Escritoras lésbicas: a complexidade de narrar seus amores, mas não só

No mês da Visibilidade Lésbica, o Portal Vermelho traz diversas autoras lésbicas que escrevem sobre o amor entre duas mulheres, mas não só; mulheres que, através de narrativas complexas, derrubam o machismo literário e garantem seu espaço. E que, apesar de muitas vezes invisibilizadas, são célebres componentes da literatura mundial. Levantamos a reflexão: qual a importância de mulheres escreverem sobre si e seu amor?

Por Alessandra Monterastelli *

Elizabeth Bishop

Em junho deste ano, um site conhecido por venda de livros usados fez uma lista com alguns títulos sobre a temática LGBT, em homenagem ao mês do orgulho. Na lista constavam 5 livros; destes, 3 eram romances entre homens gays, 1 era um texto cientifico e o último era a história de uma mulher transexual.

Talvez essa lista, em especifico, não abordasse a verdadeira diversidade presente dentro da comunidade LGBT. Contudo, também não é exceção: muito se fala sobre a invisibilidade das mulheres lésbicas (cis ou trans) nos espaços culturais. Ainda que a cultura LGBT como um todo não tenha seu devido espaço nos grandes veículos midiáticos (agora começa a dar passos mais largos, com o reconhecimento do trabalho artístico de drags e travestis), a cultura lésbica em especifica não é tão veiculada, talvez pelo próprio fato de que o amor entre duas mulheres não é “levado a sério” no contexto de sociedade patriarcal.

O livro “Literatura Brasileira contemporânea: um território contestado” destaca que cerca de 72,7% dos romances brasileiros contemporâneos publicados por três grandes editoras (Companhia das Letras, Rocco e Record), entre 1990 e 2004, são de autoria de homens, em sua maioria brancos, nos quais a presença de personagens (homens ou mulheres) homossexuais é de apenas 3,9% (sendo que dentre estes, 79,2% são homens).

Qual a importância de mulheres escreverem sobre o amor entre duas mulheres?

A Carta Maior publicou, em julho de 2017, um artigo escrito pelo professor de Semiótica da FFLCH-USP Antônio Vicente sobre a iniciação cientifica de sua amiga e colega Débora Cristina Camargo. Sua pesquisa sobre o livro “Julieta e Julieta” (tema de seu trabalho), da escritora Fátima Mesquita despertou interesse sobre alguns fatos. Nos contos, as lésbicas não morriam, exceto uma morte natural, que põe fim na relação duradoura entre duas mulheres, tratando-se, portanto, de tematizar antes a viuvez do que a morte; isso se opunha ao fim das lésbicas em quase todas as as narrativas correntes em filmes, romances, telenovelas, isto é, a morte punitiva por ser lésbica. “Na maioria das narrativas em nossa cultura, elas ou reassumem a heterossexualidade, regenerando-se de seus supostos crimes contra deus e a natureza, ou, imersas em contravenções, estariam fadadas a morrer”.

O artigo ainda mostra outro fato importante. No Brasil, muito antes da emancipação da cultura LGBT, uma escritora contradisse essa tendência trágica que pesa sobre as lésbicas nas “artes católicas e na literatura burguesa”: Cassandra Rios. Ela escreveu numerosos romances sobre o tema, mesmo sendo censurada durante a ditadura militar (inclusive, o fato virou apelo comercial para imprimir na capa de seus livros- sem deixar de ser verdade- “a autora mais proibida do Brasil”). Escreveu “com lucidez singular para a sua época”: contou histórias muito bem, inserindo o amor entre mulheres junto com outras discussões temáticas; as personagens estão inseridas em outras tramas além das questões eróticas.

E aí existe um ponto, que pode ajudar a responder à pergunta inicial dessa matéria. No livro “Frente e Verso- versões da lesbianidade”, que reúne 64 artigos que tratam de diversas questões cotidianas como literatura, cinema, música, artistas, personagens lésbicas, sexo, relacionamentos, homofobia e casamento, desvendando algumas questões do cotidiano lésbico brasileiro de uma maneira leve e bem humorada, a escritora Laura Bacellar argumenta que “uma das características que sinto estar presente nos originais assinados por mulheres, mesmo aqueles menos elaborados, é a preocupação com as relações. Acho que nós mulheres não conseguimos imaginar uma pessoa como uma unidade completa e sempre entendemos que ela vem acompanhada de parentes, amigos, relações passadas, colegas”.

Para além da representatividade (fator também crucial) pode-se dizer que a importância de existirem escritoras narrando o amor entre duas mulheres está na criação de personagens para além da erotização, mas que são completas, que tem vidas e círculos sociais complexos, psicológico desenvolvido; está na relação dessas personagens ir além de meramente sexual, mas ser aprofundada nos detalhes, no cotidiano e mesmo na paixão. Características que exigem a vivência ou pelo menos um olhar feminino que quem está no papel de amar outra mulher, sendo mulher, no contexto em que vivemos.

Cassandra Rios, por sinal, é considerada uma das melhores romancistas que o Brasil já teve.

Dessa forma, para além de personagens, as mulheres tornam-se autoras.

A invisibilidade das autoras lésbicas se articula em dois caminhos: na exclusão por serem mulheres ou pelo ocultamento de sua sexualidade. Reconhecendo a estreita ligação da lesbofobia com o machismo, pode-se pensar nos caminhos como etapas: se a mulher vence o primeiro obstáculo, isto é, o machismo no meio literário (assim como nos outros meios), ela se vê de frente para o segundo obstáculo, uma mulher escritora que não escreve sobre seu amor e admiração por outro homem, mas sim por outra mulher, fato também não muito bem recepcionado em uma sociedade de raízes patriarcais.

Virginia Woolf, escritora inglesa que teve seus principais trabalhos publicados durante a década de 1920 e atingiu enorme reconhecimento internacional, teve sua sexualidade escondida.

Recentemente a Revista Cult e o site Sapatômica publicaram matérias sobre a revolucionária literatura e atitude de Safo, primeira escritora lésbica que se tem notícia, que viveu na Grécia Antiga na Ilha de Lesbos (daí, inclusive, o termo “Lésbica”). Safo compunha seus versos celebrando o amor homoerótico entre mulheres, organizou na época a primeira academia de mulheres, onde ensinada música, dança e poesia, em um tempo onde mulheres eram consideradas companheiras e não ativas ou estudantes. Nessa escola, mulheres, além de compor e declamar poesias, pegavam grandes obras da época escritas por homens e davam a visão delas; falavam sobre a experiência de ser mulher, da cultura, da admiração à natureza e às mulheres.

O termo “lesbiar”, inclusive, referia-se a imitar as mulheres de Lesbos, isto é, deixar o ambiente domiciliar e adentrar o mundo da cultura, debate e sexualidade.

Abaixo, um poema de Safo:

A Átis

Não minto: eu me queria morta.
Deixava-me, desfeita em lágrimas:

“Mas, ah, que triste a nossa sina!
Eu vou contra a vontade, juro,
Safo”. “Seja feliz”, eu disse,

“E lembre-se de quanto a quero.
Ou já esqueceu? Pois vou lembrar-lhe
Os nossos momentos de amor.

Quantas grinaldas, no seu colo,
– Rosas, violetas, açafrão –
Trançamos juntas! Multiflores.

Colares atei para o tenro
Pescoço de Átis; os perfumes
Nos cabelos, os óleos raros

Da sua pele em minha pele!
[…] Cama macia, o amor nascia
De sua beleza, e eu matava
A sua sede” […]

Cai a lua, caem as plêiades e
É meia-noite, o tempo passa e
Eu só, aqui deitada, desejante.

– Adolescência, adolescência,
você se vai, aonde vai?
– Não volto mais para você,
Para você volto mais não.

Existem muitas outras autoras lésbicas além de Safo, Cassandra e Virginia: Sarah Waters (que teve, inclusive, alguns livros adaptados para séries pela BBC), Audre Lorde, Rita Mae Brown, Vange Leonel, Elizabeth Bishop, Alice Walker, Alison Bechdel e Natalia Borges Polesso, entre outras. E existem também diversos livros que abordam a temática, entre eles Carol, de Patricia Highsmith, Amora, de Natalia Borges Polesso, as HQs Funhome e Você é minha mãe?, de Alison Bechdel, entre muitos outros.

“Você É Minha Mãe?” de Alison Bechdel, por exemplo, aborda o conflito entre a autora e sua família que tem dificuldades em aceitá-la. Gera uma reflexão sobre o que é ser lésbica na nossa sociedade.

As dificuldades do mercado editorial existem para todos os escritores, a partir do momento em que um livro é considerado um bem de consumo e, como tal, está sujeito às determinações do mercado; contudo, a literatura lésbica enfrenta dificuldades ainda maiores. Encontra-se, aí, a importância das pequenas editoras, que criam um lugar de fala e de identidade que não são comuns. Entretendo, a luta pela conquista de espaço nas grandes editoras continua sendo imprescindível.

E as mulheres lésbicas não estão presentes apenas na literatura, mas também no periodismo. Nos anos 80, no Brasil, foi criado e distribuído um jornal feito para mulheres homossexuais e por mulheres homossexuais, chamado Chana Com Chana. A publicação trava de notíciar protestos e atos políticos, mas também continha poesias, charges, um manifesto defendendo a autonomia do movimento de lésbicas, anúncios convidando as mulheres a divulgar seus times de futebol amador feminino, depoimentos pessoais e um convite para mães lésbicas se fazerem visíveis.

Leia o PDF da edição número 4 completa do jornal, disponibilizada pelo Acervo Bajubá de Memória LGBT.