Romper com o ciclo da exclusão

"O  resultado da aprendizagem produzida pela rede pública de Sobral  provou  que é possível alcançar  o topo dos indicadores de qualidade nos níveis brasileiros,  mesmo em contextos tão severos. Esta é a chave para que possamos buscar novos e mais ousados desafios".

Por Veveu Arruda*

Escola Sobral - Foto: Divulgação

Lourdes e Antonio Zé, filhos de um vaqueiro e de um pequeno agricultor, respectivamente, são casados e tem três filhos. O casal é analfabeto. Assim como seus pais, avós, bisavós e demais antecedentes. Seus ancestrais, como eles também, tiravam a sobrevivência pastoreando gado alheio ou arrastando terra para cima de seus pés, com enxadas nas mãos, fazendo os seus roçados em terras alheias, sob regras feudais, para colherem o milho e o feijão; muitas vezes, insuficientes para a sobrevivência de suas famílias, sempre numerosas. Há tempos de fome em suas vidas. Nos centros urbanos, outros personagens, noutras atividades têm a mesma história.

Pois bem! Carol, Silvestre e Luana são os filhos do Antonio Zé e da Lourdes. Todo o percurso formativo deles tem sido em escolas públicas, em Sobral. Carol, a mais nova, está concluindo o Ensino Médio; Silvestre, o do meio, está concluindo o Curso de Geografia e Luana, após o Ensino Médio Integrado, é técnica de enfermagem e trabalha na Santa Casa, hospital filantrópico. Ou seja, eles estão rompendo com a fatalidade do ciclo de miséria e de exclusão que lhes foi imposto. Superam o destino sem novos horizontes que já estaria definido para eles quando nasceram. Não haveria alternativas, a exemplo de seus antepassados.

Lourdes tem 54 anos e a sua filha Luana tem 24. O que aconteceu para ambas, mãe e filha, terem possibilidades tão diferentes, se nasceram sob o mesmo céu e sobre o mesmo chão? Em pleno semiárido cearense, aonde a natureza tem características singulares, muito próprias, como pouca água, pouco solo, pouca flora. De muito, só o sol e a força dos sertanejos. Características que são álibis fortes e recorrentes para justificar o fracasso das ações governamentais de governos que terminam por ser causa e efeito desta mesma realidade.

A resposta está na política e na gestão pública firmadas numa concepção de princípios democráticos e republicanos, fundada em valores como a pluralidade, a solidariedade e o humanismo. O foco é a busca de superação de uma velha cultura política de privilégios, do fisiologismo e do paternalismo, e a construção de uma nova cultura política afirmativa de direitos e deveres, num processo participativo, criativo e inovador.

Na nossa opção pela construção e fortalecimento da democracia no território municipal, não poderíamos deixar de priorizar a Educação, o instrumento mais poderoso para realizar as transformações estruturais de qualquer nação. Sobretudo, quando queremos enfrentar e resolver o gravíssimo problema das terríveis desigualdades socioeconômicas também presentes em Sobral, e que fazem do Brasil o País mais desigual entre as economias organizadas do mundo.

Por certo não era somente o roçado do Antonio Zé que iria assegurar a cidadania, a emancipação econômica e o bom futuro para sua família, seus filhos e netos. E certamente não será do chão (dos minérios e grãos) ou do fundo do mar (do precioso Pré-sal) que o Brasil assegurará vida digna a todos os brasileiros, tornando-se, assim, uma grande nação, com uma economia pujante, desconcentrada social e territorialmente.

É da cabeça dos brasileiros, da sua inteligência e do seu conhecimento científico, de seus condicionantes socioemocionais e de sua capacidade crítica e inovadora, que um novo projeto de desenvolvimento nacional se realiza. A educação é o caminho para livrar o Brasil das amarras da Casa Grande e, assim, levantar-se um País verdadeiramente livre e democrático.

Com esta convicção, e por causa dela, a educação vem sendo a prioridade de Sobral há 20 anos. É um exercício permanente de garantir as conquistas asseguradas pelas políticas públicas, aperfeiçoá-las e, ainda, inovar na prática política e no jeito de administrar. O que queremos é assegurar às famílias sobralenses, muito especialmente às mais empobrecidas, as oportunidades que a educação de qualidade cria para as pessoas. E perseveramos na luta contínua que tem como horizonte a oferta de um excelente itinerário formativo para as crianças, adolescentes e jovens.

Deste esforço podemos almejar outra certeza, que muito nos anima: uma geração mais bem formada está melhor preparada para superar o perverso ciclo da fatalidade histórica que condenaria os filhos dos Antonio Zé e das Lourdes. E além de ser protagonista de uma condição de vida mais digna e próspera, esta geração poderá constituir uma força social e política que promova com mais vigor o movimento de transformação da sociedade.

Em Sobral, pode-se dizer que, antes de executarmos, sonhamos juntos e planejamos coletivamente o que precisa ser feito. Elegemos prioridades, estabelecemos focos, definimos objetivos e metas, identificamos parceiros e aliados, compartilhamos autonomias e responsabilidades. E, óbvio, enfrentamos os percalços, as interrupções e as limitações que se apresentam no caminho.

O Ministério da Educação divulgou os resultados do Ideb/2016, em que Sobral atinge o nível 8,8, sendo o melhor resultado entre os 5.574 municípios brasileiros. Isso fortalece nossa percepção de que estamos no rumo certo mas, principalmente, a convicção de que a rede municipal reúne condições de enfrentar e vencer os ainda sérios problemas e desafios do presente.

Lá no início dos anos 2000, começamos a lutar para resolver o problema do analfabetismo escolar. Os alunos eram condenados ao fracasso escolar dentro do sistema, sob as barbas de todos que direta ou indiretamente deveriam responder por aquilo. Fizemos frente, com a progressiva adesão de valorosos profissionais e parceiros, às crenças e preconceitos que normalizavam o fato dramático da não aprendizagem e que atribuíam à pobreza e às famílias a causa de um problema praticamente sem solução.

As escolas de Sobral são os lugares das aprendizagens  dos nossos alunos, mas promovem também as aprendizagens dos profissionais e o contínuo aperfeiçoamento das práticas pedagógicas. Ou seja, aprendemos com o que fazemos. Se, anteriormente, parecia não ser possível fazer da sala de aula um lugar da real aprendizagem dos alunos – pouca crença, ou nenhuma, igual a água na seca do sertão – hoje nós sabemos que somos capazes de alçar vôos cada vez mais altos. E isso sem considerarmos condições normais de temperatura e pressão. Na verdade, ainda enfrentamos sérias adversidades.

Os números mais recentes do IBGE mostram que Sobral é um município pobre, com graves insuficiências e distorções  econômicas,  ao indicar que o Ceará contribui com apenas 2,1% para o PIB brasileiro, enquanto Sobral representa 3,1 % do PIB cearense e apenas 0,064% do PIB brasileiro. Situação agravada pelo fato de que os 20% mais ricos de Sobral detêm 61% da renda e os 20% mais pobres  possuem apenas 3,1%.

O  resultado da aprendizagem produzida pela rede pública de Sobral  provou  que é possível alcançar  o topo dos indicadores de qualidade nos níveis brasileiros,  mesmo em contextos tão severos. Esta é a chave para que possamos buscar novos e mais ousados desafios.

Com certeza, essas conquistas jamais teriam sido alcançadas se não tivéssemos rompido com o mito de que pobre não aprende. Ou ainda que deveríamos “parar o mundo” para suprir, em primeira mão, todas as gravíssimas insuficiências sócioeconômicas da população. Ou principalmente, se estivéssemos seguindo a agenda neoliberal, com a falácia do Estado mínimo e suas desastrosas consequências, a exemplo do congelamento de gastos públicos e da reforma trabalhista, enquanto grandes fortunas permanecem sem tributação.

A lógica política nascida nos salões e alpendres da Casa Grande, que de golpe em golpe, galopa o Poder para manter seus privilégios – seja  com Temer, Maia ou assemelhados – e faz a cada galope  um  Brasil menor e mais excludente. Assombra-nos o retorno da  fatalidade reservada para a Lourdes e o Antonio Zé e seus antecedentes:  ignorância, miséria, sofrimento, ausência de horizontes promissores,  enquanto nosso País será uma Colônia para os rentistas se perfumarem.

Vejo uma resistência prática e criativa a essa velhíssima política a partir de muitas experiências de êxito, exemplares, acontecendo em muitos municípios, em todas as regiões do nosso País, com resultados muito positivos e inovações nas diversas áreas das políticas públicas. O Brasil tem muito o que ganhar se conseguirmos enxergar e aprender com estas experiências do poder local, na inarredável tarefa de construirmos um novo projeto de desenvolvimento nacional. Talvez aí residam os melhores modelos para um novo Brasil.

Em Sobral, a base política que sustenta este movimento inovador é uma aliança política que junta partidos e lideranças com distintas trajetórias de vida e política, fundada com base num projeto estratégico, de longo prazo, construído com a sociedade civil. Este projeto se mantém, apesar das turbulências da política, porque se renova sempre, por meio de pactos políticos e sociais focados nos objetivos definidos estrategicamente, visando a melhoria permanente da qualidade de vida das pessoas, protagonistas da sua prosperidade e felicidade.

É um caminho…

Veveu Arruda é professor e advogado. Foi secretário de cultura em Sobral (1997-2004), vice-prefeito (2004-2010) e prefeito do município (2011-2016).