"Ciência brasileira precisa de um banho de povo", diz Miguel Nicolelis

"Tenho certeza que se os cientistas brasileiros começarem a dialogar com a sociedade e a sociedade brasileira estiver disposta a ouvi-los, vamos ter cientistas falando em cada esquina de cada cidade do Brasil, porque é muito fascinante falar sobre a história do criador de tudo, que é o nosso cérebro".

Miguel Nicolelis - Foto: Divulgação

 Em agosto de 2016, o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis fez manchetes em jornais do mundo todo ao anunciar que o Projeto Andar de Novo, o qual lidera, obteve resultados que a comunidade científica não teria sonhado: os oito pacientes paraplégicos, voluntários do projeto, conseguiram recuperar parte dos movimentos de suas pernas e a sensação do tato. Os resultados sem precedentes foram publicados na revista especializada Scientific Reports.

Em resumo, o artigo científico reflete os resultados dos primeiros 12 meses da pesquisa clínica do projeto. A conclusão é que após uma espécie de treinamento “cerebral”, com uso de um exoesqueleto artificial, conectado a um sistema não invasivo que liga o cérebro humano a um computador, além de sessões usando realidade virtual, os pacientes conseguiram recuperação neurológica parcial, ou seja, retomaram parcialmente a habilidade motora, a sensação tátil, além de funções viscerais.

No ano passado, em palestra no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, o neurocientista falou sobre os avanços do Andar de Novo, seu último livro, o Made in Macaíba, que retoma a criação do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, e criticou o atual cenário político no País, sem deixar de falar sobre esperança.

A seguir, destacamos alguns dos principais pontos abordados pelo neurocientista.

Sobre o cenário brasileiro atual

Eu vejo o Brasil, lamentavelmente, dando um tiro no pé coletivamente. E eu espero que as pessoas despertem antes que seja tarde. Porque já é quase tarde. A tragédia está quase feita. Eu encontrava cientistas jovens pelo programa Jovens Cientistas em todo mundo, eu cheguei a dar aula na Escola de Medicina de Harvard, com 200 pessoas no auditório, 39 eram alunos do Ciência Sem Fronteiras. Foi uma das maiores emoções da minha vida, porque quando cheguei na Califórnia em 1998, você falava que era cientista brasileiro da Universidade de São Paulo e o cara virava pra você e falava ‘mas em que parte da Califórnia fica a universidade de São Paulo?’. E eu falava que era mais ao sul [brinca]. Eu vi que o Brasil tem muito futuro, porque a energia humana brasileira é inacreditável. Só que está na hora de agir, porque a coisa está ficando feia. E é óbvio que é só empurrar que cai.

Sobre o papel do Estado no desenvolvimento da Ciência

Todo mundo tem esse aparelho aqui [aponta para o celular]. Alguém sabe me dizer da onde isso veio? Isso aqui veio do maior investimento per capita da história, do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Isso aqui é o resultado de oito décadas de investimentos acima de 5% do PIB em ciência e tecnologia. Isso aqui não veio do céu, isso aqui é produto de uma visão estratégica para o bem e para o mal, de oito décadas de investimento contínuo estatal. A Boeing não existiria sem os investimentos do Departamento de Defesa, a Intel, o Google e Apple não existiriam. Nenhuma das grandes empresas que arrotam seu poder de inovação, a vasta maioria em algum momento de sua história dependeu do investimento público. Como algumas pessoas me acusam de usar dinheiro público, bem, todos os cientistas do mundo usam, não tem outro jeito, é assim que se faz descoberta em ciência básica. Nosso investimento médio, em 2013, o pico em investimento per capita foi 1,16 % do PIB em ciência e tecnologia. Se nós formos congelar 20 anos em investimentos de ciência, educação, saúde, mas principalmente em desenvolvimento tecnológico, o trem ao qual me referi no início da palestra já foi. Não tem como alcançar. Esse trem não se pega mais. O conhecimento científico é importante, não é só importante para fazer experimento como a gente faz ou para fazer iPhone, mas o pensamento crítico é essencial na sociedade moderna. Como que vamos decidir o futuro do orçamento do país se não sabemos que o ser humano é mais importante que juros?

Sobre a PEC que limita gastos públicos

Ela é um absurdo lógico, um absurdo aritmético. Qualquer contador não chegaria em uma empresa e diria ‘OK, vou passar 20 anos sem investir na minha empresa, vou passar 20 anos pagando juros’. A Finlândia, a Suécia, a Noruega, grandes países, Coreia do Sul, eles resolveram isso, não deixaram de ser uma sociedade capitalista, mas não abandonaram os investimentos básicos numa sociedade moderna. Esses dias cheguei na Califórnia, em uma palestra, e eles falaram ‘vocês estão brincando que vão dar o pré-sal pra gente’. Vamos lá, no mínimo tem 100 milhões de barris, vamos fazer uma média de 70 dólares por barril, são 7 trilhões, é a metade do PIB americano por ano. Quem no próprio bairro, que tenha um jardinzinho de 7 trilhões, chegaria para outro vizinho e fala ‘Você não quer? Estou te dando’. Não existe isso, e são 7 trilhões por baixo, porque uma hora o petróleo vai subir e vai passar de 100 dólares muito facilmente. Se nós tivermos 100 milhões de barris a 100 dólares, são 10 trilhões. Quem vai se beneficiar dessa riqueza? Não vão ser vocês e nem eu. Mas para isso precisa ter voz. É preciso falar. É esse o crime da morte anunciada da PEC.

Como fazer da experiência de Macaíba um modelo replicável

Na realidade, nossa proposta original que está no Made in Macaíba, propõe a criação de várias Macaíbas. Identifiquei os polos que têm os piores índices de desenvolvimento humano do Brasil e propus colocar uma cidade científica nesses moldes em cada lugar do país, para alavancar o desenvolvimento humano e econômico daquela região. Então tem Vale do Jequitinhonha, a fronteira do Brasil com a Bolívia, Paranapanema. O problema é que, meus colegas cientistas ficam loucos comigo aqui no Brasil, porque eu falo isso sempre, a ciência brasileira precisa de um banho de povo. A ciência brasileira precisa humildemente olhar para a nação e perguntar como nós podemos ajudar, como podemos ser úteis. Eu também faço ciência básica, eu adoro fazer todas as minhas loucuras abstratas que nem minha mãe entende. Mas tem um momento em que a ciência tem que abrir os braços e abraçar o povo brasileiro e pensar como nós podemos ajudar a construir esse País.

A elitização da ciência brasileira é muito grande. E o que o Ciências sem Fronteiras, o Enem, as cotas da universidade estavam fazendo era trazer o talento humano, que está em todo lugar. Talento todos nossos membros [do Instituto Internacional de Neurociências de Natal] viram nessas crianças que chegaram lá, elas mal se aguentavam em pé porque não tinham o que comer e de repente estão fazendo robótica, estão indo para o Instituto de Física, passam no Enem para universidade federal. O talento está aqui, mas é preciso dar alguma oportunidade.

Avanço do exoesqueleto

Quando fizemos a demonstração na Copa e quase morremos nos minutos seguintes, porque funcionou e estávamos estatelados no campo, 30 minutos depois tinha um site perguntando ‘cadê a publicação?’. Pô, a gente tinha acabado de dar o chute. As pessoas não entendem que você tem que fazer o experimento, coletar os dados, analisar os dados, escrever o paper, mandar para revista, brigar com o revisor e aí publicar. Levam anos. O exoesqueleto é igualzinho ao celular. Daqui a pouco o celular vai estar na sua polpa digital, mas era um tijolão no início. E em menos de 20 anos, a gente foi desse tijolão para esse barato. Fizemos um protótipo, nunca tinha sido feito, só que nós já temos a terceira versão e estamos trabalhando na tentativa de fazer algo portátil, uma cooperação entre EUA e Brasil, estamos tentando achar um caminho de fazer isso para que as pessoas tenham isso em casa. O intuito não é ter isso em um laboratório, mas a gente tinha que começar em um laboratório e veja bem, o investimento que foi feito no Brasil, nos ofereceram 10 vezes mais para fazermos nos Estados Unidos, no Departamento de Defesa e nós dissemos não, nós vamos fazer aqui. E essa, acho que talvez seja a grande tristeza que eu tenho e que um dia vai desaparecer, mas as pessoas não entenderam tudo que a gente abriu mão para fazer o que fizemos aqui, porque se algum dia esse paper que foi publicado resultar em alguma coisa para milhões de pessoas, as pessoas para sempre vão dizer que ele foi feito em São Paulo, Natal e Macaíba. Qual é o preço disso, o retorno disso? Vale cada tostão, 10 vezes mais a cada centavo que foi investido. Porque cria cultura de fazer ciência.

Influência do Andar de Novo em pesquisas para outras doenças

Curiosamente, por causa desses experimentos nós temos em paralelo uma terapia para Parkinson, temos uma nova terapia para epilepsia que não responde a drogas e estou achando que por conta dessa terapia com interfaces cérebro-máquina teremos um monte de terapias para doenças neurológicas que nunca ninguém imaginou que fossem possíveis serem tratadas, porque a ciência é assim, quando você abre e passa por uma porta, você tem 20 se abrindo. Aí evidentemente que em uma vida só não dá para abrir todas as 20, mas você as deixa para alguém. E essa é a mensagem que eu quero deixar pra vocês, porque a ciência é uma grande corrida de revezamento, onde você precisa agarrar o bastão e passar para o próximo. E só se ganha se todos os caras terminarem a corrida, a ciência é assim, desde que o primeiro cara olhou para o céu e viu aquilo e se perguntou de onde vem tudo isso. É uma corrida que nunca termina e ainda bem que nunca termina. Então eu tenho certeza que se os cientistas brasileiros começarem a dialogar com a sociedade e a sociedade brasileira estiver disposta a ouvi-los, vamos ter cientistas falando em cada esquina de cada cidade do Brasil, porque é muito fascinante falar sobre a história do criador de tudo, que é o nosso cérebro.