Com Palma para Sofia Coppola, Cannes abre caminho para mudanças

Ainda que tenha causado surpresa e/ou descontentamento por parte da crítica e do público que assistiu aos filmes premiados no Festival de Cannes 2017, a decisão do júri de dar a Palma de Ouro ao sueco The Square (A Praça) foi ousada.

Por Flávia Guerra*

Sofia Coppola - Divulgação

A escolha revela a intenção de se premiar o cinema que, entre tantos propostos pelos 18 concorrentes, não tem medo de incomodar, e até entediar, para tratar de temas que são, como bem disse o presidente do júri, Pedro Almodóvar, extremamente contemporâneos.

Para o cineasta espanhol, o longa de Roben Östlund (de Força Maior, que levou o prêmio principal na mostra Un Certain Regard) trata principalmente de como vivemos na era da ditadura do politicamente correto. “Estamos vivendo isso agora. A ditadura do politicamente correto é tão horrível e aterrorizante quanto qualquer outra. O diretor dá muitos exemplos disso. E é capaz de tratar de um tema tão sério com uma imaginação incrível. O filme é muito muito engraçado”, declarou Almodóvar.

“O ator, a gente nem vai falar dele porque ele realmente é incrível. Mas não só ele. Todo mundo está ótimo. É um filme que eu quero ver de ver de novo porque é tão rico. Há tantas coisas diferentes. Porque estas pessoas de ser politicamente corretos vivem em uma espécie de inferno por causa disso”, completou o presidente do júri.

É possível discordar. Talvez o que mais incomode em The Square não é como estamos vivendo a era do politicamente correto, mas sim de como vivemos em uma sociedade midiática que, obcecada em construir sua imagem virtual o mais ‘bonita’ possível, prega um comportamento, mas não o pratica. Ou ‘fotografa’, publica, divulga que pratica, mas quando o cotidiano demanda pequenos-grandes atos de altruísmo, empatia, sinceridade, humildade, tolerância, as fissuras desta sociedade, e de do caráter de cada um, começam a aparecer.

Crítica fulminante ao egoísmo e egocentrismo contemporâneo

Relembrando a trama, o longa conta a história de Christian, um curador de um museu de arte contemporânea importante da Suécia, que, depois de ter sua carteira e celular roubados, reage de uma forma inesperada, que, numa lógica de jogo de dominó, inicia uma sequência de pequenos-grandes desastres em sua vida. Christian, muito bem interpretado pelo dinamarquês Claes Bang, é um cara legal, culto, que ajuda as pessoas na rua, que é descolado porque trabalha com arte, respeitado, pai cuidadoso com as duas filhas (de quem vive separado, pois é divorciado).

Ele está em busca da atenção do público para a nova obra que chegará ao museu, A Praça (The Square), um espaço que é “um santuário de confiança e cuidado. No qual todos compartilhamos direitos e obrigações iguais.” A obra supostamente deve despertar o sentimento de empatia dos que, como Chris, têm uma vida mais confortável, para com os em situação menos privilegiada.

Christian parece ser alguém preocupado em tirar o público da passividade de quem já não enxerga mais o outro. No entanto, ao ser confrontado com situações em que seu caráter é posto à prova, revela as falhas que todos temos. O curador tão bacana pode ser covarde, descuidado, egoísta, preconceituoso… No fundo, representa todos os privilegiados de, como afirmou Östlund, “uma sociedade europeia cada vez mais individualista”.

Mas, se souber olhar para si, também pode ser corajoso e assumir os efeitos de suas ações, principalmente se elas saírem do território do privado e ganharem o público. Aí o julgamento imediato da era da digital será implacável. É este jogo meticulosamente construído por Östlund que lhe valeu a Palma. Por mais clichê que isso soe, vivemos de aparências, mesmo que, como em uma das situações-chave do filme, as aparências sejam as de quem ‘viraliza’ na internet não necessariamente por um bom motivo.

Os efeitos práticos desta lógica das aparências podem ser desastrosos, mas o importante é ‘causar’. Se a sociedade que se revolta, como na trama, contra um vídeo irresponsável e cruel feito para chocar, é mais altruísta e está realmente preocupada com os excluídos, refugiados, imigrantes, crianças de rua? Provavelmente, não.

E é este exercício de análise proposto pela história de Christian que funciona como um espelho para quem até acha que é muito boa gente, mas que talvez seja só humano, demasiadamente humano. Com The Square, Östulund faz uma sátira, uma crítica fulminante à modernidade egoísta e egocêntrica das grandes metrópoles do mundo.

“Quem quer filme de uma hora e meia são os exibidores. É uma questão de mercado”

Se The Square é longo, se perde-se em uma sequência-perfomance interminável, se não causa exatamente empatia com o (anti)herói? Sim. Mas Östlund sabe onde quer chegar. Em todas as cenas de seu roteiro há um subtexto que, ao final (tanto do filmequanto da maratona em Cannes), justifica as escolhas do diretor.

“Isso de dizer que o filme é muito longo é curioso. A gente não tem problemas em passar um Harry Potter de mais de duas horas para as crianças. Mas quando crescemos, se o filme tem mais de uma hora e meia, já é ruim porque é muito longo”, rebateu o cineasta quando questionado sobre o fato de que foi um dos últimos filmes a serem anunciados na competição do festival por conta de desentendimentos quanto à duração da obra. “Quem quer filmes de uma hora e meia são os exibidores, que têm slots para preencher nos cinemas. Por isso eles não querem nada mais longo que isso. É uma questão de mercado”, completou ele.

Por essa e por outras é que The Square pode não ser a história mais urgente politicamente ou socialmente (120 Batimentos por Minuto traz um tema importante e é bem realizado e levou a medalha de prata, vulgo Grande Prêmio do Júri), mas é um dos mais complexos longas desta edição.

Em tempo, um sueco nunca tinha levado a Palma. O cineasta Alf Sjöberg, foi o grande vencedor em 1961 com Senhorita Júlia, mas o troféu ‘Palma de Ouro’ ainda não tinha sido criado. E o mestre maior Ingmar Bergman só levou uma Palma de Ouro especial, a Palma das Palmas, em 1997, quando o festival completou 50 anos.

Mais sobre o individualismo e as arbitrariedades

Ao lado do russo A Gentle Woman (Uma Mulher Delicada), de Sergei Loznitsa, The Square lança um olhar sobre o quão surreal nossa organização social pode ser.

Mas, se Östlund retrará uma Suécia contemporânea, Loznitsa mantém seu foco em uma Rússia atemporal, que, afogada em um mar kafkiano de burocracias, oprime os indivíduos e patina, há séculos, no mesmo lugar em que a brutalidade da apatia e do sistema impedem que se sinta empatia e olhe nos olhos do outro. De certa forma, os dois longas se comunicam entre si e dialogam também com outro russo em competição: Loveless (Sem Amor), de Andrei Zvyaginstsev.

Para o diretor do aclamado Leviatã, Loveless fala de relacionamento. “Leon Tolstoy dizia que todos os grandes romances da História terminam no casamento. Eu queria ver o que acontece depois do casamento. As famílias começam a colapsar. O que eu queria destacar no filme é a falta de empatia. Claro que o comentário político está no subtexto”, disse ele após receber o Prêmio do Júri no domingo.

Loveless de fato fecha a trinca dos filmes que possuem um contexto político que não aparenta ser o principal, mas que está além da superfície de sua trama e a perpassa o tempo todo. O podium de Cannes é, de certa forma, coerente.

Isso porque 120 Batimentos por Minuto também é um filme sobre a luta para sobreviver, contra o preconceito, pela conscientização, mas não seria tão poderoso se o contexto social e político que os protagonistas encara não fosse ainda tão atual.

“Este grupo salvou muitas vidas. Eles são heróis”, disse, com voz embarcada e lágrimas nos olhos, Almodóvar ao falar do prêmio para o longa de Robin Campillo, revelando que talvez o júri não tenha premiado o favorito de seu próprio presidente.

Pouco depois, ao ser questionado sobre o assunto, Campillo observou: Eu não sei se as pessoas agiram como heróis. Eram pessoas que estavam totalmente engajadas porque a AIDS era um problema . Mas eles eram um bando de gays, lésbicas, viciados em drogas. Todos mundos lutando contra esta epidemia por dez anos. Éramos vitimas desta epidemia e, de repente, aos olhos da sociedade, a gente foi visto como maus homossexuais. E ainda havia as companhias farmacêuticas. E a gente teve de lutar contra tudo isso por nossa conta.”

Edição histórica para as mulheres

Quem luta ainda hoje são as cineastas para conquistarem mais espaço em um festival que só premiou uma mulher em 70 edições. Jane Campion levou a Palma por O Piano em 1993, mas o dividiu com Chen Kaige, de Adeus, Minha Concubina. Por isso, a Palma de Melhor Direção para Sofia Coppola por O Estranho que Nós Amamos tem importância extra. A última diretora que levou o prêmio foi a russa Yuliya Solntseva, por A Epopeia dos Anos de Fogo, em 1961.

Premiar Coppola também sinaliza que um júri presidido por Almodóvar jamais iria deixar esta questão passar mais uma vez desapercebida. E quando questionados sobre o olhar do júri sobre o trabalho das diretoras em competição, assim como o espaço para a mulher em uma área ainda majoritariamente masculina, Agnès Jaoui (a atriz, roteirista e diretora francesa), comentou: “Foi uma decisão em conjunto. Há muitos homens feministas. E Pedro é um dos melhores exemplos disse. Vocês conhecem o Teste de Bechdel? Há pouquíssimos filmes que passam.” Em tempo, O Estranho que Nós Amamos estreia e 10 de agosto no Brasil.

O olhar do júri para o trabalho das cineastas, também veio com a Palma de Melhor Roteiro para Lynne Ramsay por You Were Never Really Here, que também deu a Joaquin Phoenix a Palma de Melhor Ator. Ramsay, que ao lado de Sofia e da japonesa Naomi Kawase (de Hikari), era uma das três mulheres a concorrer à Palma este ano. Ramsay dividiu seu prêmio com o grego Yorgos Lanthimos, de The Killing of a Sacred Deer (o segundo filme com Kidman no elenco, além do longa de Sofia Coppola).

É pena que a marca de Jane continua sendo a única. Mas premiar Sofia e Lynne, além de dar a Camera D’Or para a francesa Léonor Serraille, por Jeune Femme e o Prêmio Especial pelo 70º aniversário para Nicole Kidman também marcam uma posição muito clara da equipe de jurados que também contava com a diretora alemã Maren Ade, a atriz e produtora Jessica Chastain, o cineasta italiano Paolo Sorrentino, o diretor e produtor sul-coreano Park Chan-wook, o ator e produtor Will Smith a atriz e produtora chinesa Fan Bingbing e o compositor francês Gabriel Yared.
Para completar, a Palma de Melhor Atriz para a alemã Diane Kruger, que vive em In The Fade, de Fatih Akin, uma mulher aparentemente comum, mas extremamente forte (e sim, o filme felizemente passa no Teste de Bechdel), também é uma forma de se valorizar personagens femininos que fogem ao padrão.

“Sofia venceu este prêmio não porque ela é mulher, mas porque o filme é bom.”

Sobre comentários, que certamente viriam, questionando o merecimento de Sofia, Maren Ade (que dirigiu o brilhante Toni Erdmann e em 2016 foi ignorada na premiação) comentou: “A gente não deu este prêmio para as mulheres porque elas são mulheres. Esta é a primeira vez em mais de 50 anos que uma cineasta leva o prêmio de melhor direção. Para mim é muito bom conhecer outras mulheres diretoras. Eu estou sempre cercada de homens e parece que esta não é uma boa profissão para as mulheres”.

A cineasta acrescentou: “A gente precisa de mais diretoras. Do jeito que o mercado é agora ele não reflete a sociedade. A gente precisa mais de histórias com personagens femininas e diretoras. Não que os homens não possam fazer, mas é preciso diversidade.”

A atriz americana Jessica Chastain, que se disse chocada com a forma como as mulheres são retratadas nos quase 20 filmes que viu. E a atriz e produtora chinesa Fan Bing Bing, também observou: “Primeiro, eu estou muito feliz de dar este prêmio para a Sofia Coppola porque fez um ótimo trabalho para o público. A gente só quer defender que se foque mais no trabalho das mulheres cineastas no futuro. A gente quer encorajar os cineastas a mostrar mais personagens femininas. Eu tenho que dizer que ela venceu este prêmio não porque ela é mulher, mas porque o filme é bom.”

Uma edição histórica e mais história a se fazer

Diante da discussão mais que necessária, Will Smith, o mais divertido dos jurados em Cannes em muito tempo, observou, com humor mas com contundência: “Algumas mulheres negras vão se sentir não representadas. A gente fala disso em outra hora.”

De fato, Cannes encerra sua edição 2017 com avanços em diversas questões, mas tem para a edição 2018 vários outros desafios. Focar não só no trabalho das diretoras, roteiristas, montadoras, diretoras de fotografia… mas também dos atores e atrizes e profissionais negros, no cinema latino-americano, no africano (uma jornalista de Camarões, não por acaso, questionou a ausência de longas da África em todas as categorias competitivas do festival).

Para se ter uma ideia de como a diversidade é sim tema relevante, diante da amostra de filmes em competição, os nove jurados se propuseram a formar uma comissão para apontar novas, e variadas, produções à equipe de Thierry Frémaux e Pierre Lescure, diretor artístico e presidente do Festival de Cannes. Melhor forma do júri afirmar que é possível ser mais plural (em uma edição que trouxe quatro filmes franceses em competição e cinco americanos), impossível.

Sem contar que a discussão streaming / VOD contra (ou não) o Cinema / Tela Grande, por questões artísticas e de mercado (talvez muito mais de mercado), não termina nesta edição. Enfim, a edição de 70 anos de Cannes foi realmente histórica. E os próximos 70 prometem testemunhar muito mais mudanças da História. A ver.