A elitização dos estádios é falta de caráter, e de inteligência também

Passei anos rebatendo com veemência o argumento de que em breve teríamos crianças por aqui torcendo por Barcelona, Real Madri, Manchester, Paris Saint Germain e companhia. Como primeiro time. Primeiro e único.

Por Lúcio Castro

Geral futebol

O cenário desenhado sempre me pareceu uma aberração só. Creio que fazia sentido minha oposição a tal pensamento. Afinal, time do coração é uma das partes mais profundas de nossa identidade. Em muitos e provavelmente na maior parte dos casos, sinal de ancestralidade, traço indelével da alma. O que nos liga no sentido mais animal mas ao mesmo tempo mais humano aos nossos, o mais caro DNA.

Uma das primeiras de nossas memórias. Aquele primeiro lugar de nossas lembranças onde dividimos e compartilhamos uma paixão, onde unimos nosso grito por alguma causa, a dor e a delícia da estar vivendo junto pelas primeiras vezes o mesmo amor, as mesmas cores a unir pais, filhos e filhas num estádio.

Pois muito bem: se isso tudo ficou proibido, se isso tudo não pertencerá mais a geração que chega, se ir a um estádio não é mais possível para a imensa maioria, como isso vai se dar? Se torcer virou um programa diante da TV, como bem me disse um amigo morador de uma favela em sua sábia sentença (“estádio não é mais coisa pra gente”), dizíamos, pois muito bem…já que torcer é algo descoberto na tela da TV e não pelo cimento que constrói tal identidade, formado na subida da rampa ou da escada do estádio, por que não se irá torcer para quem é o melhor?

Se já não existe mais a emoção e o sentimento único de se sentir parte, de se sentir capaz de mudar o que está sendo jogado com seu grito, com seu xingamento, com seu aplauso, qual é a razão de torcer para aquele time que passa na TV que joga o futebol bem ruim que se joga nessa bandas hoje em dia e não pelo Barcelona, e não pelo ídolo do PSG? Se o jogo é melhor, a transmissão da TV é muito melhor, o ídolo está ali, o videogame tem aqueles times…Por que diabos aquela criança vai torcer pelo time que era do pai? Esse mesmo pai que não pode mais te levar ao estádio. E impotente diante da humilhante provação, provavelmente vai até incentivar que a prole prefira o lá de fora…

Envergonhado por não enxergar algo tão simples, me restou entregar os pontos e obviamente me render em tal discussão: em breve nem tão breve assim, um breve que já é agora, teremos sim barcelonistas, madridistas ou outro palavrão qualquer que você queira.

Essa conversa não termina aqui. Até agora falamos de identidade, alma, caráter. Coisas que obviamente nossos cartolas desconhecem e mostram total desprezo. O argumento é sempre a viabilidade do negócio, e o contrário disso é tratado com galhofa, como se quem é contra seja um bobo sonhador, um dinossauro que não entendeu que o mundo mudou. Mais triste ainda é ver as vítimas desse desprezo, aqueles que não podem mais ir se juntando a esses cartolas e defendendo que essa é a realidade. Aqui já entramos em outra categoria de pensamento e chegamos aquele velho barbudo, que alertou lá atrás ser “o modo de pensar de uma sociedade é o modo de pensar de quem a domina”.E isso tanto vale pro Brasil de hoje onde vemos o ferrado defender que tirem seus próprios direitos e aplaudir, como vale pro tão ferrado quanto que aplaude o cartola que executa tal política.

Se já falamos acima e outras tantas vezes de identidade, alma, vale aqui também ir combater na área deles. Na seara em que eles adoram cagar uma regra, falar uma palavra difícil, uma outra citação em inglês, um “target”, um “branding”, um “ativação” e um não menos patético “budget”. Porque em sua maior parte são assim, ignorantes em português mas adorando uma citação meia boca da linguagem dos tecnocratas. Então joguemos no campo deles. É de negócio que estamos falando também, ok? Pra que parem de tratar quem é contra essa elitização escrota que destrói histórias e identidades como bobos românticos e fora do tempo. Falemos do negócio, travemos o combates nas sombras como vocês querem.

Pois os senhores estão também matando a galinha dos ovos de ouro do negócio a longo prazo, senhores cartolas. É claro que a nenhum desses interessa o longo prazo. Cada um deles tem uma planilha Excel na cabeça e só quer vomitar ela no fim do ano e mostrar o quão competentes são ao exibirem o balanço financeiro e o quanto foram brilhantes. Na definição de Mauro Cezar Pereira, que há anos é das poucas vozes dissonantes dessa elitização, são os “Zé Planilhas”.

E é óbvio que ninguém desconhece a importância do equilíbrio de contas. Mas desconhecer que no longo prazo a formação de novos públicos (é assim que vocês querem, tratar como consumidores e não torcedores, adiante) é que irá definir a cota da tv, o valor do patrocínio, e, em última análise, também a identidade de cada um, mostra que, além de mesquinhos e pequenos, os tais cartolas que defendem a elitização dos estádios são também péssimos homens de negócio. Porque a um homem de negócio compete também o pensamento estratégico, a próxima década, o próximo século.
E o pensamento estratégico só pode apontar para um caminho: o óbvio cuidado com a formação de novas gerações de torcedores, de novos apaixonados.

Tomando o caso do Flamengo como mais radical exemplo onde um clube genuinamente de massa, que construiu sua identidade em cima da marca de “o mais querido”, chegamos ao tamanho da aberração que se apresenta. A partir do momento em que a inseparável marca de “o mais querido” é deixada de lado em prol de uma planilha anual, estamos falando de uma visão obtusa de gestão de uma marca. Isso para ficar no campo dos tecnocratas do Excel, e não voltar no campo mais claro e que deveria contar: a história, as tradições e a identidade.

No precioso artigo “Arquibancada popular é parte do negócio futebol. Ou deveria ser”, de Tiago Cordeiro, que me foi enviado por amigo, no qual o autor, que se apresenta como “consultor digital” e usa com gosto os termos que os tecnocratas adoram, as explicações são cristalinas. Jogando no campo deles. Logo na abertura, o autor toca na ferida do quanto tal processo de extinção do torcedor que fez a história de um clube será fatal para o que virá:

“Dos termos mais desprezados no marketing esportivo, onde profissionais vivem entre clubes com demandas urgentes por dinheiro, está o branding. Também conhecido como “brand management” (gestão de marcas, em inglês) é a gestão da marca de uma empresa ou instituição: seu nome, as imagens ou ideias a ela associadas, incluindo slogans, símbolos, logos e outros elementos de identidade que a representam ou aos seus produtos e serviços. Este descaso explica não só o nosso ocaso com estádios vazios quanto a nossa falta de visão com a precificação de estádios, inclusive no debate a respeito”.

E segue com bem construída argumentação: “Para começo de conversa, ter uma arquibancada socialmente plural não é só uma questão de justiça social, mas de branding. Clubes como o Flamengo, por exemplo, assumem apelidos como “favela”, “urubu”, “mulambos”, que seriam pejorativos mas ganham uma conotação positiva. Afinal, por que todos os times de futebol querem ter a maior torcida mas não veem valor em terem todo tipo de torcedor no estádio”?

Na sequência, fala do quão pode ser bom pro “business” (aí, Zé Bumbuns, tou indo na linguagem que vocês adoram pra entenderem!) ter todo mundo incluído no bolo, atingir um público tão grande. “Quantas marcas e investidores não iriam querem participar de um negócio assim?

O tema remete a um Brasil recente, quando com séculos de atraso uma certa elite obtusa descobriu que a tal “classe C” era também potencialmente e imensamente consumidora. E que ter ela no jogo não era caridade, não era socialismo, era simplesmente bom pro negócio. Num país acostumado a relevar essa turma só pra empurrar o carro alegórico da fantasia alheia, foi um Deus nos acuda. E tome tentativa de, com séculos de atraso, achar que era preciso falar a língua desse novo consumidor. Mas depois de séculos de casa grande e senzala, claro que não sabiam. E nessa experimentação para chegar a esse consumidor e essa língua, vimos coisas patéticas. De novelas que acreditavam ser popularesca mas na verdade era bizarra a propagandas de estética ridícula, sempre com o velho sentimento de que o povo é incapaz de gostar do bom.

Pois no futebol nem chegamos a isso ainda. Décadas de atraso e obtusidade norteiam a opção pura e simples da exclusão de uma faixa de gente dos estádios. Só interessa aquele “cliente” que pode pagar a mensalidade. Dane-se que vá pelo ralo aquele que fez a história, aquele que definiu a marca e sua identidade. E dane-se o tal “cliente” do amanhã. Só o excel interessa. Gênios.
A obtusidade é tão grande que esses doutores se inspiram claramente em modelos exógenos (tá bom assim, almofadinhas e mauriçolas?). Importam modelos de gestão, de sócios-torcedores, de carnês, de alvejar um público. Não é possível que nessa conta não entrem variáveis como realidade economica distinta, cultura, e ainda, na área deles, modelo de negócio.

Tomando como exemplo a Premier League inglesa, como está na habitualmente costumeira bem feita abordagem de Marcos Alvito em “O Esporte que vendeu sua alma”, (Revista Piaui, 2007). Por lá trilharam todo esse caminho. Promoveram a mais canalha “higienização” dos estádios, valendo-se dos nosso agora conhecidos planos de sócio-torcedores, carnês, etc. Como toda ação tem reação, houve protesto. Boicote. O que fizeram os cartolas de lá? O mesmo que os daqui: andaram para os protestos, o boicote.

Com uma imensa diferença, o ponto de distinção que obviamente nossos cartolas não conseguem enxergar: como o modelo e a cultura é distinta, além da realidade econômica, diante dos protestos e do boicote, os dirigentes de lá, como dissemos, lavaram as mãos. É sujo, mas dentro da visão estritamente do negócio, podem lavar. Afinal, como diz Alvito, “acontece que o ‘Man U’, como é conhecido o time, tem dezenas de milhões de torcedores na China, no Japão, na Coréia. Ou seja, não é mais um clube, é uma multinacional do entretenimento esportivo”. Ou seja: lá, perdida a paixão dentro do país, uma legião de consumidores da Ásia, do Oriente ou do escambau irá sustentar.

Há também outra diferença básica, também não compreendida pelos cartolas daqui que sonham em repetir o modelo de lá. E é inacreditável não perceberem tamanha diferença. Desenha pra eles, por favor, Alvito: “Nove dos vinte clubes da primeira divisão têm proprietários estrangeiros. Inglês ou não, quase nenhum deles é verdadeiramente ligado ao futebol. São pessoas como um ex-cabeleireiro que fez fortuna como dono de cassinos (Birmingham City), um empresário islandês (West Ham), os herdeiros de um barão da indústria do aço (Blackburn Rovers), o dono da cadeia de restaurantes Planet Hollywood (Everton), um ex-primeiro-ministro da Tailândia investigado por corrupção (Manchester City), um milionário da indústria da carne e um peso pesado do mercado financeiro (Liverpool), um mal-afamado bilionário russo da indústria do petróleo (Chelsea) e o dono do Cleveland Browns, um time de futebol americano (Aston Villa)… O curioso é que os bilionários nem se importam em tomar prejuízo. Numa única temporada (2005-2006), o todo-poderoso Roman Abramovich, dono do Chelsea, perdeu 80 milhões de libras (320 milhões de reais)”.

A história tem um encontro marcado com esses Zé Planilhas. O lixo da história. Ficarão como os que destruíram um dos maiores traços de nossa identidade. Sob a conivência dos mesmos também, já se foi o Maracanã. Vai se esvaindo o futebol das tardes de domingo das multidões. No caso de um clube de massa, vão entregando pouco a pouco o que gerações de apaixonados conquistaram: a identidade do mais querido.

A tudo isso e a todos, sobra sempre a resistência. No mínimo, em nome daqueles nossos que construíram essa história de amor e paixão. Resta lembrar e botar em prática os ensinamentos do titã Antonio Maceo: “não entreguem de joelhos a pátria que seus pais conquistaram de pé”.