“Há uma política deliberada de acobertar malfeitos de PMs”

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB paulista critica decisão de tribunal que autoriza policiais a interferir em cenas de crime.

Por Rodrigo Martins*

Polícia Militar - Nelson Almeida/Governo de SP/Fotos Públicas

Uma resolução do Tribunal de Justiça Militar (TJM) de São Paulo despertou uma avalanche de críticas de organizações de direitos humanos, além de reacender a velha rixa entre as polícias Civil e Militar. Na prática, a medida autoriza PMs a recolher evidências na cena de crimes praticados por praças e oficiais da corporação.

Publicada no Diário da Justiça Militar Eletrônico em 18 de agosto, a resolução 54/2017 autoriza a PM a "apreender os instrumentos e todos os objetos" que tenham relação com a apuração dos crimes dolosos praticados por policiais militares contra civis. Dessa forma, eles poderiam, em tese, recolher armas, cápsulas e projéteis antes de a perícia da Polícia Técnico-Científica, que dá suporte às investigações da Polícia Civil.

Na segunda-feira 28, o Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu, em caráter liminar, a resolução do TJM. Ao acolher o pedido feito pela Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, o desembargador Silveira Paulilo afirmou que compete exclusivamente à Polícia Civil, dirigidas por delegados de polícia de carreira, a investigação dos crimes dolosos contra a vida. A decisão do tribunal militar fica suspensa até o julgamento do mandado de segurança.

Na avaliação de Martim de Almeida Sampaio, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP), a decisão do TJM era flagrantemente inconstitucional, além de lançar dúvidas sobre a lisura das investigações de homicídios praticados por PMs.

“Quando há interferência na cena do crime, prejudica-se a investigação”, alerta o advogado. “Na verdade, essa resolução parece passar um recado para que a tropa possa agir livremente”.

CartaCapital: O senhor qualifica como inconstitucional a decisão do Tribunal de Justiça Militar, que permite à PM recolher evidências na cena de crimes praticados por agentes da corporação. Por quê

Martim de Almeida Sampaio: A Constituição de 1988 dispõe sobre a divisão de competências nas forças policiais. No Brasil, temos uma Polícia Militar, voltada para o patrulhamento ostensivo e a repressão ao crime, e a Polícia Judiciária, dedicada à investigação. Na medida em que se autoriza a PM a mexer na cena de um crime, invade-se a competência da Polícia Judiciária, mais conhecida como Polícia Civil.

Ademais, não compete ao Tribunal de Justiça Militar legislar em matéria constitucional. Aliás, esses magistrados não podem legislar sobre matéria alguma, só deveriam regulamentar o funcionamento da própria Corte. Nesse caso, o TJM está invadindo a competência do Poder Legislativo, sem ter a legitimidade do voto popular, como os deputados ou senadores.

CC: O senhor identifica alguma ameaça à lisura das investigações de crimes cometidos por policiais militares?

MAS:
Sem dúvida. Quando há interferência na cena do crime, prejudica-se a investigação. Na verdade, essa resolução parece passar um recado para que a tropa possa agir livremente. É como se dissessem: “Façam o que bem entender. Depois, vocês podem mexer na cena e impedir a investigação”. Hoje, retirar evidências do local de um crime configura fraude processual. Com essa nova resolução, abre-se uma brecha enorme. Você se lembra de algum homicídio esclarecido pela Corregedoria da Polícia Militar? Só vejo apurando crimes menores, atos de indisciplina ou delitos comuns praticados por PMs, como tráfico de drogas.

CC:
As organizações de direitos humanos dizem ser prática comum a remoção de corpos de suspeitos abatidos pela PM, bem como a coleta de cartuchos e projéteis. O senhor se deparou com muitos casos desse tipo em seu trabalho na OAB?

MAS: Sim, recebemos inúmeras denúncias desse tipo. É muito comum as vítimas chegarem mortas aos hospitais após passarem muito tempo rodando nas viaturas da PM. Por vezes, apresentamos requerimentos para ter acesso aos autos da Corregedoria, mas eles ignoram nossos pedidos ou respondem outra coisa, muito tempo depois. Há uma política deliberada de acobertamento dos malfeitos praticados pelos policiais militares.

CC:
Em 2013, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo publicou uma resolução que proíbe policiais militares de removerem vítimas de violência para socorro médico. Essa determinação tem sido respeitada?

MAS: Na maioria dos casos, não tem sido cumprida, é ignorada. Agora, o descumprimento dessa determinação ganhou, de certa forma, guarida nessa resolução do TJM. É um cenário extremamente preocupante, que causa temor às organizações de defesa dos direitos humanos, pois parece dar uma espécie de licença para os PMs atuarem livremente, podendo, inclusive, alterar a cena de crimes praticados por eles ou por colegas.