Para Adilson Paes, policiais não estavam à toa em audiência na Unifesp

"Eles não estavam lá à toa; alguém determinou", essa foi a falam de Adilson Paes, oficial aposentado da PM e mestre em Direitos Humanos, sobre invasão de policiais à audiência na Unifesp.

Adilson Paes, oficial aposentado da PM e mestre em direitos humanos - Brasil de Fato

Adilson Paes cobra punição aos superiores hierárquicos dos policiais que hostilizaram docentes e estudantes durante discussão do Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos de São Paulo

Na última sexta-feira (11), dezenas de policiais militares invadiram uma audiência pública no campus Baixada Santista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) onde professores, alunos e técnicos discutiam o Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos de São Paulo. Os policiais traziam cartazes com palavras de ordem e gritavam contra os direitos humanos, segundo relatos de alguns dos presentes à Pública. Durante a audiência, docentes e estudantes que manifestavam discordância durante e a audiência foram filmados pelos invasores e a pressão continuou na votação do plano. Alguns itens – aos quais os policiais se opunham –foram suprimidos como a obrigação de formar agentes de segurança pública sob os princípios dos direitos humanos.

Para o tenente-coronel da reserva e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP), Adilson Paes de Souza, os PMs infringiram leis civis, penais e artigos do código de disciplina da corporação neste episódio. “São vários crimes praticados pelos policiais militares. Se quiserem punir, está fácil porque há várias imagens para identificá-los”, afirma Adilson. “Os superiores hierárquicos desses policiais devem ser punidos. Era um número imenso de policiais militares, eles não estavam lá à toa. Alguém determinou”, avalia.

Estudioso do ensino de direitos humanos no curso de formação de oficiais da PM paulista, Adilson diz que o episódio reflete o profundo repúdio ao tema pela maioria dos policiais da tropa. “Se você falar em direitos humanos, você é um covarde, você é um fraco, você está protegendo um bandido. Eles não sabem nem o que são os direitos humanos, são vítimas e ao mesmo tempo os autores”, analisa o ex-policial. Em entrevista à Pública, ele critica a formação defasada, pouco transparente e alheia à realidade social a qual os policiais militares são submetidos na área de direitos humanos. “O que aconteceu na Unifesp é a prova – pra mim cabal – de que a política de segurança é a política do extermínio”, afirma.

Por que há essa aversão por parte de alguns policiais à pauta de direitos humanos?

Eu não acho que há uma certa aversão, acho que há um total repúdio ao tema de direitos humanos, onde se sedimenta esse sentimento equivocado que foi visto lá. Essa visão de que direitos humanos é direito “dos manos”, “direitos humanos para os humanos direitos”. Isso é típico. Isso é a pura verdade, não é uma mera aversão – há um repúdio à temática dos direitos humanos pela maioria dos policiais militares.

Como pode haver um distanciamento tão grande da corporação com esse tema, uma vez que, pela nossa própria legislação, a atuação policial tem que ser pautada nos direitos humanos?

No meu livro, “O Guardião da Cidade”, eu falo um pouco sobre o ensino de Direitos Humanos pela Polícia Militar. É um ensino extremamente formal, só para dizer que consta no currículo, e até para servir como um álibi para a instituição diante da conduta equivocada de vários policiais militares que geralmente se traduz em graves violações de direitos humanos. É algo para reforçar o discurso de que as falhas do policial são individuais e não da corporação – afinal, existe ensino de Direitos Humanos na corporação. Mas é um ensino falho, equivocado. Existe apenas uma aparência de ensino. Eu estou sendo rígido na minha avaliação, mas cada vez mais, infelizmente, o comportamento dos policiais vem demonstrando isso.

O que aconteceu na Unifesp foi um exemplo cabal disso. Ali não há como se falar em conduta individual, né? Havia vários policiais envolvidos no episódio. A gente pode afirmar que havia alguma organização para esses policiais irem lá, ninguém aparece do nada, da maneira como apareceram nessa reunião e agindo como agiram. Alguém estava dando suporte e planejou isso. E ficou claro nesse episódio essa visão totalmente equivocada. Esses mesmos policiais quando são acusados pela prática de um crime, ou pela prática de uma transgressão disciplinar eles apelam aos direitos humanos – quando eles exigem o devido processo legal, um julgamento justo, baseado em provas obtidas legalmente, observando todas as formalidades. Esses mesmos policiais quando são acusados civil ou criminalmente clamam por direitos humanos. Quando eles têm que fazer prevalecer isso com o outro, eles vêm com essa teoria de que direitos humanos são “coisa de marginal” pra usar uma expressão bem popular. Isso reflete a conduta de uma instituição que não dá a devida atenção aos direitos humanos, que os trata como mera formalidade, só para dizer que os observa quando não observa.

Quais são as falhas no ensino de Direitos Humanos da corporação?

Primeiro, o ensino não é calcado na experiência. As ocorrências que envolvem mortes de civis não são tratadas de maneira oficial nas escolas, não há um estudo de caso do que deu errado. Não são explorados os fatos negativos. Existe um tabu, esses assuntos não são comentados. Então você tem um ensino que nega a experiência e a própria realidade para os alunos. Eles não são preparados para atuar numa sociedade porque eles não conhecem a realidade dessa sociedade. Não é falado nada para eles sobre violência policial, sobre corrupção policial, sobre as falhas do sistema. Não é dito para eles de uma maneira enfática e baseado em casos práticos dos limites de ação da polícia. Eles não são super-homens, eles não podem fazer tudo em nome da segurança pública – eles têm limites e devem atuar dentro desses limites. E o mais grave de tudo: o processo de formação do policial militar não se desenvolve de uma maneira transparente, a sociedade é impedida de participar desse processo.

A sociedade civil não tem acesso aos currículos, não tem como opinar, como avaliar se essa formação é adequada ou não. Justamente a mesma sociedade que é cliente da polícia. Essa falta de transparência faz com que haja um ensino formal, com conteúdos equivocados e sem que outros conteúdos essenciais sejam ensinados. E isso desde sempre. Eu conheço muito bem a história do curso de formação de oficiais da corporação. A temática de direitos humanos começou a ser tratada em 1994 – embora só em 2000 ela tenha ganhado o nome de Direitos Humanos. Eu conheço vários pesquisadores de vários institutos nacionais e internacionais que gostariam de colaborar na formação dos policiais militares, mas a participação deles é negada, os dados são negados. Tudo é escondido. Até pouco tempo atrás, o governador do estado de São Paulo declarou como secretos os currículos da escola de formação.

Hoje não são mais, mas mesmo assim você não consegue ter acesso. Então é muito difícil de avaliar, é um assunto que a sociedade não pode participar. E pasme: o ensino de Direitos Humanos para policiais militares não está sob a égide da Lei de Diretrizes e Bases (LDB). O artigo 83 da LDB diz: “o ensino militar reger-se-á por leis específicas”. Todo o sistema de ensino da Polícia Militar do Estado de São Paulo tem por base esse artigo 83 da LDB, ele associa o ser policial militar a ser militar, o que já é grave, e emprega esse artigo. Ao empregar esse artigo, ele afasta os princípios da Lei de Diretrizes e Bases: ou seja, esses princípios – transparência, participação da sociedade, ensino baseado em realidade social – não são observados para o ensino de Direitos Humanos da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Isso é um resquício da ditadura, nós estamos pagando o preço de uma transição inacabada para democracia, fruto de uma chantagem.

Outra coisa que me chamou a atenção nesse episódio da Unifesp foi que depois da audiência pública os policiais militares presentes votaram em peso contra a obrigação da inclusão de direitos humanos em seus próprios currículos. Como o senhor encara essa recusa dos policiais quanto a essa formação?

Os relatos que eu ouvi são de que eles não só votaram contra, como ameaçaram outros presentes. Mas essa é a ideia que é massificada entre muitos policiais. Se você falar em direitos humanos, você é um covarde, você é um fraco, você está protegendo um bandido. Eles não sabem nem o que são os direitos humanos, são vítimas e ao mesmo tempo os autores de uma grande idiotice. São manipulados e ao mesmo tempo manipuladores e caem nesse discurso conservador e fascista de que determinadas pessoas merecem ser exterminadas. A demonstração do que aconteceu na Unifesp é a prova – pra mim cabal – de que a política de segurança é a política do extermínio, que apregoa e estimula a eliminação de pessoas em nome de uma pretensa segurança pública. E vou além: cada vez mais esse tipo de atitude faz com que as pessoas desconfiem da polícia. As pessoas cada vez menos respeitam a polícia, elas mais temem a polícia. E aí nós temos um vazio.

O senhor acha que essa aversão dos policiais aos direitos humanos vêm crescendo no vácuo de discursos de ódio que vêm ganhando espaço?

Acho que vem aumentando sim. Há setores da sociedade alimentando esse discurso conservador e de ódio. Alguns por convicções políticas e pessoais, muitos por medo e por se sentirem desamparados. Boa parte da população se sente abandonada e quer uma solução rápida, qualquer que seja, para os seus problemas. Eles não param para pensar no sistema como um todo. Existe um recrudescimento das posições, no sentido de eliminar pessoas, e os policiais estão embarcando nessa sim. Não há como negar. Infelizmente. Eu sou tenente-coronel da Polícia Militar e me sinto envergonhado com isso, porque eu acho que a polícia não merece isso, mas ela sim está cavando a sua própria sepultura.

Por outro lado, às vezes não falta aos grupos de direitos humanos reconhecerem os policiais como vítimas de violações e não só como autores?

Eu discordo porque, para incluir, os policiais têm que estar dispostos ao diálogo. O que aconteceu na Unifesp não foi participação de policiais numa audiência pública. Foi uma invasão com intimidação geral. Não tem outro termo, eu gostaria de falar outra coisa, mas não posso. Eram pessoas armadas, algumas fardadas, em atitude hostil, tumultuando o ambiente com palavras de ordem e ameaçando outras pessoas que estavam presentes. A presença da polícia foi o fator de desestabilização de uma audiência pública. Como chamar esse tipo de pessoa para o diálogo se ela não está disposta? Agora, claro que não é possível generalizar: dizer que todos os policiais são abusivos, todos são corruptos e violadores de direitos humanos. A sociedade tem que deixar sempre a porta aberta para o diálogo. Na audiência mesmo, eles foram convidados pelas notícias. Mas eu não chamaria mais policiais militares para outras audiências e nem permitiria a participação deles. Por mais que eles não concordassem com as opiniões ali colocadas, eles tinham que respeitá-las. Isso é a essência do jogo democrático.

Ocorreram crimes nesse episódio da Unifesp na sua opinião?

São vários crimes os praticados pelos policiais militares. Se quiserem punir, está fácil porque há várias imagens para identificá-los. E os superiores hierárquicos desses policiais devem ser punidos. Era um número imenso de policiais militares, eles não estavam lá à toa. Alguém determinou. E há responsabilidade, no mínimo, do comandante do batalhão e do comandante da área. O que teria que acontecer imediatamente depois desse episódio – e até agora eu não tive notícia de que isso ocorreu – era um pedido de desculpas do chefe do Executivo estadual pela atuação dos policiais militares. É um absurdo. Eu não concordo com o que está sendo dito ali, vou lá e invado a audiência? Isso merece uma resposta drástica em termos penais, em termos civis. Eles cometeram improbidade administrativa. Eles foram lá com o fardamento, com o equipamento do Estado que não é pago para isso, há relatos de que lá estavam viaturas. Eles não respeitaram os direitos e garantias constitucionais dos civis que estavam lá, de liberdade de expressão e manifestação, então cometeram improbidade administrativa. Além do que, há a transgressão de vários artigos do regulamento disciplinar da polícia militar – transgressões graves. E nada vai acontecer? Ao que tudo indica não. É isso. Eu gostaria de falar algo diferente, mas não dá. Eu como policial militar, como tenente-coronel me sinto envergonhado pelo que esses policiais fizeram.

O que vem sendo feito dentro da corporação para coibir violações de direitos humanos e episódios como este?

Sinceramente não conheço. Conheço alguns poucos policiais que têm o mesmo pensamento que eu, mas que não se atrevem a se manifestar por estarem no serviço ativo e por temerem represálias.

Você falaria dessa forma se ainda estivesse na ativa?

Não. Tanto é que eu aposentei em janeiro de 2012 porque eu ia defender o meu mestrado em junho. Esse foi um dos motivos. Não havia como eu ficar, justamente por temer represálias. E do ponto de vista da instituição, respondendo à pergunta anterior, eu não vejo nada. Sinceramente. Como é que eu poderia ver alguma coisa? Primeiro: chamar a sociedade para participar da vida acadêmica e do dia a dia da polícia. Os dados são negados. Quando se consegue alguma coisa, é via Lei de Acesso à Informação. A sociedade não participa do ensino, que é uma coisa fechada. Os conteúdos são completamente dissociados da realidade social. Não há transparência quanto à apuração de fatos, quanto à repressão de condutas equivocadas. E o discurso é sempre o mesmo: a de que os policiais tiveram que revidar agressões, mesmo em casos como o que aconteceu recentemente em Pinheiros, com o carroceiro, em que a instituição defende que houve legítima defesa embora normas da própria polícia não tenham sido observadas. A polícia insiste que o outro sempre reagiu e assim vai protegendo os policiais que agem de maneira errada e aí se sedimenta a cultura da impunidade e do abuso.