Farc constrói a paz como “a mais bela das tarefas”

O povo colombiano está confiante no futuro. A paz já brota, frágil ainda, mas envolvendo a todos com sua mensagem de esperança. A luta que se mantém é pela sua afirmação. Para isso, não só a memória, a proteção aos direitos humanos e a inclusão política com justiça social são fundamentais, mas também o fim definitivo do militarismo no país. O movimento da paz de todo o mundo deve por isso, reforçar o apoio e a solidariedade ao povo colombiano na consecução deste compromisso.

Por Socorro Gomes*

Farc - partido - Divulgação / Farc

No lançamento do novo partido político colombiano Força Alternativa Revolucionária do Comum, após a renúncia às armas pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (Farc-EP), a confiança no futuro e a determinação de uma luta de mais de cinco décadas contagiavam o Congresso de fundação no anúncio de novos desafios.

Reunida em plena capital colombiana, Bogotá, no final de agosto, recebendo convidados de mais de 60 países e a confiança popular, a liderança até então perseguida e criminalizada das Farc reiterava a esperança e a responsabilidade de toda a nação na transformação do país.

O conflito armado na Colômbia durou mais de cinco décadas e matou mais de 220 mil pessoas, deslocando forçosamente quase seis milhões. Ainda estão desaparecidas mais de 25 mil pessoas e há ao menos sete mil presos políticos esperando a liberdade – cerca de 3.400, membros das Farc e muitos outros, líderes ou membros de movimentos populares e das forças políticas de oposição historicamente perseguidas e brutalmente reprimidas. Há ainda casos como o de Simón Trinidad (Ricardo Palmera), condenado a 60 anos de prisão nos EUA, após ter sido extraditado por seu próprio país para ser julgado em solo estadunidense, em 2004. Até hoje, a anistia acordada em 2015 foi concedida a menos de um terço dos prisioneiros. Estabeleceu-se o Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e Não Repetição que inclui uma Jurisdição Especial para a Paz e a defesa dos direitos humanos.

A luta pela justiça social num regime profundamente oligárquico foi brutalmente reprimida pelos sucessivos governos colombianos, com o apoio direto dos Estados Unidos e o patrocínio às forças paramilitares responsáveis por um verdadeiro genocídio. Além de provocar inaudito sofrimento a todo o povo colombiano, durante meio século o conflito serviu como um grande portão de entrada para o imperialismo estadunidense e a militarização de toda a América Latina.

No país, o Plano Colômbia e a disseminação de mais de 10 bases militares dos EUA eram os pontos mais evidentes desta política. Por isso, os movimentos da paz de todo o planeta acompanharam com determinação a luta do povo colombiano pelo fim da violência e, na região, reiteramos que a Paz da Colômbia é a Paz da América Latina.

Desde 2012, temos apoiado com empenho os diálogos desenvolvidos pela liderança das Farc e o governo colombiano em Havana, Cuba, um dos países garantidores do processo. A condução das negociações foi acolhida de forma solidária e engajada pela ilha revolucionária, que depositou toda a sua confiança e apoio na abertura das vias que possibilitariam a construção da paz na Colômbia.

Atentos para um processo que só seria legítimo se incluísse a população em suas diversas regiões e suas demandas por uma paz justa, com a consecução da verdade, o fim do paramilitarismo, da repressão e perseguição às lideranças populares e a inclusão política e social, as forças democráticas acompanharam as negociações de perto como a promessa de abertura de um novo capítulo na história da região.

No Congresso do novo partido, o líder Timoleón Jiménez (pseudônimo de Rodrigo Londoño Echeverri, também conhecido como Timochenko) garantiu que a Farc seguirá “lutando pelo estabelecimento de um regime político democrático que garanta a paz com justiça social, respeite os direitos humanos e um desenvolvimento econômico com bem-estar para todos os que vivemos na Colômbia.”

Fica evidente que a fundação do partido é um passo decisivo para a constituição de um instrumento político capaz de encarnar, ao lado de outras organizações populares, os sonhos e as esperanças revolucionárias do povo colombiano. Mas os desafios ainda são vários, como pontuaram no congresso os líderes do novo partido, pelo que os colombianos e as colombianas devem seguir contanto com a nossa solidariedade resoluta.

Processo de paz, compromisso com a transformação

Defendendo ainda o direito legítimo do povo colombiano e das forças insurgentes à resistência contra a brutalidade da política repressiva dos sucessivos governos, com destaque especial para o de Álvaro Uribe (2002-2010), saudamos efusivamente a dedicação das Farc e o empenho do Exército de Libertação Nacional (ELN) pelo diálogo e comemoramos a reta final aberta em 2016 e 2017. Esta nova rota possibilitou, entre outros compromissos de ambos os lados, o desarmamento da guerrilha, juntamente com a luta legítima por um projeto que enterre o destrutivo legado neoliberal e neocolonial no país, de subserviência ao imperialismo estadunidense.

Ao mesmo tempo, denunciamos enfaticamente a persistência do paramilitarismo. Pôr fim a este fenômeno tão pernicioso à democracia é responsabilidade do governo de Juan Manuel Santos. O alerta para essa realidade tem sido reiterado pelas Farc há anos, inclusive durante o processo de paz.

De acordo com organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, em 2016, quase 80 ativistas sociais foram assassinados – 17 deles apenas da Escola Nacional Sindical – e a atuação paramilitar continua, como no caso das herdeiras das autodenominadas Autodefesas Unidas da Colômbia, inclusive em territórios antes protegidos pelas Farc. Zonas de interesse para a agroindústria e para mineradoras são destaques, onde populações camponesas, indígenas e de afrodescendentes resistem. Ao mesmo tempo, lideranças urbanas também denunciam as graves ameaças à sua segurança, ameaças que não se restringem apenas ao paramilitarismo. Ainda há inaceitável demora na investigação de milhares de casos de execuções extrajudiciais conduzidas por forças oficiais e de operações montadas para culpar alvos dos movimentos sociais, chamados “falsos positivos”, na conhecida busca por criminalizar os movimentos populares.

Mas o povo colombiano resiste, valente, como nos últimos 53 anos – desde que, em 1964, o hediondo ataque a Marquetalia encomendado pela oligarquia colombiana contra camponeses inaugurou o conflito armado, no âmbito do Plano Laso (Operação de Segurança da América Latina, na sigla em inglês) do governo de John F. Kennedy, operação que era parte da chamada “Aliança para o Progresso” lançada em 1961, para, na verdade, conter as forças progressistas e revolucionárias na região.

Daí a necessidade do compromisso de todas as forças da paz de acompanhar a luta do povo colombiano por uma paz justa e duradoura, com justiça social e a transformação política que extirpe de uma vez por todas o militarismo e os métodos violentos da oligarquia.

O novo capítulo que se anuncia reconhece, finalmente, a inclusão política e a luta social como empenhos legítimos das Farc e de outras forças insurgentes. Cabe agora o compromisso geral e irrestrito com a construção da paz com justiça social e a desmilitarização da Colômbia. A luta é contínua, afinal, como disse Jiménez no Congresso, “a paz é a mais bela das tarefas”.