Se você quiser o meu nome completo, é esse: Luiz Melodia do Samba

Foi no morro de São Carlos, no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, em um dia seguinte de Festa de Reis, em 1951, que veio ao mundo Luiz Carlos dos Santos, que o Brasil viria a conhecer como Luiz Melodia. “Minha infância foi muito bacana” – disse o cantor que morreu nesta sexta-feira (4)* em decorrência de um câncer – “uma infância legal mesmo, a gente subia em árvore pra tirar manga, tinha pescaria, futebol, bola de gude, o carinho e amor dos parentes… isso foi fundamental”.

Foto: Divulgação

O único filho homem do sambista e compositor Oswaldo Melodia e de dona Eurídice descobriu a música em casa, e bem cedo: “Meu pai era música, e a música estava do meu lado, estava próxima, eu ouvia desde os 10, 11 anos, o samba de quadra, os blocos, o violão que meu pai tocava, as serestas que aconteciam, o rádio… ouvi muita musica na minha infância”.

Logo o garoto mostrou ter muito “jeito para a coisa”, apesar da vontade do pai, que queria vê-lo acadêmico e formado. Não adiantou: o jovem Luiz largou o ginásio e passou a adolescência tocando canções da Jovem Guarda (adorava Roberto Carlos) e sucessos da Bossa Nova. Logo viria também a fazer suas primeiras músicas. “Com 13 anos comecei a compor, na viola do meu pai, de 4 cordas, que eu pegava escondido quando ele ia trabalhar”.

Corria o ano de 1964 quando o jovem violeiro formou, com amigos, a banda Os Instantâneos. “Meu primeiro instrumento foi a viola” – conta Melodia – “depois fui aprendendo alguns acordes de violão, com amigos que tocavam muito mais que eu, e um ia ensinando para o outro, aquilo era legal…”

A influência da música jovem dos anos 60 mesclada à bossa nova e ao ambiente de samba dos morros cariocas foi gerando, aos poucos, um estilo único, que a voz singular do jovem compositor só valorizava. Alguns artistas que freqüentavam o morro de São Carlos (como o poeta Torquato Neto) começaram a ouvir falar daquele talento precoce quando, inesperadamente, o destino moveu suas peças: “Eu já compunha e tinha algumas canções quando conheci, nos anos 70, o (poeta) Waly Salomão, e ficamos muito amigos. Vira e volta ele ia nos visitar, ficava lá com a comunidade, com a rapaziada do morro… E por felicidade minha, na época ele estava dirigindo um show da Gal Costa, que era o Gal a Todo Vapor, e aí ele me perguntou se eu não gostaria que a Gal cantasse uma música minha. Lógico que aceitei de cara, falei: 'é claro que eu quero!'. Aí ele me levou até a Gal, toquei a musica, ela adorou, 'de prima', e pôs no repertório do show…”

A música que encantou Gal Costa chamava-se Pérola Negra e seria gravada pela primeira vez em 1972, no famoso registro em disco da performance “a todo vapor” da musa tropicalista. “Eu tinha mais ou menos uns 18 anos e me senti no paraíso. Gal estava no auge da carreira, e logo depois que ela me gravou assinei com a Polygram e fiz meu disco, o Pérola Negra. Mas antes, a Maria Bethânia também quis uma canção minha. Ela perguntava: 'quem é esse cara que vocês tanto falam?', e aí fui com Caetano (Veloso) à casa de Bethânia, mostrei Estácio Holly Estácio, e ela a gravou”.

Foi nessa época que o jovem compositor cunhou o nome artístico que se tornaria famoso (com o mesmo sobrenome artístico de seu pai, Oswaldo Melodia), impulsionado pelo enorme sucesso do LP Pérola Negra(1973): nada menos que oito das dez faixas se tornaram canções inesquecíveis da música brasileira. “Meus maiores sucessos estão lá. O Pérola Negra foi meu primeiro disco, tem uma presença muito forte na minha vida, uma importância fundamental. Ele me colocou onde estou e é um dos meus favoritos, ao lado do Maravilhas Contemporâneas e do Mico de Circo, onde prestei homenagem a todos os excluídos”.

Desde o lançamento de Pérola Negra uma legião crescente de fãs se deliciou com o sabor especial daquelas canções onde o cotidiano aparece temperado de poesia, ou vice-versa (a célebre Magrelinha, por exemplo, com o verso sobre o sonho que vinha “dos lugares mais distantes” foi inspirada em uma namorada estrangeira do cantor que também é a musa de Abundantemente Morte).

Mas era só o começo. Outras criações estavam a caminho para brilhar na constelação musical brasileira, com inimitável cadência: Ébano, Fadas, Juventude Transviada, sem falar da voz inigualável dando vida nova a Negro Gato ou a Codinome Beija Flor. Assim, Luiz Melodia entrou para o panteão das estrelas da MPB. “Sou amigo da Gal e da Bethânia até hoje, são pessoas muito importantes na minha vida, mesmo que não as encontre como antes: às vezes é só no aeroporto, como dia desses quando dei com Caetano antes de embarcar, ou em festas lá em Salvador…”

Além dos muitos álbuns lançados, Melodia esteve em várias turnês internacionais: em Chateauvallon (França) e em Berna (Suíça) em 1987, no "III° Festival de Música de Folcalquier" (França) em 1992, no Festival de Jazz de Montreux (Suíça), em 2004, e sempre tratado, por sua originalidade, como um cantor e compositor de mil faces: de MPB, de blues, de soul, de samba.

“Eu ouvia de tudo, e como eu não me podava do que ouvir, essa coisa fez com que eu compusesse de tudo: rock, samba, baião, fiz de tudo um pouco. Fui criado no morro de São Carlos, onde moravam pessoas de vários estados brasileiros, de Minas, de Porto Alegre, do Nordeste, e eu ouvia todos eles, nos fins de semana os mineiros tocavam, ou os nordestinos, e essa coisa entrou, foi me influenciando ainda jovem, como se fossem várias cidades do nosso Brasil numa comunidade só”.

E o samba? Esse sempre esteve presente, às vezes explícito, às vezes como uma poderosa influência em sua composição. Assim, em 2007, veio o CD Estação Melodia, onde o cantor de voz única garimpou pérolas de Cartola, Ismael Silva, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Garoto, além de canções do pai dele, Oswaldo Melodia. E foi falando de coração, num repente, que ele disse: “Minha relação com o samba vem do morro, fui muito ligado ao samba, aos blocos de rua, lembro do Bafo da Onça disputando na avenida com o Cacique de Ramos, e o samba sempre foi muito presente na minha vida. Sou do Estácio e lá nasceu a primeira escola, a Deixa Falar, hoje Estácio de Sá, então meu convívio foi esse, ainda mais no Rio de Janeiro onde o samba é tão forte e embala todas as festas, todos os eventos, embala a nossa cultura, é a nossa cultura – e eu sou o Luiz Melodia do samba. Se você quiser o meu nome completo, é esse: Luiz Melodia do Samba”.

*A entrevista foi publicada originalmente em 2014