? É igual o paralelo que você fez com os bailes black, uma ideia que já vinha desde os anos 1970.

Como a dança também era para eles e é para você um elemento de afirmação racial.

Sim. Sou apaixonado pela dança. E acredito que ela tem também um apelo importante para a autoestima. Tanto é que muitas pessoas quando estão fazendo um exercício de se sentir melhor, quando passam por terapia, muitas pessoas recomendam dançar, porque a dança mexe com as nossas expressões. Mas a dança sempre foi perseguida por parte de um pensamento mais conservador. Muitos falam, por exemplo, do funk e da forma que os corpos se movimentam com sensualidade. Existiam danças de matriz africana muito antigas que já eram reprimidas por ideologias católicas e colonialistas. Quando a gente se permite dançar, a gente quebra um pouco essas ideias e também quebra um pouco a ideia, que não vem da nossa origem africana, que associa muito a dança à mulher, o que é um grande equívoco. Ao propor dança, você está propondo várias coisas interessantes: mover seu corpo; liberar energias que vêm à tona somente quando você dança; o lance do encontro com outras pessoas, principalmente no samba-rock, onde se dança em par e trocam-se os pares nos bailes. Então, eu diria que a dança também faz parte da minha proposta, como ativismo e como entretenimento.

Falando do funk, o que você pensa dessa lei que pretende proibir os pancadões?

Vejo uma mentalidade extremamente antiga. As pessoas tem problema com isso. Tenho uma amiga que trabalha com dança afro e tem movimentos que alguns mestres africanos passam que muitos brasileiros se sentem reprimidos em fazer. Principalmente as garotas, dependendo do movimento, se tiverem que abrir as pernas, por exemplo. Então, isso faz parte dessas ideias que sempre reprimiram a gente, esse movimento de que isso é errado, é profano. O funk passa muito por isso. Você pode, sim, colocar na mesa várias ideias positivas e negativas, mas o funk essencialmente propõe o encontro, o entretenimento. É muito prático você parar o seu carro, abrir o porta-malas, colocar um som e as pessoas se divertirem, cada um gastando o que pode consumir, sem a formalidade de pagar para entrar. Então, essa autonomia do funk também incomoda. O funk é um mercado muito organizado e rentável. Tem muitas pessoas ganhando dinheiro, fazendo as coisas acontecerem sem necessariamente precisar de rádio, de grandes gravadoras. Muitos artistas estão aí fazendo shows, tocam num baile em Guianazes e depois vão tocar em São Matheus. O funk é muito independente. Tudo gira pelo funk. Tudo acontece de eles para eles. Então, acho que também por isso tentam criminalizar o funk. A deixa que eles pegam é falar do que rola na periferia, no que diz respeito às drogas. Coisas que já estão lá, com o funk ou não. Então, algumas ideias, como o erotismo, já existem lá, com o funk ou não. Estão, por exemplo, nas propagandas de bebida, que sempre colocam a mulher com apelo sexual. Vejo uma gigantesca hipocrisia. Já estive numa reunião, quando meu filho estudava no prezinho…

Você tem um filho de qual idade?

Ele está com 9 anos, se chama Emanoel. A professora dele e a diretora da escola eram muito gente boa, mas houve um momento em que elas falaram que não gostavam do funk, que não achavam legal, por exemplo, ver as crianças cantando funk. Estive numa recreação promovida por eles e o tempo todo tocava sertanejo. Aí eu reparava que se falava muito de beber. Tinha uma música que tocou, que foi uma das que mais me chamou atenção, porque o cara falava para a mina deixar o namorado dela, amigo dele, e eles irem pra algum lugar discreto pra se pegar. Aí pensei, "pô, música de talarico do caramba!". E o que acontece aí? Você vê que o martelo tem peso diferente quando se está falando de uma música de periferia, uma música de preto. Quando esses valores partem de outras pessoas, de outras classes sociais, não existe esse crivo. Então, vejo essa criminalização do funk como algo hipócrita e injusto.

E como você vê o crescimento do funk em São Paulo, que, aliás, também tem impulsionado a discussão sobre essa lei?

Acho massa. São Paulo tem esse potencial. As periferias da cidade são praticamente o Nordeste. Muito vizinho cearense, baiano, alagoano. São Paulo é um lugar que tradicionalmente trouxe outras culturas e fez suas adaptações. Isso aconteceu com o samba e também acontece com o funk. Acho bem interessante, porque mantém viva a tradição da música de periferia. Hoje em dia, o rap ganhou outro caráter. Eu mesmo vejo isso. Acho muito louco o rap estar na periferia, mas sei que falo de muitas coisas que são cabeçudas e não vão entrar no popularesco. Mas o funk é um ponto de vista de periferia, que também acaba sendo segmentado. Em São Paulo, eles criaram o nicho deles e tem pessoas que se incomodam "ah, o rap perdeu para o funk". Discordo. Acho que o rap não perdeu para ninguém. Essa geração do funk criou, por uma série de coisas, sua identidade. São Paulo também trouxe o Passinho do Romano (estilo de dança derivado do funk surgido no bairro Jardim Romano, na zona leste). A dança e o funk são muito associados ao lance da sensualidade, saca? E o romano também é sensual, mas trouxe outro lance, outro movimento, porque agregou os homens à dança. Então, acho que o funk é do Rio de Janeiro, mas São Paulo conseguiu construir seu tempero, suas características e seu legado.

Há pouco você falou de autonomia. E quando é que você criou sua própria autonomia?

Fiz isso com a democratização dos recrusos de tecnologia. Minha criatividade rende bastante, no que diz respeito a produzir e a compor, mas com o passar do tempo passei a entender que, para acontecer, tenho que colocar muita energia no meu trabalho. Sou muito fã do Lil Wayne, e tem um documentário que mostra ele uma semana antes do lançamento do The Carter III, disco que vendeu um milhão em uma semana. E tem um trecho do filme que mostra um dos managers dele recebendo uma ligação de alguém dizendo "mano, o disco vendeu um milhão". Os caras falam "ô, vamo beber, pra comemorar" e vão até um busão avisar o Lil Wayne que ele tinha vendido um milhão. Chegando lá, ele está fumando maconha e gravando. A reação dele foi dizer pro amigo "falei procê" e só. Vi, então, que não dá pra você fazer uma parada grandiosa e querer correr pro abraço. Você tem que trampar. Em se tratando da parte artística, no que diz respeito às referências que eu trago de moda, aos looks que eu monto, à linguagem de música que eu trago, toda a parte criativa está 100% no meu domínio. Já na parte profissional, que envolve fazer negócios, há dois anos, trabalho com a Boia Fria. Tentei fazer isso também, mas nunca fui um bom administrador. Hoje, a minha autonomia passa 100% pela arte.

Falando no lance do rock, o álbum inclusive abre com um sample do Tom Zé, da musica Jimi Renda-Se, que tem um riff de guitarra bem roqueiro e é uma corrupetla do nome Jimi Hendrix. Achei curioso, porque, na minha leitura, você tem afinidade estética com o Hendrix, tanto na coisa visual, quanto na liberdade de misturar influências musicais.

O Hendrix também foi um ponto de partida. Porque, por exemplo, voltando ao lance da pesquisa de cultura afro, tem o lance do Egito, um lugar que eu sou fascinado, pela cultura e pela história, mas que as pessoas associam esse fascínio aos brancos, sendo que eles eram pretos, saca? Então, eu vejo aí um lance parecido com o rock. Se eu tiver que desenhar um personagem roqueiro, vou fazer um cara branco, cabeludo, com uma guitarra, saca? Sendo que tem um histórico anterior de construção e nascimento do rock que é preto. Então, cheguei no Jimi Hendrix muito nessa via. Tem o trocadilho da música do Tom Zé, "Jimi Renda-se", e eu cito o Hendrix na música Vida Longa, que também tem essas sonoridades da minha pesquisa, um pouco de rock com piano elétrico, um lance que me encanta no The Doors, e o rock cadenciou muito o Galanga Livre. Jimi Hendrix é um personagem interessante, me identifico muito com ele pela parte boêmia, o cara era um vivedor. Ele era muito cobrado por não ser tão engajado em causas sociais, mas eu acho que Jimi Hendrix por Jimi Hendrix já é um engajamento, saca?

A revolução estava nele mesmo.

Exatamente. O cara tocando guitarra daquela forma, fazendo música, na Inglaterra, num cenário de maioria branca, como o do rock, com aquele cabelo, aquele visual. Tudo isso já faz dele uma figura forte. E eu acredito muito nisso. Até porque fiz esse disco, que tem esse vies racial explicito, mas pode ser que num próximo disco não tenha mais isso, e, em não exisitindo isso, eu mesmo já serei a referência racial. Posso estar cantando sobre relacionamentos afetivos, sobre festas, sobre dançar, porque isso também já está em mim. Pense no Pelé, um cara que é muito criticado, até mesmo com uma certa razão, mas ele vindo de onde veio, jogando o que jogou, ganhou o status de Rei do Futebol. Um cara preto, de Três Corações, fazendo tudo isso, por mais que muitas vezes ele tenha se mostrado passivo quando não deveria ser, no meu ponto de vista, no que diz respeito à representatividade preta ele, é um cara grandioso. A história dele fala por ele, e eu vejo isso em várias personalidades. Trabalhar ativismo racial vai um pouco além de discursar sobre ativismo racial.

Nesse momento de retrocessos das políticas públicas no País e do crescimento de um pensamento conservador que, por exemplo, escancara o racismo de parte da nossa sociedade, o ativismo do movimento negro deve continuar crescendo?

É complicado. A parte, não digo que boa, mas que está rolando, é que ao longo dos últimos anos os menos favorecidos começaram a se expressar mais e a conquistar mais. Então, se você pensar no que é mais influente de música hoje em dia, você chega na periferia, chega nos preto ou nas mulheres, chega nos gays, chega em classes que continuam sendo oprimidas, mas, que hoje, são mais inseridas do que outrora. Fora essa inserção, que foi conquistada, a gente está se informando e falando mesmo que a coisa tá preta, que a coisa não tá boa. Os gays também se assumindo e falando as parada memo, com vestimenta, com atitude. Isso tem influenciado e isso levou essa classe conservadora a se posicionar, da mesma forma que a gente se posiciona. Até porque eles falam "pô, mano, o pessoal só tá crescendo, só tá forgando, tá saindo da sua zona, mesmo que seja em passos lentos, mas taí; tá ocupando espaço, têm cotas, e eles estão se formando, tão tendo grifes, tendo canais no Youtube, tão se articulando e levando uma. A gente precisa se posicionar também!". Então, a oposição, digamos assim, tá tirando suas máscaras, porque eles sempre existiram com esse pensamento famoso, como o do Bolsonaro, por exemplo. Pessoas que pensam como ele sempre existiram, mas de tanto que a gente se afirmou eles foram obrigados a se afirmar também, a tirarem as máscaras. Antes, a gente era apunhalado de um forma que a gente achava que tava todo mundo junto, e só tomava. Hoje em dia, os oponentes a gente já sabe quem são, e eles se posicionam. Acho que é um viés bom pra se ter as discussões e procurar resolvê-las. O Brasil sempre foi atrasado, nesse sentido. Sempre existindo o racismo, a homofobia, uma série de coisas, e a gente falando "não, que é isso?! O Brasil é da hora. O país da miscigenação, num sei o que lá…", sendo que não é bem assim.

A democracia racial caiu em xeque?

Hoje, a parada é mais explícita, e isso leva a gente a se posicionar melhor, cada um sabe onde deve se situar e isso é um caminho para o avanço. Mas, em contrapartida, esssa pessoas que representam a oposição são influentes, pessoas que movimentam as máquinas, os grandes canais, os grandes veículos de comunicação. Daí rola essa polarização que está acontecendo agora e todo esse retrocesso. É uma situação bem difícil. Então, pode se estourar uma bomba e rolar uma saída infeliz, ninguém quer que tudo vire um caos; ou pode se estourar uma bomba e as pessoas se sentirem mais cobradas em saber votar melhor, em saber se engajar melhor, em saber se posicionar e, a partir disso, acontecer uma mudança. Às vezes, essas situações catastróficas podem desencadear situações positivas. Então, acho que estamos vivendo esse momento "aguardaremos cenas do próximo episódio".

Você acredita na solidez das instituições do País. Há pouco você falou do Bolsonaro, e logo teremos eleições presidenciais. Hoje, você acredita na democracia?

É tudo muito explícito. Eu não tenho ligação com partido nenhum e não coloco minha mão no fogo por político nenhum. Mas sei que uma coisa democrática é você votar e escolher seu candidato. Mas aconteceu o golpe, e em pouco tempo veio todo esse lance: Amazônia, educação, saúde. O retrocesso está acontecendo e isso mostra o quanto as pessoas que são eleitas e ocupam esses cargos tem responsabilidade sobre as coisas que acontecem no País. Então, acho que a leitura a ser feita é "pessoas erradas nos cargos, coisas erradas acontecem". Com pessoas mais éticas e sensatas, coisas éticas e sensatas acontecerão. E isso é parte da democracia. A gente escolhe na urna, mas a partir do momento em que a gente escolhe e nossas escolhas não são vigoradas, a partir de mudanças como esse golpe, acontece esse monte de merda que está aí. A gente saiu desse domínio da democracia. No Brasil de hoje, a democracia é uma mentira, uma farsa.

Confira abaixo o clipe de "Elegância":

No inicio de suas músicas e apresentações, Rincon costuma dizer que também é conhecido como "Manicongo". Entenda o porquê, segundo explicação do próprio artista: 

Muitos me perguntam o porquê do meu vulgo Manicongo, então aí vai uma explicação para vocês ficarem ligados que o povo preto também descende de reis e rainhas:

Fundado no século XIV, o reino do Congo abrangia grande extensão da África centro-ocidental e era formado por diversas províncias. Governado por um rei que recebia o título de Manicongo, hoje a região que fazia parte do Reino Congo recebe o nome de República Democrática do Congo e foi o primeiro país comunista da África. Os habitantes do Reino do Congo organizavam-se em vários clãs, que eram compostos de pessoas que acreditavam descender de um mesmo antepassado.

Como parte da minha família é de Minas Gerais, estado onde a cultura quilombola afro-brasileira resistiu e perdurou por muito tempo, a minha avó era envolvida com manifestações da cultura preta como o tambor de crioula, a umbigada e a própria congada, que faz referência direta ao Congo. Foi a partir disso que eu passei a me interessar por essas e outras manifestações ancestrais e foi isso que fez com que a cultura preta de Minas Gerais e do Brasil como um todo estivessem presentes no meu trabalho. Assim, hoje o meu nome artístico agrega também o vulgo Manicongo.

O Manicongo é uma corruptela da palavra "Mwene Kongo", que na língua africana Kikongo significa literalmente "senhor do Kongo". Cercado por seus conselheiros, o Manicongo exercia a justiça e buscava garantir a harmonia da vida no reino e das pessoas que nele viviam. Essas pessoas deveriam ser fiéis ao Manicongo em troca de sua proteção, tanto no plano material quanto no plano espiritual, pois ele também era responsável pelas boas relações com os espíritos e os ancestrais.

Confira o clipe de "A Coisa Tá Preta", do álbum Galanga Livre