Programa de Doria para a Cracolândia não funciona, avaliam CRM e MP-SP

Organizações de classe, Defensoria e MP realizaram fiscalização em hospitais conveniados para atender dependentes químicos e não encontraram fundamentos éticos e científicos.

Por Rodrigo Gomes*

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Fiscalização promovida por organizações de classe, o Ministério Público e a Defensoria Pública de São Paulo concluíram que o programa Redenção, desenvolvido pela gestão do prefeito da capital paulista, João Doria (PSDB), para atendimento de dependentes químicos da região da Cracolândia, na Luz, não funciona. As oito entidades apontaram que há falta de profissionais, não existe acompanhando individualizado, não há proposta além da desintoxicação, nem busca de retomada de vínculo familiar ou articulação para o período pós internação. "O Programa Redenção não tem nenhuma base técnica, ética, conceitual ou operacional que o justifique", avaliou o representante do Conselho Regional de Psicologia, Ed Otsuka.

Segundo o psicólogo, da forma como está, o Programa Redenção nega tudo que se construiu até hoje no tratamento da dependência química. "Não há qualificação do cuidado, respeito à singularidade, perspectiva de acompanhamento pós-alta. É preciso uma revisão completa. Vemos falhas que nem conseguimos entender como são possíveis", afirmou, prontificando-se a participar da revisão do programa.

O promotor Artur Pinto Filho afirmou que vai convidar a prefeitura a se adequar ao que foi avaliado nas fiscalizações, mas não descarta o ingresso de ação judicial. "Os conselhos estão, de forma muito correta, apontando os equívocos. Acredito que a prefeitura quer corrigir, porque ninguém quer jogar dinheiro fora. Se isso não for feito, vamos buscar a via judicial", afirmou.

Para Pinto Filho, uma das principais preocupações é o valor investido em relação aos resultados pífios alcançados. "O Redenção não é nada ainda. Mas consome R$ 1,8 milhão por mês de verba do Sistema Único de Saúde (SUS) com apenas três hospitais. É um valor muito elevado", afirmou.

Dentre os problemas, o defensor público Davi Quintanilha apontou que a internação tem sido a única alternativa ofertada, em alguns casos sem compreensão do paciente. "Muitos concordam, porque não têm local para ficar. Mas diziam que iam voltar para a Cracolândia após a internação. O Caps da Rua Helvetia, que faz o encaminhamento, não tem psicólogo, nem assistente social para orientar a pessoa. Havia termos de consentimento sem assinatura", relatou.

Representante do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), Mauro Aranha destacou que o programa não possui qualquer plano de atendimento, resumindo-se à internação médica e desintoxicação. "Quando somente se esvazia as ruas dessas pessoas está se tratando as ruas e não as pessoas. Quando não trata adequadamente, não tem acompanhamento; ao ter alta, essa pessoa vai voltar pra rua. Se a vulnerabilidade não for resolvida, vira um ciclo vicioso de internar e voltar para a Cracolândia", afirmou.

Segundo o médico, tudo que se faz em 30 a 45 dias de internação é tratar a síndrome de abstinência. Os pacientes ficam ociosos, sem desenvolvimento de outras atividades. Também há poucos profissionais em todas as áreas. "No fim da internação a pessoa devia ir para um serviço de acolhimento ou retomar os laços familiares, mas é mandada para o Centro de Atendimento Psico Social (Caps). Devia ter acompanhamento de um gerente de caso, que vai buscá-la ativamente se deixar o tratamento. Não detectamos esse serviço", relatou.

As entidades mobilizadas no monitoramento social do Redenção foram Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp); Conselho Regional de Enfermagem (Coren); Conselho Regional de Psicologia (CRP); Conselho Municipal de Política de Álcool e Drogas; Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (Condep); Conselho Regional do Serviço Social de São Paulo (Cress); Conselho Regional de Nutricionistas; Vara da Saúde do Ministério Público e núcleos especializados da Defensoria Pública (Infância & Adolescência, Direito da Mulher, Idoso e Pessoa com Deficiência, Cidadania e Direitos Humanos).

As entidades realizaram visitas técnicas para avaliar as condições de operação e padrões de tratamento dos Hospitais Psiquiátricos Cantareira, Nossa Senhora do Caminho, São João de Deus, São Miguel Arcanjo e Casa de Saúde Nossa Senhora de Fátima, que integram a rede de atendimento do Projeto Redenção. Os resultados das fiscalizações estão reunidos no documento Estamos de Olho: Avaliação Conjunta dos Hospitais Psiquiátricos do Projeto Redenção.

Mauro Dias da Silva, do Conselho Regional de Enfermagem, apontou falta de planejamento dos hospitais para receber os dependentes da Cracolândia. "Essas unidades não têm estrutura para atender a demanda normal. Não houve treinamento específico para receber esse tipo de paciente. Se não houver um número mínimo de profissionais é impossível atender com qualidade", afirmou. Segundo ele, o Hospital São João de Deus tinha 49 profissionais de enfermagem a menos. E o Hospital Nossa Senhora de Fátima tinha déficit de 43.

Presente à coletiva de imprensa, o coordenador chefe do Programa Redenção, o psiquiatra Arthur Guerra, afirmou que vai revisar o programa. "Pude ouvir as críticas, quase todas pertinentes. Nós vamos cumprir todos os ajustes que foram citados", afirmou. Ele negou, no entanto, que o programa seja apenas de internação e que estas estejam ocorrendo sem o consentimento dos dependentes químicos.

Os pontos principais do relatório são:

1 – Algumas instituições apresentam boas condições de higiene e operação, mas as unidades diferem em termos de composição de equipe e recursos técnicos e médicos adequados; há locais que dispõem de apenas um médico por turno; no geral, falta estrutura adequada;

2 – Falta integração entre as unidades hospitalares psiquiátricas e o restante da rede de atendimento psicossocial da prefeitura, dificultando o encaminhamento de pacientes para outras estruturas de tratamento e acolhimento;

3
– Todas as instituições fiscalizadas operam na lógica da abstinência e da desintoxicação, sem estrutura clara de acompanhamento familiar, encaminhamento pós-alta, reinserção social e tratamento continuado dos casos;

4 – Muitos usuários internados relataram ter chegado aos serviços hospitalares em busca de abrigo e alimento;

5 – Vários usuários relataram desconhecer o motivo e para onde foram levados; tampouco estavam informados sobre os procedimentos pós-alta e desconheciam os medicamentos que utilizavam;

6 – Em geral, foi notada ausência de atendimento personalizado aos usuários e aplicação de projeto terapêutico singular nas instituições; essa ferramenta é considerada essencial para a promoção do cuidado qualificado e digno;

7 – Foi observada reincidência, com repetidos relatos de usuários que já haviam passado períodos anteriores de internação em unidades psiquiátricas.

8 – Questões de gênero, com atendimento especializado voltado a pessoas trans e mulheres, são ausentes das práticas de internação; o sexo é proibido e não há trabalho preventivo como a distribuição de preservativos.

9 – Em todos os hospitais, foi notada falta de critérios claros para justificar as internações; são levados em conta apenas critérios de exclusão baseados em comorbidades que superam a estrutura técnica/ médica dos locais fiscalizados.