Privatização do setor eletrico vai afetar serviços, diz sindicalista

O setor elétrico vem sendo apontado como um dos mais visados pelo governo de Michel Temer e por empresas multinacionais quando o assunto é privatização. Alvo de três consultas públicas abertas recentemente pelo Ministério das Minas e Energia, o segmento caminha a passos largos rumo a um modelo que pode comprometer o acesso da população aos serviços.

Fabíola Latino Antezana, diretora do Sindicato dos Urbanitários no Distrito Federal (STIU-DF). - Henrique Teixeira/STIU-DF

A avaliação é de Fabíola Latino Antezana, diretora do Sindicato dos Urbanitários no Distrito Federal (STIU-DF). “A sociedade vai perceber a privatização principalmente na qualidade do serviço prestado”, alerta.

Engenheira florestal de formação e servidora da Eletronorte, Antezana salienta, entre outras coisas, a importância de garantir o fortalecimento das estatais do ramo, destacando que a venda das empresas compromete não só o atendimento e o bolso do consumidor, mas também a preservação do meio ambiente, o desenvolvimento local e a própria soberania nacional.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a sindicalista alertou a população para as armadilhas do discurso oficial sobre a privatização. “Precisamos fazer uma disputa no sentido de mostrar todas as incoerências que esse modelo está trazendo”, diz.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

Brasil de Fato: A gente vive um momento de muitos riscos evidentes para o setor público em geral e, notadamente, o setor elétrico está na mira do atual governo. Quem são personagens do cenário político-econômico que têm interesse nesse segmento e por que o setor é tão visado por eles?

Fabíola Latino Antezana: Tudo isso se iniciou nos processos de privatização na década de 1990 porque, quando o marco regulatório foi feito, no inicio de 2000, ele permitiu a entrada do capital privado no setor elétrico. Então, as multinacionais já têm uma inserção bem grande dentro do modelo setor elétrico brasileiro.

Todo o processo de expansão e geração só se dá mediante parcerias público-privadas, em que a empresa estatal entra com, no máximo, 49%, e a privada, com 51%. A estatal ganha o quê?

Uma flexibilização na Lei 8.666, que trata das licitações, facilitaria os empreendimentos, e, com isso, a [iniciativa] privada ganha tudo, porque quem ainda detém todo o conhecimento sobre engenharia e biomas, por exemplo, de onde o setor elétrico atua, são as empresas estatais. Então, nós temos o conhecimento, o know-how, conhecemos o meio ambiente, os movimentos sociais com os quais atuamos, e a empresa privada se apropria disso tudo.

De 2004 para cá, as privadas se apropriaram de todo o lucro que era possível nas partes em que elas entraram, que foram as áreas de distribuição e comercialização de energia elétrica. Elas não conseguiram entrar com tanta ênfase na geração de energia e na transmissão, que é o que estão atacando agora.

O que elas querem, na verdade, é terminar de abocanhar tudo. Terminar um processo que se iniciou lá na década de 1990.

Em que medida o interesse dessas forças econômicas compromete a dimensão social do setor elétrico? Porque, por exemplo, a Eletronorte atende nove estados da Amazônia legal, que é uma região com muita precariedade em termos de serviços públicos. Existem, entre outras coisas, programas de apoio às comunidades indígenas. Esse tipo de iniciativa fica comprometido quando se pensa na iminência de uma privatização?

Completamente, porque a perspectiva que está colocada é a de que políticas sociais que não são diretamente ligadas ao mercado de energia elétrica devem sair do escopo do setor elétrico. E é aí que entram os programas indígenas, os programas de desenvolvimento regional, etc. (…)

Sou engenheira florestal e conheci vários projetos de desenvolvimento no Norte e no Nordeste. Há cidades que se desenvolveram por conta dos recursos colocados pelas estatais e que nós sabemos que uma privada não vai colocar. Além disso, você tem o desenvolvimento de tarifas específicas, os royalties que vão para as cidades vão em detrimento desses empreendimentos que são realizados. Então, é toda uma gama de serviços que tem por trás do investimento estatal de geração e transmissão de energia elétrica.

(…) Há coisas das quais a sociedade não tem ideia… Mesmo com todos os erros que há nesse setor, sabemos que uma empresa privada não vai fazer nada do que o Estado faz. Pelo contrário, porque isso é custo da geração de energia. Se eles gastarem com isso, com movimento social e com a questão ambiental, esses custos serão repassados ao consumidor por meio da tarifa de energia.

Que outros aspectos ficam comprometidos quando a gente pensa na privatização das empresas que operam no setor elétrico? Como o cidadão pode sentir, por exemplo, o comprometimento da dimensão ambiental do trabalho realizado por essas empresas?

Tem um aspecto estratégico, que é a entrega de todo o nosso conhecimento, da nossa fauna e flora, das riquezas minerais nas mãos de empresas privadas, que são, em sua maioria, estrangeiras.

Um exemplo clássico é o caso do cupuaçu, que foi patenteado pelos japoneses, mas eles não têm cupuaçu lá. (…) Então, estaremos entregando nas mãos de chineses, estadunidenses, italianos, chineses, etc. Estima-se que o bioma amazônico, por exemplo, seja o mais rico pra exploração de remédios.

Tem várias ONGs que estão ali fazendo pesquisas e vão levar tudo que puderem levar. Mas acho que a sociedade vai perceber mais a privatização na qualidade do serviço prestado. O setor elétrico foi entregue, na década de 1990, na área de distribuição de energia elétrica, e nós temos dados de que as empresas privadas têm um serviço prestado à população pior do que as que ficaram estaduais ou que foram federalizadas posteriormente.

Tem casos de empresas que foram privatizadas e, depois de um tempo, as empresas [compradoras] devolveram ao governo. Elas não viam lucro e devolveram pro Estado. (…) Em alguns casos, eles não tinham conhecimento do solo, por exemplo. Esse tipo de coisa vai penalizar diretamente a sociedade brasileira, porque vão ocorrer, inclusive, atrasos em empreendimentos. (…) O que aconteceu em Mariana, por exemplo, que foi rompimento de barragens… Nós temos diversas barragens de pequenas centrais hidrelétricas que hoje estão condenadas, com risco de rompimento.

Então, são várias nuances que estão colocadas no processo do setor elétrico que a sociedade só vai perceber quando a privatização for feita.

O governo está fazendo agora uma consulta pública sobre o que ele chama de “reorganização do setor elétrico”. O que está por atrás disso?

É a expansão da lógica de mercado sobre o setor elétrico. Tem um capítulo específico sobre privatização, inclusive. São três documentos. A primeira parte é mais ideológica sobre o que é o modelo. Nela, eles colocam que não deve existir interferência estatal. (…) Outra coisa que eles colocam é que o mercado deve se auto-regular e que não seria necessário ter um planejamento energético porque a demanda de energia vai fazer com que o mercado se perceba e daí ofereça energia, e aí é que está a abertura para a privatização.

O terceiro ponto que eles colocam com muita clareza é a questão da modicidade tarifaria [tarifa acessível para todos os cidadãos] porque, a partir do momento em que não se tem interferência do Estado no setor elétrico, a modicidade não vai se dar. (…) Então, são estes três pilares fundamentais na primeira consulta: expansão do mercado livre, o mercado se autorregulando e o Estado sem interferir.

E tem uma segunda consulta que fala da parte técnica, em que eles abrem a questão da privatização escancaradamente.

E a terceira é a questão do plano decenal pra energia, que já foi montado partindo do pressuposto de que as duas primeiras são aceitas. (…) E eles estão querendo fazer a discussão sobre todas essas consultas em um mês, uma discussão que levou mais ou menos uma década.

E esse modelo proposto tem suas contradições. Ele fala da necessidade de investimento em energias renováveis, mas ao mesmo tempo coloca que depois de xis anos vai retirar os subsídios para esse tipo de energia. Ele diz que você tem que investir em novas tecnologias, mas não diz como isso vai acontecer. Porque até hoje quem investe melhor nisso é o Estado, e tudo isso está caindo por terra hoje. (…) E [nas consultas] muita coisa está em aberto, “a ser regulamentado posteriormente”. Então, é como assinar um cheque em branco.

Nós estamos num momento muito turbulento, com o governo vivendo uma grande crise e o Congresso se preparando pra voltar do recesso esta semana. Quais temas merecem maior atenção da sociedade nestes próximos meses em relação ao setor elétrico?

Já estamos com um planejamento estratégico colocado e vamos fazer intervenções junto ao Ministério das Minas e Energias, ao Congresso, porque tudo indica que isso vai passar via medida provisória. Então, precisamos fazer uma disputa no sentido de mostrar todas as incoerências que esse modelo está trazendo.

Eles falam, por exemplo, que a tarifa vai cair, mas não tem como cair se você está aumentando a energia para o mercado livre e para a exploração pelo capital. Então, essa é uma contradição a ser explorada. (…)

Outra questão é o desenvolvimento regional, que vamos levar bem forte pra sociedade, porque o que está colocado é uma disputa de projeto e não podemos negar que quem deu vitória pra um projeto popular, mais de esquerda, foi eleito pelo Norte e pelo Nordeste, que é onde eles estão atacando agora – não só no sistema elétrico, mas nos Correios, nos bancos e em outros setores.

Então, vamos levar isso com muita força porque, a partir do momento em que a Chesf deixar de ser o que é no Nordeste, a Eletronorte deixar de ser o que é para o Norte e a Eletrosul também deixar de ser o que ela é pro Sul, a sociedade como um todo vai perder. São os riscos de ter apagão, de a tarifa de energia subir e de se perder tarifas sociais que hoje são colocadas pra população de baixa renda.

Vamos fazer um embate bem pesado com o setor legislativo e debater com a sociedade.