Sonata da última cidade, um livro para reler São Paulo

Num navio, entre imigrantes, uma cartomante revela a Umberto Gaudio que ele é personagem de um livro, esse mesmo que estamos lendo. E o arbítrio sempre explícito do autor de Sonata da última cidade – o romance de São Paulo faz o personagem casar-se com a filha de um padeiro português com uma escrava alforriada, virar motorneiro dos recém-instalados bondes, ter como grande amigo um líder anarquista, travar relações com um barão do café…

Por Ethel Leon*

Greve geral de 1917 - Divulgação

À história dos Carlini, protagonista do livro de Renato Modernell, (Umberto muda de nome depois de jogar na cara do autor o erro na escolha de Gaudio para um napolitano) se entrelaça à história de São Paulo do fim do século 19 até meados dos anos 80.

Essa face de new journalism, a mescla de ficção com documental, não faz o livro abdicar de ser um romance, onde um de seus estatutos clássicos, a onisciência narrativa, é recusada como recurso da naturalidade, sempre tão perigosa no terreno da história e da arte.

O "Autor", personagem oculto, se disfarça de astrólogo de nome Martorell (qualquer semelhança com Modernell…) e chega a encarnar um jornalista que acompanhaa Coluna Prestes e contracena com Carmelo, o protagonista da segunda geração dos Carlini.

Além da Coluna Prestes, as duas guerras, o Estado Novo, o desenvolvimentismo dos anos 50, o golpe militar, todo nosso traçado político é vivido pelos personagens que nos exibem também a rede molecular da história: os hábitos das toalhinhas higiênicas ou do rádio e da televisão na vida familiar, o trânsito em São Paulo, as copas do mundo, o famoso ladrão Meneghetti, o queijo Catupiry, tudo se articula às peripécias dos homens comuns que são os Carlini.

Um livro para se reler São Paulo, à procura da resposta para a pergunta formulada ao longo da narrativa e que, paulistas ou não, nos fazemos, aflitos ou canhestros: para onde vai esse livro da nossa história e quem será seu autor?