O tabu do nu e de sermos todos bichos humanos iguais

O teatro como re-existência política na pulsão quente da arte. Interpretação de mundo. A peça Macumba Antropófaga do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona é uma ocupação andante do bairro do Bixiga que compreende a antropofagia como um meio de captar o sentimento da terra, do corpo, alma e transformação.

Por Lorena Alves

Macumba Antropofágica - Divulgação

A cultura é uma forma legítima de resistência e de analisar a política. Em 1958 nascia no Centro Acadêmico da Faculdade de Direito do Largo São Francisco o Teatro Oficina, atualmente conhecido como Teat(r)o Oficina UzynaUzona, localizado na Rua Jaceguai, no Bixiga, em São Paulo. Nessas linhas falarei sobre a experiência e importância de frequentar esse espaço. Trata-se de peças de longa duração com aberturas para a experimentação e questionamento do funcionamento do mundo, da expansão de nossas individualidades com o profundo desejo da morte ao capitalismo. Uma das muitas maneiras de contemplar lutas, nos conectarmos com a naturalidade dos seres, e entender como a arte é revolucionária.

O Teatro Oficina foi perseguido na época da ditadura no Brasil, e atualmente não se vê livre das amarras do Capital. A antropofagia na peça é para entendermos a transformação permanente, quebrar tabus, des-cobrir o corpo e estarmos em diálogo com os rituais indígenas. Estar em conexão com nós mesmos.

Um dos fundadores e diretor do teatro, José Celso Martinez Corrêa, mais conhecido como Zé Celso, revolucionou em muitos aspectos o mundo da arte principalmente na investigação do palco-público, com objetivo de romper a passividade de quem assiste e subverter as convenções vigentes. Ele é considerado um dos principais teatrólogos do Brasil, tendo como eixo em suas peças e concepções Oswald de Andrade (1890-1954), escritor e dramaturgo brasileiro, uma das personalidades mais polêmicas do Modernismo, que, juntamente à Tarsila do Amaral, fundou o “Movimento Antropófago”.

“Montamos no Teatro Oficina ‘O Rei da Vela’. O espaço cênico até 1967 era o de uma caixa de sapato fechada. Mas essa peça de Oswald de Andrade pedia que nós abríssemos uma entrada de luz no teatro. Assim, transformamos o Oficina num espaço de ‘domingo no parque’, ensolarado, num espaço de alegria. Esse espaço hoje é o terreiro do Modernismo, do Tropicalismo. Temos aqui um teto móvel que abre para céu, é um teatro que tem seu próprio céu. O Teatro Oficina é um espaço bárbaro e tecnizado: Tropicalista.”, explica Zé Celso para o site Tropicália.

A peça em cartaz Macumba Antropófaga foi encenada pela primeira vez em 2008 e teve sua criação a partir do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade (1890-1954), que já destacava a necessidade de criar uma arte baseada nas características do povo brasileiro. O espetáculo do Teatro Oficina contém personagens da vida política do Brasil e do mundo, atualizado com os recentes acontecimentos internacionais, como o golpista Michel Temer falando que permanecerá no governo, o Donald Trump em cena atacando o repórter da CNN, a premier Theresa May, além de o espetáculo levantar temas como a CPI da FUNAI, deputados de extrema direita, movimentos xenófobos contracenam com entidades invocadas por Oswald de Andrade no manifesto em 1928: Padre Vieira, Moisés, a Mãe dos Gracos, Dom João VI, entre outras.

O diretor, assim como Oswald, sente a alegria como prova dos nove, e isso é perceptivo não só nas encenações dessa temporada. A relançada peça Macumba Antropófaga começa no cortejo do Bixiga, percorrendo as ruas das proximidades do Anhangabaú transferindo o público para o real com a ficção. Haja dança, alegria, e vontade. É uma profunda divagação, mistério gozoso, e ganho de conhecimento do mundo do Manifesto Antropófago, tudo isso andando entre os asfaltos da história brasileira. De 2017 de repente estamos em 1922, na casa do Oswald Andrade e Tarsila do Amaral, grandes ícones artísticos.

O nu como tabu, a maconha como estranheza, a interação com o externo como delírio. As referências como surpresas. Os gringos como representação de uma cultura que não é elitista como na Semana da Arte Moderna, mas não é acessível para juventude que não conhece um teatro, tão pouco uma peça atípica no imaginário do senso comum. São quase 6 horas de peça, parece muito… Mas só há um jeito de você não enxergar o tempo como um problema, a chamada imersão, mergulhar no que lhe é exposto, seja como participante ou visitante curioso. O tempo é invenção do capitalismo, ele diminui a noção que temos de aproveitar as horas e limita nossas atividades, pensamentos, sobretudo a criatividade.

Temer é um vampiro na peça, uma escolha coerente, aliás, ele é um usurpador de direitos. Suga a CLT, aposentadoria e direitos básicos conquistados com muito suor dos trabalhadores e estudantes desse país. A fala na peça é a seguinte: “quem está morto não governa”. Vivemos sob um governo morto. Morto de representatividade, morto de investimentos em saídas para crise oriunda de um orçamento que não foi dedicado ao povo como força de solução, mas um presidente ilegítimo que vê o povo como problema. Enquanto a população não for o foco e sim atender interesses do mercado, iremos viver no império do ócio.

Vivemos sob uma onda conservadora, em esfera mundial. Ok, sem presidente legítimo, ok com um prefeito que restringe o passe livre, acaba com a vida dos moradores de rua, não tem o mínimo de ética com a Cracolândia e não entende o que é fazer política. Marketing, baby. É disso que João Dólar precisa. E isso que os atores cantam: “Our Love is marketing, baby, and the life is marketing” – diz o prefeito da Capital do Capital.

Pouco se conhece sobre a origem brasileira, sobre os habitantes dessa terra que é alvo de ratos e baratas, de vampiros e falsos governantes. A cultura do externo, aquele imperialismo americano que estudamos como motivo de vanglórias culturais transformou a língua, as roupas e o consumo da arte com o modo de ser viver estadunidense. Os primeiros são os últimos na lista de atendimento às políticas públicas, os índios ficaram no segundo plano, se é que esse plano será escutado. Na visão de quem mantém esse sistema, os perigosos não são os responsáveis pela globalização, mas sim quem tornou o Brasil o país que deveríamos conhecer.

Viver é perigoso. A faca da intolerância tem cortado cabeças e a antropofagia é uma interpretação de mundo do movimento Tropicalista, do Teatro Oficina, do Zé Celso, mas, sobretudo, de qualquer pessoa que queira entender como os valores culturais internos foram suprimidos no processo de colonização.

O coro teatral antropófago Tupinambá caça Oswald, que depois transforma-se em Hans Staden, que se apaixona pela burú Pagu (Camila Mota). Deles nasce Macunaíma (Roderick Himeros) e passados 16 anos, Oswald está pronto para ser comido. Considerando a antropofagia cultural como expressão de transformação, da presença do “canibalismo” no sentido de deglutir outras culturas, devorar criticamente valores estrangeiros europeus que foram transplantados para o Brasil, na mistura com valores suprimidos pelo Processo de Colonização, o movimento modernista buscou criar algo genuinamente nacional, uma arte fidedignamente brasileira. O Teatro Oficina também, e com maestria. O palco-público é contemplado, entre tantas músicas, por essa em especial:

Entra na Roda
Cobra Grande
O Resto Esqueça
na Rua Come Cabeça
Jaceguay
Vai,Vai
Vai Vai!
Bixiga
Abriga
Cobra Grande
Ande Ande
Oficina, Rua comprida
tem Saída
Pro Ah Anhangá AnhangaBaú da Feliz Cidade!

A música não sai da cabeça de quem assiste à peça, nos faz refletir sobre a importância de ocuparmos a cidade artisticamente e levar as artes para as ruas, não deixá-la somente a um espaço restrito à parcela da população. Nesse sentido, é inegável a importância que a juventude tem politicamente nas ruas, e a necessidade do acesso dela ao teatro, tendo em vista que a arte e política podem caminhar juntas. Gira! A transformação permanente do Tabu em Totem. Entra na roda. Conecta. É um retorno ao pensamento selvagem. Destrua o capitalismo. O Tabu. Que seja nu. Somos todos bichos iguais. O Bixiga nos abriga nessa grande (re) descoberta. Tupi, or not tupi, that is the question. A antropofagia e a luta nos une.

Serviço:

Macumba Antropófaga
Sábados e domingos, às 16h | duração de 5 horas | de 24/06 a 24/09
Ingressos: R$60 inteira; R$30 meia;
Endereço: Rua Jaceguay, 520 – Bixiga – São Paulo, SP

*A peça possui audiodescrição para cegos