Rio: A crise e os soldados que não sabem para onde apontar suas armas

Basta assistir as cenas do exército entrando na Rocinha que fica nítida a falta de planejamento do governo do estado do Rio de Janeiro na questão de segurança pública. Isso se comprova com as imagens dos olhares perdidos dos soldados que sobem os morros. Eles não sabem para onde ir e muito menos, para onde apontar suas armas. Para além desses vídeos, especialistas em violência, como o professor Ignacio Cano, não têm dúvidas de que há um estado deteriorado.

Por Verônica Lugarini*

rocinha - Vladimir Platonow/Agencia Barsil

O Rio de Janeiro passa por um estado de calamidade que teve o seu estopim, no dia 17 de setembro deste ano, com a rixa entre dois comandantes do tráfico na Rocinha: Antônio Francisco Bonfim Lopes, conhecido como Nem, e Rogério Avelino, o Rogério 157.

A história começou em 2011 quando Nem foi preso e Rogério 157 o substituiu no comando. Até então, não havia rivalidade entre eles, mas o cenário mudou diante da forma como seu sucessor passou a “liderar” a Rocinha.

Ao contrário de Nem, que havia tornado a favela amigável para os moradores durante seu comando, Rogério teria passado a adotar táticas de milícia, como a cobrança de taxas pelo suprimento de gás e pelo serviço de mototáxi, de acordo com jornalista britânico Misha Glenny, autor do livro o “O Dono do Morro”, que conta a história de Nem.

Essas decisões de Rogério desagradaram Nem, levando-o a ordenar que ele deixasse o moro. Rogério se negou a obedecer e os conflitos se iniciaram.

Esse é o contexto interno da Rocinha, para além dele há também o cenário de calamidade das contas públicas e da falta de gestão do Rio de Janeiro que vem se aprofundando a cada mudança de governo.

Para o professor e especialista em violência no Rio de Janeiro da UFRJ, Ignacio Cano, o cenário de segurança pública no estado vem se decompondo há anos, por conta da incapacidade dos gestores de modificarem as políticas implantadas no Rio e também, por não conseguirem criar um planejamento de longo prazo. A isso, se soma a falta de uma força tarefa de emergência que consiga atender e conter situações como essa.

“Nós temos uma sociedade com um histórico de desigualdade e de criminalização que leva a violência, mas o estado [federal e estadual] não sabe lidar com o combate ao crime e tem respostas como a liberação da entrada do exército que acabam realimentando a violência por meio de uma situação militarizada e seletiva. Ou seja, o governo do Rio e o Raul Jungmann [ministro da Defesa do PPS-PE] não têm sequer um planejamento para situação de emergências ou uma força tarefa. Isso mostra que o Rio não tem política de segurança, não tem protocolo de segurança e está tomando decisões em que bate a cabeça e não chega a lugar nenhum”, disse o especialista em entrevista ao Portal Vermelho.

Para além da falta de um programa de longo prazo, Ignacio Cano também estacou outros fatores que levaram à crise violência:

“Uma combinação de circunstâncias levou ao contexto atual: houve a redução de 3 mil policiais em serviço nos últimos tempos, a impossibilidade de pagar as metas e prêmios aos policiais que ajudaram anos atrás e a falta de uma liderança política que, com a crise econômica e política, aumentam a pressão na base da pirâmide”, explicou o professor.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Como uma tentativa de suprir essas lacunas, o governo decide então, acionar as Forças Armadas para intervirem na Rocinha, o que é uma medida imediatista e que sequer, resolve o problema, mesmo que por alguns dias.

“Usar o exército significa falha. Primeiro porque há um custo elevadíssimo e isso pode trazer consequências ruins em combates armados. Por outro lado, toda essa mobilização autoriza mandados de busca coletiva, o que é absolutamente inconstitucional. Temos então, um quadro de insegurança que enfraquece e ignora o direito dos moradores [da Rocinha], o que não acontece com os direitos individuais dos moradores do Leblon”, destacou Ignacio Cano ao Portal Vermelho.

“O que mais me choca não é a falta de respeito aos direitos, mas a falta de inteligência de não perceber que isso não resolve o problema da segurança. Para melhorar esse quadro, seria necessário ampliar a investigação da polícia, desenvolver a relação de confiança entre população e a polícia, mas para estabelecer essa relação é preciso o uso do policiamento e não do controle militar porque eles abusam e afastam a população que, consequentemente, passa a não confiar mais no Estado”, disse.

Para concluir, Ignácio Cano disse que não há como o governo ganhar essa guerra porque ela não é uma guerra, mas um ciclo: “Vivemos o mesmo modelo de crise em que eles [governo estadual e federal] esperam ganhar uma guerra que, na realidade, não é ganha porque não é uma guerra, mas um ciclo começa de novo. Então é uma grande encenação que o Estado faz ciente de que não está resolvendo nada, mas continua para tentar mostrar que está dando resultados e dando sensação de segurança”, finalizou o especialista.

Saída do exército

Na manhã desta sexta-feira (29) as Forças Armadas deixaram a Rocinha.

Em coletiva de imprensa, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, informou que o que difere a crise de segurança no Rio de Janeiro é o controle de territórios pelo crime.

“O Rio de Janeiro é uma cidade símbolo para o Brasil. O Rio de Janeiro não é diferente da crise que existe por aí afora, em termos de segurança. Agora, de fato, o Rio de Janeiro, sobretudo, por conta do controle do território. Quem controla o território tem poder político, quem tem poder político indica o nosso presidencialismo de coalizão. E é aí que eu chamo de coração das trevas. Ou seja, o crime que tem poder, que controla 800 mil a 1 milhão de cariocas – são 830, 850 comunidades-, ele penetra no estado, e o estado perde força para combater o próprio crime.

Essa afirmação do ministro vai diretamente ao cerne da crise: há o poder do crime organizado porque há a falta de poder político. Em meio a uma crise institucional, econômica e social, não há como controlar sequer um bairro, quiça, a Rocinha que poderia ser considerada uma outra cidade dentro do próprio Rio de Janeiro, por tamanho e número de habitantes, mas que está completamente à margem da sociedade, sem amparo do estado brasileiro e agora, sem dignidade e paz para sair de suas casas enquanto a ameaça da volta das Forças Armadas pairar pelos becos e vielas.