Lázaro Ramos: Se Lima Barreto aqui estivesse gritaria Fora Temer

Na última quarta-feira à noite, o público aguardava em fila na porta da centenária igreja da Matriz, onde aconteceu a primeira mesa da atual edição da Festa Literária de Paraty, a Flip, enquanto um pequeno grupo do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (SEPE-RJ) protestava contra cortes de orçamento e atrasos de salários.

. - Foto: André de Oliveira
Uma das faixas empunhadas dizia: “O Triste Fim de Milhares de Limas Barretos”. A frase, uma referência ao título do livro mais famoso do autor homenageado desta Flip – ele próprio um funcionário público –, servia como um presságio de como literatura e manifestações políticas devem se encontrar ao longo de todo o evento.


A abertura da Flip – uma espécie de aula dramatizada em que a historiadora Lilia Schwarcz e o ator Lázaro Ramos se revezaram falando sobre a vida de Lima Barreto e lendo trechos de sua obra – foi encerrada com o público gritando, em uníssono, “Fora, Temer”. No momento, os repassavam o trecho final da mesa de inauguração  em um palco externo, fora da igreja, e aberto para espectadores sem ingresso. Recebido com os gritos, o ator estendeu seu microfone para o público e depois completou: “Se Lima Barreto aqui estivesse, também estaria aqui gritando ‘Fora, Temer”.

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A mesa da historiadora, que acaba de lançar uma biografia sobre o escritor homenageado, e do ator, teve também momentos descontraídos. Enquanto Lilia falava sobre a vida de Lima Barreto – seus percalços como escritor e funcionário público, sua aversão a estrangeirismos, sua intenção de construir uma literatura militante e o racismo que sofreu ainda em vida –, Ramos incorporava o próprio autor, declamando trechos de diários, crônicas, contos e romances. O jogo de cena entre os dois, ensaiado, foi dirigido pelo cineasta Felipe Hirsch.

A questão é que, por mais que a crise política não tenha sido tocada diretamente pela historiadora ou pelo ator, Lima Barreto é atual demais e traçar paralelos acaba sendo tarefa das mais fáceis. De forma ácida, ele fala do racismo brasileiro, mas também de outras fragilidades e defeitos da República: “A República no Brasil é o regime da corrupção. Todas as opiniões devem, por esta ou aquela paga, ser estabelecidas pelos poderosos do dia”, declamou Ramos, citando Lima em determinado momento.

Cenas como as da abertura devem se repetir ao longo do evento. Antes da começar, a atual edição já era reconhecida pela diversidade de sua programação. Está na ponta da língua de público e imprensa que, pela primeira vez, um dos principais eventos de literatura do Brasil tem mais convidadas mulheres do que homens e que 30% dos autores são negros. Se a intenção por trás dos convites não era, de fato, política, como diz a curadora Josélia Aguiar, mas de refletir a diversidade real da sociedade e do meio artístico, é inegável, também, que essa diversidade traz muitos dos temas que estão na raiz de lutas por mais direitos (e contra a redução dos já conquistados).

Depois de finalizada a abertura, houve também o show de inauguração conduzido pelo pianista André Mehmari. Ele tocou a Suíte Policarpo, que compôs especialmente para a Flip, além de composições de Ernesto Nazareth, músico contemporâneo de Lima Barreto. Havia paralelos entre os dois artistas: ambos preocupados com a criação de uma identidade nacional, que não emulasse apenas estrangeirismos, ambos tiveram finais de vida tristes – o músico vítima da sífilis, o escritor do alcoolismo. A música de Nazareth, executada por Mehmari, ajuda a rememorar a época em que o Brasil, recém saído da escravidão, sem um projeto de inclusão social, foi tão criticado por Lima Barreto. “Que ele, então seja revisitado”, disse Lilia no encerramento da abertura da Flip. Para ela, o momento atual, de luta política e por direitos civis, com movimentos feministas e negros tão ativos, é bem propício para que a obra de Lima ganhe mais sentido. Agora, há, de novo, “espaço para uma literatura militante, como era a dele”.