A luta pela soberania nacional nos 195 anos da Independência

"Às vésperas do bicentenário da Independência, o Brasil precisa completar sua autonomia como nação.Para isso é urgente a aliança das forças da nação, contra a anti-nação – aliança objetiva em torno de um programa avançado de desenvolvimento econômico e social, em defesa dos interesses nacionais e populares".

José Carlos Ruy*

O Grito do Ipiranga - Pedro Américo - Divulgação

O “grito do Ipiranga”, que ocorreu em 7 de setembro, há 195 anos, foi um ponto alto no processo histórico, que já durava algumas décadas, da de emancipação política do Brasil. Processo marcado por acontecimentos importantes, como a transferência da Família Real para o Rio de Janeiro (1808), a Revolução Pernambucana (1817) e a Revolução Liberal em Portugal (1820) e que, ao contrário da versão amplamente dominante, não foi pacífico mas concluído com confrontos militares intensos (na Bahia, Pará, Maranhão e Piauí) e forte rebelião popular.

Envolveu acontecimentos e forças políticas e sociais dos dois lados do Oceano Atlântico – na Europa, em Portugal e no Brasil.

A ideia de sediar no Brasil a monarquia portuguesa era antiga em Lisboa, e o projeto de mudar para o Rio de Janeiro a capital do império foi acalentada, como eventual sede de um grande império, por conselheiros do Marquês de Pombal que, entre 1751 e 1777, governou Portugal. Quando, em consequência da iminência de invasão por tropas de Napoleão, a mudança se concretizou, em 1808, não era uma ideia nova. A transferência teve o apoio militar, naval e diplomático da Inglaterra (a grande inimiga da expansão napoleônica) e fez da monarquia portuguesa a única, no continente europeu a não ser deposta por Napoleão.

No Rio de Janeiro, o dia a dia do governo coube a Rodrigo de Souza Coutinho, o Conde de Linhares. Político progressista, com as limites da época, foi a eminência parda das inúmeras iniciativas tomadas por D. João VI, para construir um aparelho de estado autônomo, no Rio de Janeiro, com a criação de instituições como tribunais, o Banco do Brasil, até a criação do Jardim Botânico, da Imprensa Régia e de uma fábrica de pólvora para tornar o reino militarmente autônomo. Herdeiro das idéias do Marques de Pombal, foi amigo e mentor de José Bonifácio, sobre quem teve grande influência.

Começava assim, em 1808, a epopeia do Brasil como nação independente – embora ainda unido a Portugal sob a mesma dinastia que governaria o país por mais oito décadas, até a proclamação da República, em 1889.

A transferência da Família Real foi o acontecimento histórico que acelerou a independência do Brasil que, sendo desde então a sede do império português, passou a ter a autonomia sui generis de ser o território colonial tornado sede do governo de um império mundial.

O estabelecimento da Família Real no Rio de Janeiro impediu a eclosão disruptiva, do sentimento nacional que crescia e se fortalecia entre os brasileiros; ela condicionou a forma não revolucionária assumida pela separação com Portugal.

Os grandes negociantes estabelecidos no centro-sul, especialmente a burguesia mercantil do Rio de Janeiro, passaram a ter forte influência junto ao príncipe regente D. João. Foram generosos e interesseiros financiadores dos gastos do Estado, e conquistaram cargos estratégicos no governo.

Outro marco fundamental daquela conjuntura foi a Revolução Pernambucana de 1817. Ela refletia o autonomismo que, desde o final do século XVIII, crescia entre os brasileiros. A população colonial estava “inquieta” e crescia a discussão sobre a obediência devida ao monarca, escreveu o historiador Carlos Guilherme Mota. Foi nesse contexto de forte insubordinação que ocorreu a Revolução Pernambucana de 1817.

Aquele movimento, que rejeitava a monarquia e pleiteava o sistema republicano, envolveu dois antagonismos básicos. Num nível repetia o velho enfrentamento, que já tinha pelo menos dois séculos e opunha a aristocracia rural brasileira aos mercadores portugueses. No outro nível da luta de classes estava a polarização, mais radical, entre senhores de terras e escravos e os trabalhadores escravizados.

Nesse caldo de cultura, a revolução eclodiu em 6 de março de 1817, tomou o poder, implantou reformas liberais e republicanas, e resistiu até 20 de maio daquele ano. Teve grande heróis entre seus protagonistas, com destaque para Frei Joaquim do Amor Divino Caneca.

Na Bahia, sentimento nacional semelhante animou a guerra popular pela Independência que mobilizou o povo pobre, negro e mestiço do Recôncavo Baiano, contra as tropas portuguesas comandadas pelo general Madeira de Melo, que foram derrotadas e expulsas em 2 de julho de 1823.

Em Portugal a conjuntura também fervilhava. Em 1821 eclodiu, na cidade do Porto, a revolução liberal que tomou o governo, impôs uma constituição a D. João VI e exigiu o retorno da Família Real.

Essa exigência teve reflexos contraditórios no Brasil. Uma minoria da classe dominante defendia o retorno a Lisboa mas a maioria queria a permanência do rei no Brasil. Temia que o país voltasse à situação de Colônia, com prejuízo para a burguesia mercantil sediada no Centro Sul, e no Rio de Janeiro em particular.

A consciência de que o Brasil era a parte principal do império português estava disseminada desde o final do século XVIII. Em 1821, em meio à crise provocada pelo debate em torno da volta da Família Real, um panfleto escrito em francês circulou no Rio de Janeiro, advertindo que Portugal não podia passar sem o Brasil e o Brasil não precisava de Portugal. Aquele folheto alertava que o retorno da Família Real seria o prelúdio da independência brasileira.

Foram os interesses materiais, de classe, da burguesia mercantil sediada no Sudeste, principalmente no Rio de Janeiro, que prevaleceram no processo da Independência. Em 1821 esses interesses haviam levado os grandes comerciantes à oposição à volta de D. João VI a Lisboa. Quando as suspeitas sobre as pretensões recolonizadoras da Revolução do Porto, cresceram e se fortaleceram, aqueles grandes comerciantes aderiram ao movimento de emancipação política. Destacou-se então a atuação de José Clemente Pereira, presidente do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, que promoveu a ligação entre aquela burguesia mercantil e os principais líderes do chamado “partido brasileiro”, diz a historiadora Lenira Menezes Martinho. Foram eles que caracterizaram a via não revolucionária para o rompimento com Portugal. Via de ruptura que Euclides da Cunha, em À Margem da história (1909) classificou pioneiramente como uma “paradoxal revolução pelo alto”.

Durante um largo período prevaleceu, ainda, entre os partidários da emancipação, a ideia da formação de um império dual, luso-brasileiro, com a família real residindo parte do tempo em Lisboa e outra no Rio de Janeiro. Mesmo José Bonifácio foi partidário dessa ideia até, pelo menos a metade do ano de 1822.

Depois do retorno da Família Real para Lisboa, em 1821, as atitudes do regente, príncipe D. Pedro, estavam de acordo com os interesses de classe do setor agro mercantil formado por negociantes de grosso trato, latifundiários, traficantes de escravos e controladores do comércio marítimo. Este foi o setor da classe dominante mais favorecido pela vinda da Família Real, que criou condições favoráveis à expansão da base material de sua existência.

Era uma força política que, preconizando a separação com Portugal, estava solidamente ligada à burguesia estrangeira, principalmente inglesa, como mostrou a historiadora Riva Gorenstein: “Era do interesse das firmas inglesas do Rio de Janeiro dar uma participação em seus negócios a elementos importantes da cidade, familiarizados com as peculiaridades do comércio local e bem relacionados com a burocracia político-administrativa da Corte. Também era de seu interesse terem como sócios negociantes que se prestassem a servir como ‘testas-de-ferro’ na aplicação de seus capitais financeiros em empreendimentos a eles vedados, tais como o tráfico negreiro e a redistribuição de mercadorias importadas. Várias firmas britânicas estiveram envolvidas, direta ou indiretamente, nessas atividades”.

O tráfico de escravos era uma das principais atividades do comércio externo, pelo devido ao grande volume de dinheiro que envolvia e ao grande número de pessoas que empregava. Os traficantes (só no Rio de Janeiro havia 65 grandes negociantes) constituíam “uns dos mais fortes grupos de pressão existentes na época”, diz Gorenstein.

A ideia de Independência definitiva e completa se configurou claramente diante das ameaças recolonização, e enfrentou também aquilo que a classe dominante via como ameaça de radicalização democrática, sobretudo o medo de um grande levante dos escravos no Brasil.

A evolução para o predomínio da ideia da separação definitiva foi rápida, e reagiu aos temores de imposição recolonizadora pelas Cortes de Lisboa. Ocorreu em um tempo relativamente curto no qual a evolução da posição brasileira logo superou a tese da união com Portugal, passando à reivindicação da autonomia e de um governo brasileiro separado. Evolução que trouxe “consigo uma redefinição da nação, que não mais poderia ser portuguesa”, dizem os historiadores Andréa Slemian e João Paulo G. Pimenta.

O setor agro mercantil temia, escreveu Gorenstein, que a radicalização “levasse à desorganização do sistema escravista de produção, do comércio interno de abastecimento e das relações mercantis do Brasil com as nações estrangeiras.” Temia também “a população livre e marginalizada do processo produtivo se revoltasse, passando a exigir para si uma série de direitos políticos e sociais. E que os movimentos de rua levassem à anarquia e à destruição da propriedade privada”.

Contra qualquer ação revolucionária mais radical, que pudesse colocar em risco seus objetivos e interesses, aqueles poderosos financiaram a repressão a movimentos de rebeldia. Pretendiam a mudança política que a Independência significava mas sem qualquer mudança que alterasse a organização social baseada no escravismo, no latifúndio e no comércio colonial.

Para manter a ordem escravista e latifundiária e evitar levantes revolucionários, os comerciantes do Rio de Janeiro e do Sudeste financiaram a repressão contra todos os movimentos dissidentes de base popular. Em 1817, a repressão à Revolução Pernambucana foi financiada por eles, que mobilizaram sete mil voluntários e arrecadaram 200.000$000 contos de réis (60 mil libras esterlinas, na época), dizem Gorenstein e Varnhagen.

A ação popular na Independência é pouco estudada, e há mesmo historiadores que sugerem que ela nem mesmo teria existido, o que não é verdade. Setores populares, plebeus, de escravos, ex-escravos, brancos pobres e mestiços participaram intensamente da luta. Publicaram jornais com seus pontos de vista. Um exemplo é a Nova Luz Brasileira, de Ezequiel Correia dos Santos e João Batista de Queirós, que circulou no Rio de Janeiro alguns anos depois, em 1829, e trazia a visão de “artesãos, comerciantes, farmacêuticos, soldados, ourives, representantes da pequena burguesia e das camadas populares urbanas”, diz a historiadora Emília Vioti da Costa.

Aquele jornal defendia a monarquia constitucional representativa, e condenava “a escravidão e a discriminação racial”, chegando “a propor a emancipação dos escravos com a sua adstrição à terra pelo prazo de trinta anos”, afirma a historiadora.

A manutenção dos interesses de classe da oligarquia agro-exportadora e escravista no processo da Independência refletiu também ao fato da esravidão existir em todo o território do país. De tal forma que o temor de um levante escravo (o medo de um novo e gigantesco Haiti, a revolução que ocorrera poucas décadas antes na ilha caribenha), e a imposição da repressão da massa escrava e sua submissão unificou o cojnunto da classe dominante, latifundiária e escravista. Este foi um fator objetivo que limitou qualquer ação radical da classe dominante que pudesse mobilizar e inquietar a massa popular. Em seu estudo sobre o processo político da Independência, Slemian e Pimenta destacaram, com ênfase, o papel ideológico desempenhado pela classe dominante agromercantil e escravista sediadas no Rio de Janeiro, que se beneficiou desse medo de um levante escravo generalizado, como ocorreu no Haiti três décadas antes. Houve quase um pânico que unificou os vários segmentos da classe dominante brasileira, nas diversas províncias, em torno do governo sediado no Rio de Janeiro, sob hegemonia daquele setor agromercantil, e da ação militar que podia mobilizar para garantir a ordem escravista.

As linhas de ação que podem ser identificadas no processo da Independência envolvem, de um lado, a luta entre o povo e suas manifestações libertárias, antiescravistas, e republicanas ou constitucionalistas, e a classe dominante que rejeitava todo radicalismo democrático que ameaçasse seus privilégios. Classe dominante dividida em torno de duas concepções que se opunham. Havia aqueles, cujo símbolo é José Bonifácio, pretendiam usar a força do governo e do Estado para promover o desenvolvimento econômico do país recém independente, e aqueles cujo programa era a Independência com a permanência do escravismo, do latifúndio e da mesma posição subordinada e colonial que o Brasil tinha na divisão internacional do trabalho.

José Bonifácio foi um estadista preocupado com a criação de uma identidade nacional na qual “seus moradores sejam iguais entre si e se olhem como irmãos e concidadãos”. Defendeu a emancipação (“gradual”) dos escravos e a divisão das terras não cultivadas. Pregou a criação de mecanismos de promoção social para negros e índios para integrá-los à sociedade nacional e defendeu a mestiçagem que levaria a nova “raça” brasileira. Defendeu a educação pública para elevar o nível cultural do povo. Em relação ao desenvolvimento econômico, queria a criação de indústrias e o apoio oficial à agricultura que produzisse alimentos.

Para aplicar este programa, explicou a historiadora Emília Viotti da Costa, ele foi partidário de “um governo apoiado nas camadas conservadoras, nem democrático, nem absolutista, controlado por um dispositivo constitucional parlamentar: uma monarquia constitucional representativa com exclusão do voto popular”.

Seu programa, que pretendia usar o poder do governo – do Rei, no caso – para modernizar e desenvolver o país que se formava o colocou em rota de colisão com o setor agro mercantil, escravista e latifundiário que comandou o processo de emancipação do Brasil. E foi derrubado do governo pela oposição dos negociantes e grandes fazendeiros que rejeitavam seu programa social que incluía medidas inaceitáveis para aquele setor da classe dominante. Eram ideias intoleráveis para o setor agro mercantil e escravista, diz Gorenstein.

O Brasil surgiu como nação politicamente autônoma em 1822 num cenário nacional e mundial semelhante ao atual, quando comemora 195 anos de independência. Como hoje, aquele era um cenário de grandes mudanças na conjuntura mundial, que rejeitava a ordem internacional nascida da Revolução Francesa de 1789 e sua irradiação pelo mundo, nos rastros das tropas de Napoleão. Foi um cenário dominado pela Inglaterra, de um lado, pela reacionária Santa Aliança (Alemanha, Áustria e Rússia), e pela restauração monarquista ligada a ela – um cenário em que a aristocracia tentava extinguir os avanços anti-feudais que as tropas de Napoleão difundiam pela Europa.

No cenário interno brasileiro, se fortaleceu o mesmo conflito que atravessou toda a história independente do país e hoje, 195 anos depois, ainda está presente, com força, na vida política, social e econômica – o choque que opõe as forças da nação (trabalhadores, empresários da produção, intelectuais, partidários do progresso social) às forças anti-nação (que vivem da especulação financeira, dos ganhos obtidos com a aliança com o imperialismo, partidários do atraso, do subdesenvolvimento e da subordinação aos interesses externos). Conflito entre as forças da nação e anti-nação que permanece, junto com o temor de grande parte da classe dominante que resiste à democracia e rejeita qualquer aliança que inclua os setores populares e marginaliza os trabalhadores, principalmente aqueles que trazem na cor da pele a marca do passado escravista que ainda persistem.

Às vésperas do bicentenário da Independência, o Brasil precisa completar sua autonomia como nação. Fortalecer-se ante as grandes nações e tomar as rédeas de sua soberania não apenas política, mas econômica e social. Para isso é urgente a aliança das forças da nação, contra a anti-nação – aliança objetiva em torno de um programa avançado de desenvolvimento econômico e social, em defesa dos interesses nacionais e populares. De todos aqueles para os quais a Independência é sinônimo democracia, soberania nacional, desenvolvimento e bem estar para todos.

*José Carlos Ruy é jornalista e escritor.

Referências

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