Lava Jato ataca a “reforma política”, mas não propõe saída popular

“O Brasil precisa de uma reforma política”. Esse jargão foi repetido inúmeras vezes desde o início da abertura política, em 1974. Nas jornadas de junho de 2013, a urgência de mudanças no sistema eleitoral tornou-se uma bandeira de vários setores, pró e contra o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff.

Por Daniel Giovanaz, no Brasil de Fato

lava jato

O aparente consenso veio abaixo quando os parlamentares brasileiros passaram a debater em que aspectos o sistema político precisaria ser reformado. Aprovada em 15 de agosto de 2017 em uma comissão especial da Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda Constitucional 77/03, “conhecida como PEC da Reforma Política”, não colou.

A proposta, de autoria do deputado Marcelo Castro (PMDB), desagradou os dois polos que se formaram após a queda de Dilma. De um lado, os entusiastas da operação Lava Jato, que defendem certa ideia de moralidade como caminho para a transformação política – independentemente dos riscos e dos prejuízos que isso possa acarretar. Do outro, movimentos sociais que defendem a soberania popular, são contrários ao golpe de 2016 e às reformas trabalhista e previdenciária estimuladas pelo governo Temer (PMDB).

Mais uma vez, a sensação de consenso é enganosa. Cada um dos lados defende os seus interesses e critica a reforma política a partir de pontos de vista diferentes.

Desacordo

Em agosto, os procuradores Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima, integrantes da força-tarefa da Lava Jato, publicaram um vídeo nas redes sociais questionando a proposta de emenda, logo após a aprovação na comissão especial da Câmara.

As informações abaixo foram extraídas do texto-base da PEC 77/03, do vídeo divulgado pelos procuradores em agosto, e de uma entrevista com José Antônio Moroni, representante da Plataforma dos Movimentos Sociais para Reforma do Sistema Político. Fica evidente que os argumentos dos integrantes da Lava Jato não contemplam as demandas das 39 organizações da sociedade civil articuladas em torno da Plataforma, que discutem o tema há 13 anos.

Enquanto os procuradores parecem preocupados apenas em reduzir os gastos com campanhas e evitar que os investigados “escapem da cadeia”, a Plataforma busca alternativas para reduzir a desigualdade econômica entre os partidos.

Moroni acrescenta que, além de democratizar as eleições, os movimentos sociais estão articulados pelo fortalecimento da democracia direta e participativa e pela democratização da informação, da comunicação e do Poder Judiciário. Segundo ele, a Lava Jato cometeu abusos e violações em proporções inéditas no Brasil, o que deve estimular novos debates sobre os riscos da partidarização e da seletividade da Justiça. Nada disso está em pauta na proposta aprovada pela comissão especial da Câmara dos Deputados em agosto.

A PEC está estruturada, basicamente, sobre dois eixos. O primeiro inclui o modelo conhecido como “distritão”, que seria colocado em prática nas eleições de 2018 e 2020, e o sistema “distrital misto”, que entraria em vigor a partir de 2022. O segundo eixo diz respeito à proposta de criação de um fundo público eleitoral para financiamento de campanhas.

Abaixo, as diferenças entre cada ponto de vista:

EIXO 1 – FINANCIAMENTO DE CAMPANHAS ELEITORAIS

Relatório aprovado na comissão

O relatório apresentado pelo deputado Vicente Cândido (PT) cria o Fundo Especial de Financiamento da Democracia, cujo valor equivale a 0,5% das receitas correntes líquidas (soma das receitas tributárias do governo). O Fundo deveria custear a maior parte das despesas dos partidos com campanhas eleitorais.

O acesso ao dinheiro ocorreria da seguinte forma: 2% divididos igualmente entre os partidos; 49% conforme a bancada eleita na última eleição legislativa; 34% proporcionais ao número de parlamentares da legenda; 15% de acordo com as bancadas no Senado.

O financiamento privado, por empresas, seria proibido. O projeto ainda estabelece um teto de dez salários mínimos para doações de pessoas físicas a campanhas eleitorais, além de permitir que a doação ocorra por meio de coletivos, em uma espécie de “crowdfunding”.

Crítica dos procuradores

Os procuradores da Lava Jato são contrários à criação do Fundo. “Eles [parlamentares] pretendem tirar dinheiro do seu bolso [dos eleitores], R$ 3,6 bilhões, para colocar no saco sem fundo dos partidos”, afirmou Carlos Fernando dos Santos Lima, ao início do vídeo. “Eles não querem campanhas mais baratas”.

Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa, completou, no mesmo tom: “[Os parlamentares corruptos pretendem] aumentar o fundo partidário, o dinheiro que sai do seu bolso e é usado para política”.

No dia 15 de agosto, em um evento em São Paulo, o juiz de primeira instância Sérgio Moro também se manifestou sobre a possível mudança no sistema de financiamento das campanhas. Ao analisar os problemas do Fundo Especial, Moro declarou que a forma mais justa é o financiamento privado com “regras rígidas”.

Alternativa popular

A Plataforma defende o financiamento público exclusivo. O financiamento empresarial é antidemocrático, segundo Moroni, porque os políticos eleitos são “coagidos” a governar conforme os interesses dos financiadores. “A doação de pessoas físicas também favorece os doadores e os políticos milionários. Sem contar a pressão exercida pelas igrejas fundamentalistas para que os fiéis contribuam nas campanhas”, completa.

Em relação ao Fundo, os movimentos prevêem critérios de partilha mais igualitários, para evitar favorecimentos na disputa eleitoral: “Se um grupo tem o poder da mídia, o poder econômico, o poder da Justiça, não há disputa democrática. Ao considerar o número atual de parlamentares, a PEC mantém a desigualdade na disputa. Um critério mais justo seria o número de filiados que participam efetivamente do partido”.

EIXO 2 – “DISTRITÃO” E “SISTEMA DISTRITAL MISTO”

Relatório aprovado na comissão

O “distritão”, que entraria em vigor nas eleições de 2018 e 2020, prevê que sejam eleitos os candidatos mais votados de cada estado, independentemente da “legenda”. Assim, os partidos perdem força, os políticos do mesmo partido competem entre si, e os candidatos mais conhecidos são beneficiados na disputa.

No sistema distrital misto, acontecem duas votações paralelas: uma, pelo sistema majoritário; outra, pelo sistema proporcional, como no atual modelo. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) dividiria os estados em distritos, e os eleitores votariam duas vezes: uma em um candidato de seu distrito e outra em uma lista fechada. Assim, metade dos parlamentares seria eleita por um sistema e metade pelo outro.

Este último sistema se aproxima do parlamentarismo alemão, em que os estados possuem grande autonomia.

Crítica dos procuradores

Carlos Fernando dos Santos Lima e Deltan Dallagnol apontam dois problemas no modelo distrital. O primeiro é que as campanhas eleitorais tendem a ficar mais caras. O segundo argumento diz respeito ao foro privilegiado.

Dallagnol afirma que o distritão favorece a re-eleição dos representantes da “velha política”, que desejam aprovar esse modelo para continuar sendo julgados nas instâncias superiores. Supostamente, as sentenças no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) são mais demoradas que nos tribunais estaduais: “Perder o mandato significa perder o foro privilegiado e, com isso, correr um grande risco de ir para a cadeia”.

O vídeo dá a entender que, se o foro privilegiado for extinto e houver um teto para os gastos com campanha, estariam resolvidos os problemas do sistema distrital.

Alternativa popular

A preocupação expressa por Moroni, em nome da Plataforma, não diz respeito ao foro especial nem aos gastos excessivos com campanhas eleitorais, mas sim, à perpetuação de um modelo de democracia que não contempla a maioria da população.

“A bancada fisiologista do Congresso não representa o perfil da população brasileira: as mulheres, a população negra, as juventudes, os povos indígenas. Hoje, o nosso parlamento é formado por brancos, ricos, proprietários, heterossexuais e cristãos”, lembra. “E qualquer sistema distrital radicaliza essa desigualdade no parlamento, porque favorece a re-eleição”.

O modelo distrital misto, segundo Moroni, caminha para o parlamentarismo, porque enfraquece e diminui o número de partidos: “Mas, assim como no distritão, não há nenhum mecanismo que enfrente o problema da sub-representação na política”.