Porto Alegre sinaliza privatizar água e esgoto na contramão do mundo

Embora o prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB) negue se tratar de uma privatização, desde que o Executivo enviou à Câmara de Vereadores um projeto de lei que permite a participação da iniciativa privada na gestão de água e esgotos, a discussão sobre o fim das atribuições que hoje são do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) emergiu em Porto Alegre com protestos em defesa do caráter público do serviço e manifestações de figuras de diferentes governos da história da cidade.

Porto Alegre - Guilherme Santos/Sul 21

A proposta, protocolada no dia 28 de julho, altera o artigo 225 da Lei Orgânica Municipal, diz que o serviço de água e esgotos poderá ser “delegado ou contratualizado, nos termos da Constituição Federal”. Marchezan justifica falta de recursos para alcançar a universalização dos serviços de tratamento e distribuição de água, bem como coleta e tratamento de esgoto e “balneabilidade” do Guaíba.

Um relatório chamado “Veio para ficar: a remunicipalização da água como uma tendência global”, publicado em janeiro de 2015, entretanto, diz que a privatização não é uma boa ideia e que a “remunicipalização” – isto é, quando as cidades, depois de terem os serviços de águas privatizados, retomam o controle – é uma tendência em muitos países. Isso baseado na experiência de centenas de municípios do mundo todo. Políticos que escolheram o caminho da privatização devem, inclusive, “ponderar os riscos dessa decisão e aprender com os erros de outras autoridades locais”, diz a conclusão do estudo.

Metrópoles tão distintas como Acra (Gana), Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina), Budapeste (Hungria), Kuala Lumpur (Malásia), La Paz (Bolívia), Maputo (Moçambique) e Paris (França) remunicipalizaram seus serviços. Em verde, casos bem sucedidos de retomada. Em azul, campanhas em andamento. Veja o mapa interativo, em inglês, no Remunicipalization.org.
Metrópoles tão distintas como Acra (Gana), Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina), Budapeste (Hungria), Kuala Lumpur (Malásia), La Paz (Bolívia), Maputo (Moçambique) e Paris (França) estão entre as que estatizaram os serviços – e, “por contraste, neste mesmo período, houve muito poucos casos de pri­vatizações nas grandes cidades”. O estudo (que pode ser lido integralmente, em português lusitano, aqui) é da Unidade Internacional de Pesquisa de Serviços Públicos (PSIRU), do Instituto Transnacional (TNI) e do Observatório Multinacional.

Entre 2000 e 2014, o período pesquisado pelo relatório, pelo menos 180 entes públicos, entre municípios e estados, em 37 países, passaram novamente a gerir seus sistemas de água e saneamento. Em outro relatório, que considera o ano de 2015, o número sobe para 235 cidades. São 100 milhões de pessoas afetadas e há exemplos de todos os continentes, mas a maioria dos casos vem de países “com rendimentos elevados”, como caracteriza o estudo. Estados Unidos (com 59 cidades), França (49), Espanha (12) e Alemanha (8) concentram a maioria das estatizações verificadas até o final de 2014. Há também muitos exemplos em países “com baixos e médios rendimentos”, como Argentina, África do Sul e Cazaquistão.

O remunicipalisation.org, site que monitora o fenômeno da remunicipalização das águas globalmente, diz que foi nos anos 90 que muitos governos, sobretudo nas regiões mais pobres do planeta, privatizaram os sistemas de água e saneamento, como fruto da agenda de administradores neoliberais e instituições financeiras que pressionavam para que o serviço fosse “aberto”. Isso não ocorreu somente em municípios, mas também em províncias – como a de Buenos Aires e de Santa Fé, na Argentina – ou países inteiros, como Uruguai, Cabo Verde, Gana e Uganda.

A remunicipalização, todavia, em geral nasce de uma reação coletiva à “insustentabilidade da privatização da água e das PPP [parceria público-privada]”, como diz o relatório. As concessões, os contratos de ar­rendamento e outras PPP, de acordo com os resultados da pesquisa, não são diferentes de uma privatização. Todos os termos “se traduzem na transferência do controle dos serviços e da sua gestão para o setor pri­vado”, pontua o estudo.

Entre as conclusões, está o fato de que as remunicipalizações ocorrem cada vez em maior número, já que poucos casos ocorreram no começo dos anos 2000 e a maioria é do final do período analisado. E as razões para a retomada de controle público seriam “universais”: o desempenho insatisfatório das empresas privadas, o aumento “brutal” das tarifas, a falta de transparência das gestões e a má qualidade do serviço são causas citadas na maioria dos exemplos, sejam eles do hemisfério rico ou pobre do planeta.

A tendência observada com a remunicipalização, nas cidades pesquisadas, mostrou melhora de acesso e de qualidade dos serviços, de acordo com a investigação, por conta do fim da necessidade de “maximização do lucro” para as empresas. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Os contratos com as empresas, na maioria das vezes, foram rompidos através de rescisões – o que, para o estudo, indica que eram tão “insustentáveis” que os municípios, mesmo sabendo que poderiam ter de indenizar as corporações, optaram pela remunicipalização. Há casos de governos que foram obrigados a pagar multas milionárias às empresas que exploravam os serviços – como Indianápolis, nos Estados Unidos, cidade que foi obrigada a pagar 29 milhões de dólares à multinacional francesa Veolia; ou Berlim, que comprou as ações de entres privados que detinham o serviço. “Uma vez assinados os contratos privados, a sua rescisão antes do prazo é dificultada pelo risco do pagamento de indenizações multimilionárias”, diz o texto – e a influencia empresarial é particularmente mais forte nos países do sul, “que se encontram sobre forte pressão de agên­cias internacionais pró-privatização”.

A tendência observada com a remunicipalização, nas cidades pesquisadas, mostrou melhora de acesso e de qualidade dos serviços, de acordo com a investigação, por conta do fim da necessidade de “maximização do lucro” para as empresas. Preços mais baixos passaram a ser oferecidos em cidades como Paris, Arenys de Munt, na província espanhola da Catalunha, e Almaty, antiga capital e maior cidade do Cazaquistão; enquanto Grenoble (no sudeste da França) e Buenos Aires puderam aumentar os investimentos públicos nos sistemas.

O caso citado como mais representativo pelo relatório é o de Paris, já que é capital do país que tem a história mais longa de privatização da água – e, não por acaso, é sede da Veolia e da Suez, as duas maiores multinacionais do setor. Em 1984, as empresas passaram a dividir o abastecimento de água no território do município, com contratos valiam 25 anos. Quinze anos depois, porém, um organismo local de auditoria criticou a falta de transparência nos dados financeiros da gestão; dois anos depois, uma investigação solicitada pelo município verificou que os preços finais estavam de 25 a 30% acima dos custos justificados. Descobriu-se que as empresas inflacionavam preços e adiavam manutenções. A municipalização, porém, veio só em 2010, quando terminaram os contratos com a Veolia e com a Suez. O estudo diz que apesar das dificuldades de se fornecer água de qualidade em uma cidade do tamanho de Paris, as tarifas permanecem “bem abaixo” da média nacional.

Atlanta, capital do estado sulista da Geórgia, é a maior cidade estadunidense a remunicipalizar seu sistema de água. O contrato com a United Water, uma subsidiária da Suez, durou quatro anos – de uma previsão de 20 – e foi encerrado por má gestão. O relatório diz que a empresa despediu “metade da força de trabalho” e as tarifas “continuaram a subir ano após ano”, alem de que a qualidade da água era ruim a ponto de os moradores terem que fervê-la. Inspeções externas, após casos de água de cor alaranjada sair das torneiras, custaram mais de um milhão de dólares à cidade.

Em 1999, o governo moçambicano firmou uma PPP com a Águas de Moçambique –cujo acionista majoritário é a Águas de Portugal – para gerir o serviço em Maputo, que é a capital do país, e nas cidades de Beira, Nampula, Quelimane e Pemba, algumas das mais populosas do país que foi colônia portuguesa até 1975. Em 2000, após fortes enchentes que afligiram Moçambique, a empresa gestora queria aumentar as tarifas – enquanto o governo manifestava insatisfação com a falta de cumprimento de objetivos. Os contratos nas quatro cidades, à exceção de Maputo, terminaram em 2008 e não foram renovados. Na capital, a parceria terminou em 2010, antes do período previsto – e o governo precisou comprar 73% das ações da corporação. “Em 2005 o governo de Moçambique iniciou uma parceria sem fins lucrativos com a empresa holandesa Vitens Evides International em quatro cidades para prover serviços públicos de água acessíveis e de qualidade à população, focando-se no reforço das capacidades dos trabalhadores locais e de gestão”, diz o relatório.

Em Buenos Aires, a Suez também foi contratada para gerir as águas da cidade, em um contrato que duraria 30 anos a partir de 1993 – e, apenas oito meses após o início do serviço, uma revisão extraordinária das tarifas foi requerida. A empresa realizou, de acordo com o relatório “Veio para ficar”, menos de 60% dos investimentos acordados, e, em 2002 o governo entrou em um processo de negociação do contrato que levaria alguns anos – até que a Aysa, empresa pública de águas, foi criada. A Suez chegou a pedir indenização do município, após ser processada por autoridades locais, por organizações sociais e por próprios cidadãos bonaerenses. Desde a gestão pública, 700 mil pessoas a mais tiveram acesso ao sistema de água e esgoto.

Uma audiência no plenário da Câmara de Vereadores de Uruguaiana, na fronteira com a Argentina, discutiu na última sexta-feira (25) o serviço de água potável e esgotamento sanitário prestado pela BRK Ambiental. O evento foi criado para que a população questionasse a atividade e manifestasse os problemas gerados pela companhia. Há dois casos de privatização de água e esgotos no Rio Grande do Sul: além de Uruguaiana, também o município de São Gabriel, na Campanha, entregou o controle da atividade à iniciativa privada.

O caso da cidade fronteiriça chegou a ser uma discussão nacional quando as delações da Odebrecht atingiram políticos e autoridades locais, acusadas de receber dinheiro ilícito para o favorecimento da multinacional brasileira na entrega da gestão das águas. A empresa Foz do Brasil, que originalmente ganhou a licitação pertence à Odebrecht. A privatização ocorreu em 2011, no governo de Sanchotene Felice (PSDB).

A privatização em São Gabriel veio logo depois. O serviço, que antes era da Corsan – assim como em quase todos os municípios, à exceção dos que têm autarquias próprias – passou para a São Gabriel Saneamento em 2012, quando a cidade era governada por Rossano Dotto Gonçalves (PDT), atual prefeito. 98% do capital da empresa pertence à Veja Engenharia Ambiental, uma companhia sediada em São Paulo.

“Para nós foi uma ‘tomada na mão grande’”, disse o presidente do Sindiágua-RS, Leandro Almeirda. Os processos das duas cidades foram muito semelhantes. “Sempre diziam que a Corsan poderia participar dos processo licitatórios, mas as exigências criadas para a participação tinham critérios excludentes. Aliás, nem a Corsan nem a Sabesp estariam dentro dessas atenderiam aos pré-requisitos. Deveria ser uma empresa zerada”, conta o sindicalista. As companhias participantes não poderiam ter, por exemplo, demandas judiciais ou passivos trabalhistas – o que inviabiliza a participação da empresa pública, ou mesmo de muitas entidades privadas. “Eles criaram tudo de maneira direcionada, com as portas fechadas para a Corsan. Houve gente comprometida a entregar gratuitamente o patrimônio público”, diz Leandro.

A discussão sobre privatização das águas não foi exclusividade de Uruguaiana ou São Gabriel. “Trabalhávamos na renovação de contratos entre Corsan e as prefeituras. Um dos mais demorados de acontecer foi em Cachoeira do Sul, a primeira grande disputa que tivemos, que terminou cerca de cinco anos depois da discussão”. O serviço se manteve público.

Sobre as conseqüências da privatização, Leandro fala sobretudo a respeito da aplicação de capitais. “Os comparativos mostram que o argumento de que a privatização trará investimentos é uma falácia – que infelizmente é aceito por parte da população. O investimento que houve é mínimo. Se é que houve”, diz.