Mercadante: O Fies e o custo da exclusão educacional e da ignorância

O Brasil possui um desenvolvimento capitalista tardio e uma educação retardatária, profundamente marcada pelas chagas do passado colonial e pela escravidão. As primeiras instituições de ensino superior no Brasil foram fundadas após a chegada da corte portuguesa, no Rio de Janeiro, em 1808. Somente em 1920, quando ainda tínhamos 75% da população analfabeta, foi implantada a primeira universidade brasileira, a atual Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Por Aloizio Mercandante*

Aloizio Mercadantes ministro da Casa Civil - Agência Brasil

A Universidade de Bolonha, a mais antiga, foi instalada em 1088, a de Paris em 1170, a de Cambridge em 1209, a de Salamanca em 1218 e a de Coimbra em 1290. Na América Latina, no início do século 16, já existiam universidades em seis países, até o final do século 18 havia 19 universidades, posteriormente, mais 31 no século 19. Quase todos os países latino-americanos, com exceção do Brasil, já possuíam uma ou mais universidades no século 19.

Naquele momento da história, as universidades ocupam um papel decisivo na preservação da herança do conhecimento humano, sua avaliação crítica e contínuo processo de criação de novos conhecimentos. No novo padrão científico, tecnológico e de inovação, as universidades cumprem um papel relevante e indispensável.

O atraso histórico na educação universitária explica uma parte das dificuldades do Brasil de ingresso na sociedade do conhecimento. No ano de 2002, o país tinha 16.505 cursos de graduação e 3,4 milhões de matrículas de educação superior. Em 2015, eram 32.878 cursos e 8,5 milhões de estudantes. Esse foi o período de maior expansão da educação universitária da história do Brasil.

A rede de universidades federais que era composta, em 2002, por 45 universidades com 148 campus atingiu, em 2015, 65 universidades com 327 campus. As matrículas de graduação passam de 512 mil, em 2002, para 1,06 milhão em 2015. Na pós-graduação, eram 48.925 matrículas de mestrado e doutorado, em 2002, e 143.595, em 2015.

Um processo semelhante ocorre com os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnológica. Com uma trajetória secular, tinham 140 campi até 2002 e são 600 em 2016, superando 1 milhão de estudantes matriculados.

Uma grande democratização do acesso decorre das mudanças no Enem, que passou a ser, desde 2009, o caminho de oportunidades para a educação superior. Os mais de 8 milhões de inscritos no exame nos últimos anos expressam a histórica demanda reprimida por educação universitária. São uma parcela dos 16,8 milhões de estudantes, entre 18 e 29 anos, que terminaram o ensino médio e não chegaram à universidade e os mais de 2,5 milhões de concluintes do ensino médio todos os anos.

O Enem abriu um caminho de oportunidades para o acesso. Com a nota do Enem o estudante pode disputar uma vaga, em qualquer curso, em toda a rede pública federal, por meio de um sistema informatizado: o Sisu. No Sisu, metade das vagas são para os estudantes das escolas públicas, com acesso preferencial para os de baixa renda, negros e indígenas.

A segunda oportunidade para os estudantes da rede pública com baixa renda, ou professores concursados do ensino básico é a disputa de uma vaga no Prouni, que já distribuiu mais de 1,7 milhões de bolsas de estudos nas instituições privadas, como uma contrapartida das isenções fiscais que parte das instituições têm direito. E finalmente, um financiamento público e subsidiado no Fies.

Esse esforço de expansão e democratização do acesso foi acompanhado pela regulação e pelo controle da qualidade. Em 2004, foi implementado o Sinaes, um sistema de avaliação dos cursos e instituições, no qual todas as políticas públicas de acesso dependem das respectivas avaliações. As notas de avaliação variam de 1 a 5, e só podem receber bolsas do Prouni e o financiamento do Fies os cursos com notas igual ou superior a 3. Portanto, além do acesso para os 87% dos estudantes do ensino médio, que são procedentes da rede pública, esses programas procuram induzir a qualidade dos cursos e das instituições privadas de ensino superior.

Importante destacar, que todas as pesquisas acadêmicas realizadas até este momento, demonstram que os estudantes cotistas, ou bolsistas do Prouni e Fies apresentam um desempenho acadêmico equivalente aos demais estudantes ao final do curso. Reforça o argumento que o que faltava a estes estudantes, historicamente excluídos, era a oportunidade do acesso e permanência na educação superior.

O Fies, foi reformulado em 2010 como financiamento reembolsável, com prazos mais longos, carência e juros favorecidos, já beneficiou 2,6 milhões de alunos. Agora, tornou-se alvo de análises superficiais e distorcidas, que se utilizam da grave crise fiscal para implantar uma política de desmonte e retrocessos na educação pública.

O primeiro argumento, é de que o Fies não contribui para as metas do Plano Nacional de Educação. É evidente que contribui e muito. As matrículas seriam aproximadamente 25% menores na educação superior sem o Fies. O programa impulsiona o acesso e contribui para a permanência, que sempre foi um objetivo complementar do programa. A evasão na educação superior, que é elevada especialmente nas instituições privadas, é, em média, 3,5 vezes maior entre os estudantes pagantes e não beneficiados pelo Fies.

O segundo argumento é de que o Fies cresceu muito rápido. É verdade. Mas, basta a comparação desse crescimento com o forte aumento nas inscrições do Enem, com cerca de 8 milhões de participantes, para compreender a necessidade imperiosa de expansão do Fies. Apesar dos recentes avanços de expansão continuamos com uma imensa demanda reprimida, e o total de vagas ofertadas não chega a 25% dos inscritos no Enem.

É importante destacar que entre os beneficiários do Fies, 96,8% dos estudantes possuem renda familiar de até 3 salários mínimos per capita e 54,1% até um salário mínimo per capita. O Fies é o programa público de acesso e permanência à educação superior de maior alcance social. Um dos argumentos para o desmonte do Fies é que os bancos responsáveis não cumpriram as regras de acesso ao programa. Os bancos são públicos, BB e CEF.

A auditoria do TCU em 2014, em 732 mil contratos identificou apenas 258 em desconformidade com o critério de renda. As auditorias, fiscalização e controle da CGU e TCU são recorrentes, rigorosas e contribuíram para o aprimoramento do programa ao longo do tempo. O MEC propôs a criação do INSAES – Instituto Nacional de Avaliação do Ensino Superior, desde 2012, para fortalecer os instrumentos de avaliação, fiscalização e supervisão da educação superior, mas a Câmara dos Deputados não votou até hoje este projeto de lei.

Em 2015, com o novo cenário de restrições fiscais, fizemos importantes modificações no programa, aumentando as vinculações das vagas aos cursos melhores avaliados, reduzindo o patamar de renda familiar para 2,5 salários mínimos per capita e definindo prioridades para os cursos, além de uma proporcionalidade para as cinco regiões do país. As taxas de juros foram elevadas de 3,5% par 6,5% a.a., uma melhora de qualidade no Fies, mas com consequente redução da oferta de vagas.

Já o argumento de que o Fies é igual ao Prouni, além de frágil é improcedente. O Prouni não é reembolsável e atinge um número restrito de instituições beneficiadas por incentivos fiscais.

Outro argumento dos críticos do Fies é de que a inadimplência do programa está alta. Está alta para todas as modalidades de crédito, e relativamente muito mais grave para os créditos de maior custo relativo. Essa inadimplência decorre sobretudo de uma conjuntura que apresenta a maior recessão da história documentada do país e não pode ser projetada para as próximas décadas como fazem as críticas superficiais ao Fies.

Além disso, são jovens que estão iniciando sua atividade profissional e tendem a regularizar o acesso ao crédito ao longo da vida. E, a exemplo das demais modalidades de crédito, sempre existe o princípio da renegociação de prazos e das condições de pagamento.

É importante registrar que a projeção de inadimplência que está sendo utilizada pelos críticos do Fies não respeita as próprias normas do Banco Central e o prazo de carência dos empréstimos. Desconsidera, ainda, que uma parcela importante desses créditos conta com um avalista pessoal, critério que foi flexibilizado no final de 2013 por decisão do Congresso Nacional, que retirou medidas protetivas e sobrecarregou o FGEDUC, o fundo garantidor destas operações de crédito.

Por fim, argumentam que o volume de crédito concedido é elevado. De fato, é, mas representa menos de 3% do total de crédito público ofertado para atividades empresariais, imobiliárias, agrícolas ou infraestrutura. A oferta de crédito público é historicamente subsidiada, em decorrência das abusivas taxas de juros praticadas pelo sistema financeiro brasileiro.

Os EUA já ofertaram US$ 1,3 trilhão em crédito educativo. Na crise de 2009, quando da explosão da inadimplência, aumentaram a oferta em 40% e melhoraram os prazos de pagamentos em até 30 anos, mantendo a prioridade da educação.

De fato, crédito educativo tem um custo fiscal, mas a última pesquisa do PNAD-IBGE revela que no quintil superior da renda dos mais ricos, 37,3% são diplomados no ensino superior, enquanto apenas 1,3% no quintil mais pobre. Essa profunda desigualdade educacional, que está na raiz das desigualdades sociais, apenas começou a mudar.

Em 2015, dos concluintes que fizeram o Enade, 35% foram os primeiros de suas famílias a serem diplomados. O crédito educativo tem um custo para a sociedade, mas ainda é muito menor que a exclusão educacional e a ignorância que marcam a história brasileira.