Penélope Toledo: Eu tenho um sonho: ver o racismo expulso de campo

Um torcedor do Botafogo fez insultos racistas contra a família de Vinícius Jr, do Flamengo. É inacreditável que em pleno século XXI, pessoas sejam julgadas pela cor de sua pele, não por seu caráter, como denunciou Martin Luther King em seu histórico discurso “Eu tenho um sonho”, há mais de 50 anos.

racismo no futebol

Passadas cinco décadas, a aspiração do líder negro está longe de ser concretizada, infelizmente. A herança escravocrata e senzalista deixou marcas profundas na sociedade e os racistas, por mais retrógrados, absurdos e ridículos que sejam, continuam segregando as pessoas de acordo com a quantidade de melanina e transformando o futebol em um enorme Apartheid.

Neymar, Hulk, Aranha, Daniel Alves, Bárbara, Tinga, Arouca, Roberto Carlos, Grafite, Formiga, Michel Bastos, Obina, Elicarlos, Paulão, Ester, Gabriel Tiné, Andrade, Cristóvão Borges, árbitro Márcio Chagas. Eto’o, Balotelli, Touré, Sulley Muntari, Benatia, Seedorf, Asamoah, Marc Zoro, Boateng, Selassie, Olisadebe, Kevin Constant, Eniola Aluko. A lista de jogadores/as vítimas de injúria racial, no Brasil e no mundo, é extensa, tão extensa quanto a ignorância que é o preconceito.
O último Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol apontou 35 casos de racismo no Brasil ou com jogadores brasileiros fora do país em 2015, sendo a maioria dentro das arenas esportivas e alguns pela internet. Este número é maior, pois o Relatório registrou o que foi divulgado pela imprensa.

Racista desde o nascimento

Até o direito de se deixar encantar pela magia do futebol foi, durante muitos anos, tolhido às pessoas negras. Esporte trazido ao Brasil pela elite, era restrito aos brancos. Reza a lenda que Carlos Alberto, do Fluminense, passava pó-de-arroz no rosto para clarear a pele – daí o termo “pó-de-arroz” para as torcidas de clubes considerados de elite.

O pioneirismo no combate ao racismo é incerto e reivindicado por alguns clubes. A Ponte Preta diz que é ela, pois um de seus fundadores, em 1900, ero o afrodescendente Miguel do Carmo, que virou jogador do time.

O Bangu diz que é ele pois, fundado por operários, abandonou a Liga Metropolitana em 1907 por causa da proibição e foi campeão da 2ª divisão do carioca em 1911 com negros no elenco.
O Vasco diz que é ele, pois teve o primeiro presidente “não branco” (como diziam na época), Cândido José de Araújo, em 1904, e foi o primeiro campeão de Série A com jogadores negros na equipe, em 1923.

É preciso virar o jogo

Atitudes como esta do torcedor do Botafogo nos fazem retroceder ao século XVI, ao Brasil colonial. Como se não tivéssemos evoluído nada em 500 anos.

Pior, reabrem as feridas e as dores dos ancestrais que foram arrancados da sua África, transportados em navios precários e superlotados a outro continente, escravizados, violentados, proibidos de cultuar os seus deuses e extirpados de sua identidade cultural.

Em nome de toda essa gente, é fundamental que os atletas vítimas de racismo denunciem, se engajem no combate ao preconceito e usem a visibilidade que têm para estimular que outros o façam.

E já passou da hora dos clubes e federações entrarem em campo neste difícil jogo. Punir as equipes e torcedores, fazer campanhas, interromper as partidas. Nas décadas de 1960, 70 e 80 parecia impossível vencer a violência e o nazismo dos hooligans. Mas o futebol venceu. Pode vencer de novo, é só ter políticas claras, punições severas, empenho e uma alta dose de boa vontade.