Homens trans há 100 anos: a prova de que o gênero sempre foi fluido

No seu novo livro “True Sex” (“O Verdadeiro Sexo”) a historiadora Emily Skidmore investiga diversos homens transexuais de um século atrás e como eles foram tratados pela sociedade

Casais queer começo do século 20

Em 1914, Ralph Kerwineo, homem trans de Milwaukee, teve um caso com outra mulher fora de seu casamento; sua esposa, então, denunciou-o para as autoridades, dizendo que seu marido não era um homem biológico. Kerwineo foi preso por conduta desordenada e libertado depois de algum tempo. O juiz do caso, contudo, o avisou que ele deveria se vestir como uma mulher enquanto estivesse em Milwaukee, se não quisesse ter problemas.

O caso de Ralph, nascido como Cora Anderson, despertou o interesse de toda a nação; em seu novo livro, True Sex: Trans men at the turn of the twentieth century (O Verdadeiro Sexo: homens trans na virada do século), a historiadora e professora Emily Skidmore identifica uma gama surpreendente de respostas que os norte-americanos tiveram diante do escândalo.

Como a autora descreve no podcast de história Backstory, a resposta nacional foi a de que “Ralph Kerwineo era um desviante, alguém detentor de uma patologia, e um ser terrível que se aproveitou de outra mulher”. Ele ainda teria sido mencionado como “menina-homem” em alguns artigos. “Mas o que é fascinante”, continua a professora, “é que os jornais da época estavam empenhados em entrevistar ex-chefes de Kerwineo, para saber como era a sua vida como um homem. Se sua trajetória como homem fosse respeitável, então sua incursão na masculinidade era entendida como algo até que aceitável”.

Ouvir os discursos puritanos dos políticos hoje em dia leva a pensar que as categorias de gênero já foram perfeitamente estáveis e designadas, e que pessoas transexuais são um fruto da modernidade. Mas a história mostra que assim como uma categoria social, o gênero sempre foi construído, sujeito a debate e fluido. Em True Sex, Emily Skidmore explora as diversas histórias de homens norte-americanos transgêneros, quando essa definição ainda nem existia. Pesquisando nos jornais e na literatura catalogada na área de “sexologia”, assim como em registros judiciais, a autora conta a história do gênero norte-americano, mais complexo do que muitos pensam, já que nunca foi uma realidade fixa.

Devido à falta de reflexão sobre a experiência de transição entre os sexos, diversos termos eram usados para descrever homens trans. Desde “maridos mulheres”, no final do século dezenove, até termos mais científicos (atribuídos a patologias), como “mulher sexual invertida”. Eventualmente, esses indivíduos eram classificados simplesmente como lésbicas. Claramente, o lesbianismo foi a bandeira pela qual diversos direitos civis foram inicialmente conquistados. Contudo, com cada rótulo surgiram encerramentos de possibilidades. Homens trans foram impedidos de se passarem como homens em diversos âmbitos da vida masculina corriqueira, como a de um homem cis.

O livro de Emily Skidmore explora a vida de homens trans que tiveram mais sucesso em conseguir viver como homens. Contudo, suas escolhas eram muitas vezes vistas como ocultas, e em algum momento eles seriam “desmascarados”. Ela descreve a emoção voyeurista com que a imprensa popular frequentemente relatava quando o “verdadeiro sexo” de um indivíduo era revelado. A autora revela um momento de grande ansiedade em torno da verdade biológica, do gênero e da sexualidade, assim como com relação as raças e as fronteiras nacionais.

True Sex desafia os estudos tradicionais de história sobre gênero ao focar na virada do século. As análises sobre fluidez de gênero são geralmente atribuídas a décadas especificas, como os anos 1920, quando questionar as categorias sociais tornou-se mais comum do que antes. A autora também oferece uma correção geográfica. Apesar de que a concentração do discurso queer tenha sido centrado na maioria das vezes nos espaços urbanos onde as pessoas eram consideradas mais livres para explorar suas identidades, Emily mostra como familias queers também floresciam com frequencia nos espaços rurais. Ela aponta momentos na história norte-americana (como a expansão para o oeste) em que as pessoas tinham mais mobilidade para efetuar casamentos, “regulado tanto por religiosos e agentes legais quanto por meior informais de controle comunitário”.

Em outras palavras, para diversos casais bastava chegar em uma nova cidade e se apresentar para os vizinhos como marido e mulher; ninguém estava preocupado em pedir um certificado formal de casamento. Dessa forma, os casais passiveis de serem interpretados como “normais” podiam desfrutar dos benefícios consideráveis da união heterossexual. Ainda assim, muitos decidiram se casar, ainda que as reformas do começo do século vinte exigissem que uma das pessoas do casal expusesse seu “verdadeiro sexo”.

Nas primeiras três décadas do século 20, enquanto os discursos eugenistas e a sexologia ganhavam terreno, dezenas de estados criaram estatutos para legislar a fertilidade e o casamento. Em alguns deles, essas leis concederam aos médicos o direito de esterilizar pessoas consideradas impróprias para a paternidade. Havia também algumas leis sobre o casamento projetadas para, nas palavras da professora, “indetificar maridos e mulheres ‘problemáticos’ antes que esses se reproduzissem”. Ms alguns homens trans, incluindo Kerwineo, conseguiram escapar do rádar e se casar normalmente.

Isso apoia o argumento da autora de que homens como Kerwineo não eram necessáriamente vistos como queer no sentido contemporâneo da palavra, isto é, "dissidentes e crítica à heteronormatividade". Em vez disso, eram frequentemente descritos pela imprensa como segregados da sociedade civilizada; contudo, muitos homens trans, ao passarem por homens cis, conseguiram seu lugar na socieade, ainda que de forma sutil. Antes da “verdadeira” identidade de Kerwineo tornar-se pública, ele levava a classica vida de homem norte-americano: hetero, casado, empregado e respeitado.

Através de histórias humanas, True Sex ressalta a loucura ao acreditar que existe uma verdade singular quando se trata de gênero, sexualidade ou raça. Além disso, a obra dá visibilidade a histórias surpreendentes de homens trans vividos há um século atrás. George Chauncey escreveu em seu estudo conhecido de 1994, o Gay New York: Gender, Urban Culture, and the making of the Gay Male World, que “a relação entre a cultura gay e a cultura dominante não é nem estática e nem passiva: elas não apenas co-existiam, mas se criam e recriam constantemente em relação a outra em um processo dinâmico, interativo e contestante”.

As vidas de homens trans como a de Ralph Kerwineo demonstram que os significados ligados aos corpos estão em constante mudança e são influênciados pelo tempo e lugar em que se encontram.

Indo contra as narrativas de opressão absoluta, Emily Skidmore mostra com habilidade que, na ausência de categorias de identidade circunscritas, alguns trans homens conseguiram reivindicar os benefícios do privilégio masculino e, assim, acessaram, por mais fugaz que seja, um status inestimável: a liberdade.