“Privatizar serviço de saneamento não resolve os problemas do setor”

A direção do Sindiagua Ceará, entidade filiada à Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), convidou o professor doutor e pesquisador José Esteban Castro para dar uma palestra sobre os impactos da privatização/PPP no setor de saneamento durante audiência pública que será realizada na Assembleia Legislativa, nesta sexta-feira (15), às 14 horas.

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Esteban é doutor em Ciência Política pela Universidade de Oxford e coordenador da Rede Internacional Waterlat-Gobacit dedicada à pesquisa e docência sobre política e gestão da água. Ele vai apresentar dados de pesquisas internacionais que comprovam que a política de privatizações/PPP (Parceria Público Privada) é um modelo falido.

Confira a íntegra da entrevista:

Que projetos a Rede Internacional Waterlat-Gobacit desenvolve e como se dá sua atuação na América Latina e no Brasil no que diz respeito ao acesso universal à água?

Nossa Rede está dedicada ao estudo dos diversos aspectos que, desde nossa perspectiva, devem ser considerados para aprofundar o processo de democratização da política e da gestão da água, em todas suas formas. Como explicamos publicamente em nossa lista de “prioridades” (http://waterlat.org/pt/about/prioridades/), colocamos ênfase em três questões fundamentais.

Em primeiro lugar, a compreensão e explicação do caráter capitalista da política e da gestão da água, porque entendemos que a dinâmica central que estrutura majoritariamente as decisões políticas e as ações de governo e gestão da água no âmbito mundial ocorrem de acordo com o processo de acumulação do capital e que considerações como a insustentabilidade e a justiça ambiental ficam subordinadas à dinâmica dominante do processo de acumulação de capital privado.

Em segundo lugar, contribuir em aprofundar o entendimento da “gênese da indefensabilidade” em relação à água. Os seres humanos estão expostos a uma ampla gama de perigos e danos relacionados com a política e a gestão da água, que se derivam de uma série de causas como a falta de acesso à água e a seus serviços ou a exposição a fenômenos naturais ou antrópicos como inundações, secas ou a contaminação hídrica. Nós damos prioridade a pesquisas que focam nos processos de produção da indefensabilidade que afeta amplos setores da população que convive com ameaças à vida causadas por diversos aspectos da política e a gestão da água.

Em terceiro lugar, não somente nos interessa estudar e explicar, mas também contribuir a confrontar a indefensabilidade social. Nossa rede visa aportar à construção de formas alternativas de política e gestão da água, que estejam orientadas pelos ideais da igualdade, a inclusão, a reciprocidade, a defesa dos bens comuns, dos bens públicos, e do processo de democratização substantiva, não meramente formal, de nossas sociedades.

Nesse sentido, é importante destacar que a Rede Waterlat-Gobacit se consolidou a partir de um projeto de pesquisa sobre os impactos da privatização dos serviços essenciais de saneamento, o Projeto Prinwass (http://waterlat.org/pt/projetos/prinwass/), que foi concluído em 2004. Prinwass estudou casos de privatização dá agua na África, América Latina e Europa na década de 1990, e incluiu vários casos de Brasil: Limeira em São Paulo, e Niterói e a Região dos Lagos no Rio de Janeiro.

Posteriormente realizamos também vários outros projetos envolvendo experiências do Brasil, por exemplo o Projeto Desafio (www.desafioglobal.org), concluído em 2015 e que considerou casos de Ceará, Minas Gerais, Pernambuco e Rio de Janeiro. Desafio estudou experiências de políticas públicas orientadas a introduzir “inovações sociotécnicas” para reduzir as injustiças e desigualdades existentes no aceso aos serviços de saneamento básico em Brasil, Colômbia e Argentina.

Nossos membros no plano internacional trabalham um amplo leque de temáticas relacionadas com o acesso universal à água. Desde lutas contra os impactos negativos da mineração, do desmatamento, dos agrotóxicos, etc., os efeitos dos grandes desastres hídricos, incluídas as epidemias de veiculação hídrica, até aspectos culturais das lutas pela democratização da política e da gestão da água.

Em relação aos serviços de saneamento, nós temos uma Área Temática especificamente dedicada a este tema, a AT3, “Ciclo Urbano da Água e Serviços Públicos Essenciais [não só urbanos]” (http://waterlat.org/pt/areas-tematicas/at3/). A AT3 tem sido a fonte dos vários projetos de pesquisa da Rede sobre esta temática, e de um grande número de publicações relevantes ao tema (http://waterlat.org/pt/publicacoes/).

As experiências existentes no mundo apontam que privatizar o setor de saneamento traz prejuízos às populações. De que forma?

Em vista da evidência histórica, a pergunta, na verdade, teria que ser “por que eles insistem em privatizar os serviços de saneamento, se a história dos países desenvolvidos demostra que essa política é falida?”. A história do desenvolvimento dos serviços de saneamento nos países que conseguiram resolver o problema de universalizar o acesso, como nos países da Europa ocidental, os Estados Unidos, etc., tem lições importantes ao respeito, e que não são discutidas na América Latina com suficiente profundidade.

Quando esses serviços foram desenvolvidos originalmente em países como Inglaterra, França ou, posteriormente os Estados Unidos, para dar alguns exemplos clássicos desde o fim do século 18, se entendia que ter água na torneira era somente para os setores mais ricos da população, o serviço de água era considerado um serviço mercantil, um contrato entre uma empresa privada e um cliente privado.

Esse enfoque privatista da provisão da água para consumo humano prevaleceu até o fim do século 19 nesses países, mas teve que ser substituído por um novo tipo de gestão porque ele não atendia às grandes necessidades das populações, especialmente das camadas mais pobres. O regime privatista de provisão da água era excludente, era só para quem podia comprar o serviço, e por isso e outras razões finalmente o Estado teve que assumir o controle para garantir a universalização do acesso. No caso dos serviços de esgotamento sanitário e drenagem, aí foi diretamente o Estado que teve que assumir desde o início, pois as empresas privadas não se interessavam, a “água suja” não era considerada um bom negócio.

Por exemplo, na cidade de Londres, um governo do Partido Conservador, o partido dos empresários, criou uma empresa pública de saneamento no ano 1902, terminando com a privatização dos serviços, já que esse modelo não dava conta das necessidades da população. Ainda assim, o Estado somente conseguiu a universalização do acesso aos serviços de saneamento durante a segunda parte do século 20. Como sabemos, apesar dessa história, a partir da década de 1980 temos assistido a um retorno das políticas privatistas no setor de saneamento. Precisamente, já temos muita evidência também dos impactos dessas políticas, que foram implementadas em muitos de nossos países. Entre os principais problemas identificados deve-se destacar:

O caráter não democrático dos processos de privatização. Em geral, as decisões de privatização, não só no setor de saneamento, têm sido tomadas contra a vontade das grandes maiorias, frequentemente por meio de decisões tomadas sem consulta, e certamente sem mecanismos adequados de monitoramento.

Consequentemente, os processos de privatização têm sido caracterizados por elevados níveis de corrupção. Na minha opinião, a corrupção e possivelmente a forma mais primitiva de “parceria público-privada” que já conhecemos. Lamentavelmente, a pesar da evidência de corrupção em grande escala nas privatizações realizadas desde a década de 1980 em nossos países, incluído Brasil, esse tema não parece atrair ações na justiça, como tem acontecido com outros processos de corrupção mais recentes. Parece que não se aplica o mesmo critério de justiça, e que a corrupção conectada com as privatizações é aceitada, tolerada ou até justificada. Existe um silêncio surpreendente sobre esse tema, algo que é urgente revisar.

A privatização dos serviços de saneamento, previsivelmente, não contribuiu a resolver os graves problemas que confronta o setor. A evidência das pesquisas demonstra que as empresas privadas, como é de esperar, se concentram nas áreas que são comercialmente viáveis, normalmente nas cidades mais ricas, ou nos setores mais ricos das cidades.

O problema é muito mais grave nas áreas rurais, e obviamente as empresas privadas não se interessam nessas áreas. Também, um dos argumentos utilizados na década de 1990 para promover as privatizações era que o Estado não podia investir, e, portanto, era necessária a participação privada, já que os empresários iriam a contribuir com o investimento requerido para resolver os problemas que afetam ao setor.

Esse argumento falacioso rapidamente ficou exposto como uma mentira, já que o investimento privado nunca chegou na escala prometida e apenas representou uma fração muito baixa dos recursos investidos. Dado que as instituições internacionais de desenvolvimento, como o Banco Mundial ou o Banco Interamericano de Desenvolvimento, e muitos governos também continuam a promover a política privatista, uma consequência que deve ser destacada é o enfraquecimento do setor público, seja para regular e controlar ou para fornecer os serviços públicos essenciais, incluídos os serviços de saneamento.

Esse enfraquecimento do papel do Estado tem sido planejado e implementado sistematicamente, com impactos negativos e de longo prazo, sobre tudo em relação aos setores mais vulneráveis da população. Não surpreende que os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), que visavam reduzir pela metade a proporção de população do planeta que não tem acesso aos serviços de saneamento para o ano 2015 não foram atingidos em um grande número de países. Na América Latina, 11 países não atingiram a meta de reduzir pela metade a população sem acesso a água limpa, enquanto 19 países não atingiram a meta de esgotamento sanitário. Além disso, os dados oficiais devem ser analisados com muito cuidado, já que não tomam em conta, por exemplo, a qualidade da água que chega às pessoas: se tomamos isso em conta, fica claro que o número de países que não atingiram os ODM é mais elevado ainda.

A privatização também provocou um aumento dos conflitos sociais, devido aos impactos dessas políticas, sobretudo nas populações mais pobres. Aumentos de tarifas não justificáveis, orientados a garantir o lucro dos acionistas das empresas privadas e não dirigidos a realizar os investimentos necessários para garantir um acesso universal aos serviços, têm sido uma das causas recorrentes de conflito. A má qualidade dos serviços e a falta de regulação adequada têm sido também uma causa regular de conflito.

A privatização visa transformar o acesso aos serviços de saneamento numa transação comercial, anulando a ideia de que existe um direito de cidadania a esse acesso, um enfoque que tem sido confrontado pela resistência das populações. Um caso emblemático, bem conhecido, é o da “Guerra da Água” que aconteceu na cidade de Cochabamba, Bolívia, em 1999-2000, onde os impactos negativos da privatização da empresa municipal de saneamento levaram a uma mobilização massiva, causando uma crise política nacional e a remunicipalização da empresa privatizada. Existem muitos outros casos, menos conhecidos, sobre os quais temos publicado abundantemente.

É importante destacar que o fracasso das privatizações da década de 1990 levou inclusive instituições como o Banco Mundial a reconhecer o problema. Por exemplo, no Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2004, o Banco afirmou que é um equívoco:

concluir que o governo deveria desistir e deixar tudo para o setor privado. […] Se indivíduos são deixados à própria sorte, eles não darão níveis de educação e saúde que eles coletivamente desejam […] Isto não só é verdade na teoria, mas na prática nenhum país conseguiu melhorias significativas na mortalidade infantil e educação primária sem o envolvimento governamental. Além do mais, como mencionado antes, o setor privado ou a participação de ONGs na saúde, educação e infraestrutura não ocorre sem problemas – especialmente em atingir os pobres. A posição extrema é claramente não desejável (World Development Report 2004. Making Services Work for Poor People, Washington D.C.: World Bank and Oxford University Press, 2003, p. 10-11). disponível em (http://hdl.handle.net/10986/5986).

Igualmente, Katherine Sierra, a representante do Banco Mundial no Foro Mundial da Água de 2006, que teve lugar na Cidade do México, reconheceu que:

Sempre o peso do investimento em água tem que ser fornecido pelo setor público […] dada a magnitude dos recursos necessários, nos anos 90, nós acreditamos que o setor privado poderia fazer importantes investimentos para salvar o setor da água. No entanto, não tem havido muito investimento privado e 90% dos recursos vieram do setor público, mesmo quando a participação privada estava no seu pico (Jornal La Jornada, 17 de março de 2006. Disponível em: http://www.jornada.unam.mx/2006/03/17/index.php?section=sociedad&article=046n1soc.).

Também, em 2003 o diretor do escritório do Banco Mundial no Brasil, Vinod Thomas, declarou que:

quando há o risco de a privatização criar um monopólio, é melhor deixar o Estado cuidar do serviço. Thomas cita Rússia, que teve um dos piores desempenhos sociais dos últimos anos, como exemplo de privatizações que não deveriam ter acontecido (“BIRD faz autocrítica sobre privatizações e elogia Cuba”, Folha de S. Paulo, 21 de setembro de 2003, p. B3).

Desafortunadamente, parece que aquele momento de reconhecer o fracasso da política privatista tem passado, e as instituições e os governos voltam agora a promover essas mesmas políticas, sem que exista uma razão que as justifique. Se trata de uma decisão ideológica, que visa promover a acumulação privada do lucro como o motor principal da economia dos países, ignorando as consequências negativas que essas políticas têm para os setores mais vulneráveis.

Como você avalia a atual política do governo brasileiro de, através de um programa de privatizações financiado pelo BNDES, fazer com que a iniciativa privada explore o setor de saneamento nos estados?

Sobre a base da experiência acumulada, e em conexão com meus comentários prévios, eu acho que a política atual de privatizações é muito preocupante. Já sabemos que a privatização de serviços essenciais não resolve o problema de falta de acesso a esses serviços. Os governos têm responsabilidade de garantir acesso universal a serviços de qualidade, e a política de privatizações não responde a esse objetivo.

De fato, ao implementar essa política o governo brasileiro arrisca o futuro do próprio setor do saneamento no país, com impactos negativos potencialmente graves sobre os setores mais vulneráveis. Me limito aqui a citar novamente as fontes do Banco Mundial referidas acima, que não são suspeitas de estar contra as privatizações, mas alertaram que o Estado deve ter o papel determinante, tanto nos investimentos como na provisão dos serviços, já que o setor privado, incluindo o setor das ONGs e outras formas de organização comunitária, não podem ser responsabilizados pelo fornecimento de serviços essenciais. Nenhum pais do planeta resolveu o problema privatizando, e, portanto, acho que a política de privatizações massivas do governo brasileiro deve ser reconsiderada, pois se corre um grave risco de aprofundar as condições de vulnerabilidade da população e exacerbar as desigualdades e injustiças no país, que já são extremamente elevadas.

Estudos internacionais apontam que nos últimos 17 anos, 267 cidades do mundo reestatizaram sistemas de água e esgoto após os péssimos resultados das privatizações. O Brasil estaria na contramão de uma tendência mundial de reestatização?

Efetivamente, existe uma tendência muito clara a reverter processos de privatização e voltar a colocar as empresas que tinham sido privatizadas no setor público. Incluso no Reino Unido, onde os serviços de saneamento da Inglaterra foram privatizados em 1989 pela primeira-ministra Margaret Thatcher, o Partido Trabalhista (Labour Party) que atualmente lidera as intenções de voto no país tem anunciado que iria a cancelar as privatizações e voltar os serviços ao setor público. Um caso muito significativo foi a privatização dos serviços de saneamento na cidade de Buenos Aires, privatizados em 1993, com resultados desastrosos.

Os serviços voltaram ao setor público no ano 2006, por decisão do governo nacional, sobre a base dos relatórios do regulador que demonstrou a ineficiência e a falta de cumprimento com os contratos de parte da empresa privada. Temos realizadas várias pesquisas sobre esse caso e publicado recentemente um artigo sobre o tema aqui no Brasil: “Águas públicas: Lições de Buenos Aires”, publicado pela Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico da Câmara Municipal do Rio de Janeiro 2015-2016 (disponível em: http://bit.ly/LivroAgua1ed). Outro caso notável é o da cidade de Paris, onde foi cancelado o contrato de privatização e os serviços voltaram a mãos públicas recentemente.

Esse caso também é tratado no livro publicado pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro citado anteriormente (http://bit.ly/LivroAgua1ed). Nós também convidamos a ex-vice-prefeita de Paris a fazer uma apresentação sobre as razões e o processo que levaram à remunicipalização dos serviços da cidade numa conferência que organizamos no Recife em 2003. Posteriormente publicamos a conferência dela, um texto que vale a pena revisar: “A remunicipalização dos serviços de saneamento em Paris, França” (disponível em: http://waterlat.org/WPapers/WATERLAT%20Working%20Paper%20SPIDES%201.pdf).

Temos também muitos outros casos ressonantes, como o cancelamento da privatização dos serviços de saneamento em Berlim, Alemanha, em Atlanta nos Estados Unidos, e muitas outras cidades em vários continentes. Neste momento se está dando um processo massivo de remunicipalização de serviços de saneamento que tinham sido privatizados na Espanha e também em Portugal. Certamente pode-se concluir que o Brasil está na contramão de uma tendência mundial, e ao menos neste caso, eu acho que não é uma política adequada para o país, pelo contrário, acho que pode trazer consequências negativas muito graves.

No Ceará, o governo do estado garantiu que não vai privatizar a Cagece (Companhia Estadual de Água e Esgoto), mas aderiu ao Programa de Privatizações do BNDES e estuda a possibilidade de uma PPP (Parceria Público-Privada) nas regiões metropolitanas de Fortaleza e do Cariri (justamente as áreas de maior densidade populacional). Uma PPP pode também trazer consequências negativas semelhantes às de uma privatização convencional?

O modelo das PPPs surgiu em boa medida como uma resposta ao fracasso do modelo de concessões de longo prazo que caracterizou a etapa das privatizações dos anos 1990. É importante clarificar uma coisa, porque é fácil de gerar confusão: não se deve confundir participação do setor privado com PPPs, que são uma das múltiplas formas em que o setor privado participa no setor de serviços públicos, incluído o de saneamento. Tem PPPs que de fato são uma nova forma de privatização, embora os governos e as instituições neguem isso. Nessas PPPs, o setor privado não investe, como tampouco investe nas privatizações por concessão ou contrato (como lembra a citação do Banco Mundial referida acima, quem investe é sempre o Estado), mais tem garantido o lucro privado e, muito frequentemente, também tem garantido o controle estratégico privado do processo.

Nesses casos, o Estado se desresponsabiliza, transfere a responsabilidade a um ator privado, que obviamente representa os interesses de seus acionistas, não os interesses da cidadania, muito menos os interesses das parcelas mais pobres da população. Além disso, fica claro pela experiência recente na América Latina, e no Brasil particularmente, que as PPPs são uma nova fonte de irregularidades, muito difíceis de ser controladas pelo governo e pela cidadania, sobretudo no que corresponde aos processos massivos de corrupção.

Como já disse antes, e como o próprio Banco Mundial reconheceu, nenhum pais do planeta resolveu a provisão de serviços públicos essenciais com caráter universal sem que seja o Estado o ator central na organização, financiamento, e provisão direta desses serviços, sobretudo quando se trata de alcançar as populações pobres, vulneráveis, que não são atrativas para as empresas privadas.

Quando o Estado entrega ao setor privado a prestação de serviços públicos nas áreas nobres e nas áreas que têm boa arrecadação, o que acontece com muitas PPPs, o resultado é o aprofundamento das grandes desigualdades e injustiças já existentes, um retrocesso no processo de democratização, retirando direitos da cidadania e afetando a própria capacidade do Estado para intervir e reduzir os impactos negativos que afetam aos setores ainda não atendidos pelos serviços públicos essenciais.

A política de privatizações adotada no período neoliberal do final dos anos 1990 e início dos anos 2000 no Brasil ganhou ao longo do tempo um certo nível de rejeição da população brasileira. A PPP seria uma forma de privatizar, porém numa tentativa também de “camuflar” e evitar o possível desgaste herdado pelas políticas privatistas do passado?

Como disse antes, acho que sim, ao menos o modelo de PPPs que tem sido promovido pelas instituições internacionais de desenvolvimento e pelos governos, na prática é uma forma de “privatização pela porta detrás”. O fracasso das privatizações da década de 1990 levou as empresas privadas a preferir não se envolver com a propriedade da infraestrutura e até também preferir evitar concessões de longo prazo que envolviam um compromisso de investir em infraestrutura. O novo modelo transparece o fato de que o investimento é sempre do Estado, e que o setor privado se concentra fundamentalmente na extração de lucro, dividendos para seus acionistas.

Esta análise é sustentada também pelo fato de que as instituições de desenvolvimento internacional, e lamentavelmente eu devo incluir também aqui a algumas instituições das Nações Unidas, têm consistentemente negado um apoio claro e duradouro aos projetos alternativos às PPPs que têm sido defendidos pelos movimentos sociais, os sindicatos, as organizações de defesa de empresas públicas, etc., como ser as “parcerias público-públicas”, as “parcerias público-comunitárias”, e as “parcerias comunitário-comunitárias”.

Estas propostas têm sido defendidas no marco das Nações Unidas e de outras instituições, mas eles não apoiam estas alternativas, o apoio maciço que eles dão é para as parcerias público-privadas, que são a forma preferida das grandes multinacionais de serviços e seus aliados nas instituições internacionais e nos governos que defendem as políticas privatistas.

Que boas experiências de sistemas públicos de saneamento poderiam servir de exemplo para o Brasil?

Muitas das boas experiências de sistemas públicos de saneamento são do Brasil, embora algumas estejam sendo seriamente afetadas pelas políticas privatistas. Um caso clássico é o do serviço municipal da cidade de Porto Alegre, o DMAE, que atualmente está sendo ameaçado com a privatização, apesar de ter sido mencionado pelo próprio Banco Mundial e outras instituições internacionais como um exemplo de gestão pública de qualidade.

Outros exemplos que se deveriam tomar em conta derivam dos processos que estão tendo lugar, como já comentamos, em muitos países que estão revertendo processos de privatização e reconstruindo formas de gestão pública (nacional, estadual, municipal, etc.) dos serviços de saneamento básico. Isso está acontecendo sobre tudo na Europa e nos Estados Unidos, mais também na África, na Ásia e na América Latina. É importante observar esses processos, que são ignorados pelas instituições internacionais de desenvolvimento e pelos governos que promovem politicas privatistas, já que contêm experiências valiosas para o Brasil, como os casos das cidades de Paris e Berlim já mencionados.

De que forma o Brasil pode ter uma política pública que garanta a universalização do saneamento público com qualidade?

Acho que na última década o Brasil tinha desenvolvido uma série de condições muito importantes para estabelecer uma política pública dessas caraterísticas. A criação da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental no marco do Ministério das Cidades, com políticas inspiradas na Constituição de 1988 no referido aos serviços essenciais, foi um momento marcante da etapa recente.

A Lei 11.445/2007 de Saneamento Básico, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) também iniciado em 2007, o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) de 2013, e outras diretrizes e ações importantes conformaram um leque de mecanismos institucionais provavelmente inédito na história recente de América Latina no setor de saneamento básico, pela escala e magnitude dos programas e do investimento. Claramente, não se trata de mecanismos perfeitos, e como sabemos sua implementação tem confrontado inúmeros problemas, incluindo os lamentáveis eventos de corrupção público-privada, a forma mais antiga de PPP que já conhecemos. Mas eu acredito que o país não pode abrir mão dessas experiências, que lamentavelmente correm o risco de ser completamente erradicadas e trocadas por políticas regressivas, que podem trazer um enorme retrocesso para o pais.

É urgente retomar o caminho de formulação de políticas públicas orientados pelos objetivos da universalização, da igualdade, da inclusão social, da participação cidadã substantiva, não meramente eleitoral, baseada em mecanismos de democracia direta, que promova um maior controle social sobre os políticos profissionais, os especialistas, as instituições de governo e as empresas públicas. Muitos destes aspectos democratizantes ficaram somente no papel e não foram implementados na prática sequer durante os governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores, também porque a implementação dessas políticas democratizantes confrontou enormes resistências dos setores conservadores que rejeitam essas transformações do status quo. É necessário lembrar que vivemos numa sociedade cuja dinâmica deriva do processo de acumulação privada de ganancia característica do sistema capitalista.

Embora, é muito importante também lembrar que a própria democracia capitalista tem desenvolvido mecanismos muito importantes, que parecem estar ausentes em muitos lugares da América Latina, incluindo o Brasil. Os direitos de cidadania, por exemplo, são de fato mecanismos desenvolvidos no marco da democracia capitalista, e no momento atual a defesa desses direitos constitui um desafio fundamental para a preservação das condições básicas de sobrevivência da população.

A universalização do acesso a serviços de saneamento básico é um dos componentes essenciais dessas condições, e somente poder ser atingida por uma mudança radical das políticas que estão sendo implementadas. No ano 2015, diante do fracasso dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) as Nações Unidas adotaram os novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que são muito mais abrangentes, já que visam a universalização do acesso aos serviços de água, esgotamento sanitário e higiene para 2030. Faltam somente 13 anos para essa data, e eu acho que se não se altera radicalmente o enfoque atual baseado em privatizações massivas, não só o Brasil não vai a atingir os ODS mais corre um sério risco de sofrer uma regressão em relação ao acesso aos serviços públicos essenciais.

Não podemos correr esse risco, pois esse tipo de regressão não se limita ao acesso aos serviços essenciais mas repercute diretamente sobre o próprio processo de democratização da sociedade. Não queremos ver um retrocesso do processo democrático no Brasil.