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Lima Barreto, um propagandista da Revolução Russa

Lima Barreto, escritor negro, pobre e “louco”, viveu poucos anos. Deixou a vida ainda jovem, aos 41, em novembro de 1922. Ano este que foi um marco no modernismo brasileiro: fundação do Partido Comunista do Brasil, realização da Semana da Arte Moderna e ocorrência do Levante tenentista dos 18 do Forte.

Por José Carlos Ruy

Lima Barreto - Divulgação

Crítico ferino e mordaz dos hábitos e formas de pensar da elite de seu tempo, defensor persistente de reformas profundas na sociedade, necessárias para melhorar a vida do povo, Lima Barreto viveu em uma época que, sob muitos aspectos, assemelha-se à nossa. De um lado a alienação de setores da elite, plasmada na imitação servil do estrangeiro, no deslumbramento daqueles que pensam que somente com a mal entendida modernização, isto é, adoção de hábitos, modos de vida e formas de pensar brancos e europeus, é que o Brasil poderá vencer o atraso e embarcar no bonde da história rumo ao progresso. De outro lado as entranhas reais do país, escondidas sob o tênue verniz modernizante: a permanência de estruturas sociais arcaicas e injustas que oprimem a enorme maioria do povo e nutrem as elites.

Lima Barreto não só enxergou estes males das classes dominantes, mas conviveu com eles no cotidiano, sofreu na carne as pesadas restrições que impunham aos que ficavam de fora. E lutou contra eles, contra todas as formas de opressão. Foi um crítico ferino da imprensa de seu tempo, e não poupou as críticas mais mordazes aos avozinhos dos campeões da mídia que, hoje, mais de cem anos após, praticam as mesmas baixarias que Lima Barreto condenou em sua época.

Era preciso lutar e derrotar essa elite restrita, retrógrada, racista e alienada que impedia a real modernização do país.

Lima sabia que “a sociedade repousa sobre a resignação dos humildes” (diz no romance Gonzaga de Sá). Daí sua militância no movimento anarquista, o apoio entusiástico à Revolução Russa de 1917 e ao maximalismo (nome que então se dava ao bolchevismo), e a atuação na imprensa popular.

Ele definia o maximalismo como “a aspiração de realizar o máximo de reformas possíveis dentro de cada sociedade, tendo em conta as suas condições particulares”, e apresentou um programa de quatro pontos para isso: revisão dos fundamentos da propriedade, subordinando seu uso ao bem estar coletivo; confisco dos bens de certas ordens religiosas; fim do direito de testar; adoção do divórcio para livrar a mulher da opressão do casamento.

Transcrevemos a seguir uma parte de seu artigo “No ajuste de contas…”, publicado na revista ABC, em 11 de maio de 1918:

Ora, os fundamentos da propriedade têm sido revistos modernamente por toda a espécie de pensadores e nenhum lhe dá esse caráter no indivíduo que a detém. Nenhum deles admite que ela assim seja nas mãos do indivíduo, a ponto de lesar a comunhão social, permitindo até que meia dúzia de sujeitos espertos e sem escrúpulos, em geral fervorosos católicos, monopolizem as terras de uma província inteira, títulos de dívida de um país, enquanto o Estado esmaga os que nada têm com os mais atrozes impostos. A propriedade é social e o indivíduo só pode e deve conservar, para ele, de terras e outros bens, tão-somente aquilo que precisar para manter a sua vida e de sua família, devendo todos trabalhar da forma que lhes for mais agradável e o menos possível, em benefício comum. Não é possível compreender que um tipo bronco, egoísta e mau, residente no Flamengo ou em São Clemente, num casarão monstruoso e que não sabe plantar um pé de couve, tenha a propriedade de quarenta ou sessenta fazendas nos estados próximos, muitas das quais ele nem conhece nem as visitou, enquanto, nos lugares em que estão tais latifúndios, há centenas de pessoas que não têm um palmo de terra para fincar quatro paus e erguer um rancho de sapê, cultivando nos fundos uma quadra de aipim e batata-doce. As fazendas, naturalmente, estarão abandonadas; por muito favor, ele ou seus caixeiros permitirão que os desgraçados locais lá se aboletem, mas estes pobres roceiros que nelas vegetam, não se animam a todos os nossos males, provocados pelo critério supersticioso que têm os nossos financistas sobre a propriedade privada. Poderia encher isto aqui de algarismos, obtidos nos relatórios pantafaçudos ou nas tabelas do orçamento, para provar o que digo; mas deixo essa difícil exibição sabichona para o Senhor Oto Prazeres, a fim de que ele possa fazer mais um livro e ir ainda uma vez levá-lo em pessoa ao Senhor Venceslau Brás. O caso das apólices é muito semelhante ao da escravatura na geração anterior à nossa. É um ônus que, em geral, herdamos das gerações passadas. Não garanto; mas, parece-me que ainda pagamos juros de apólices emitidas em 1867; e mesmo que isto não seja inteiramente verdade, deve ser aproximadamente, porquanto, de onde em onde, o governo, por isso ou aquilo, as substitui por outras, continuando, as novas, a serem virtualmente as velhas que aquelas substituíram. Mirabeau, respondendo às objeções feitas a reformas radicais que rompiam totalmente com o passado, teve na Assembleia Constituinte de 89, uma comparação eloquentíssima. Se todos os nossos antepassados, dizia ele, ocupassem com os seus túmulos a superfície total da Terra, nós, os atuais habitantes, teríamos todo o direito de desenterrar os seus ossos, para cultivar os campos, criar gado, tirar da terra, enfim, a nossa subsistência. Cito de memória; mas, julgo não ter deturpado o pensamento do grande conde de Mirabeau, o qual vem esclarecer o meu, quando não quero aceitar uma carga injusta dos nossos pais e lembro que essa obrigação herdada por nós de pagar prêmios de apólices de empréstimos de que as gerações passadas abusaram, deve cessar inteiramente, pois é tal verba orçamentária que nos esmaga de impostos e faz a nossa atual vida dificílima, mais ainda do que os estancos de Limas Pereiras, Bezerras e caterva. No próprio ponto de vista dos usurários e truculentos capitalistas, a apólice é um mal, é um capital imobilizado que não concorre para o desenvolvimento do país; pois quem tem poucas, guarda-as, para receber juros como achego; e quem tem muitas, guarda-as também, para não fazer nada e viver do rendimento. (…) O que se diz com relação à propriedade imóvel, pode-se dizer para a móvel. Creio que é assim que os financistas denominam as apólices, moedas, títulos, etc. O povo, em geral, não conhece esta engrenagem de finanças e ladroeiras correlativas de bancos, companhias, hipotecas, cauções, etc.; e quando, como atualmente, se sente esmagado pelo preço dos gêneros de primeira necessidade, atribui todo o mal ao taverneiro da esquina. Ele, o povo, não se pode capacitar de que a atual alta estrondosa do açúcar é obra pura e simples do Zé Bezerra e desse Pereira Lima que parece ter sido discípulo dos jesuítas, com a agravante de que o primeiro foi e o segundo é ainda ministro de Estado, cargo cuja natureza exige de quem o exerce o dever de velar, na sua esfera de ação, pelo bem público e para a felicidade da comunhão. Não estará tal coisa nas leis ou nos regulamentos; mas, evidentemente, se contém na essência de tal função administrativa. Bastiat, nas suas Mélanges d’Économie Politique, tem um interessante capítulo, intitulado – “O que se vê e o que não se vê”. Pouco ou nada se relaciona com o nosso assunto; mas citei-o, porque foi a sua leitura que me fez considerar e analisar melhor certos fatos e não ficar como o grosso do povo preso “ao que se vê”, sem procurar a verdadeira explicação no “que não se vê”. (…) Um governo enérgico e oriundo do povo que surgir tem o dever de confiscar esses bens, de retalhar as suas imensas fazendas, de aproveitar os seus grandes edifícios para estabelecimentos públicos e vender, assim como as terras divididas, os prédios de aluguel que essas ordens possuem, em hasta pública. A confiscação desses bens obriga, para ser a medida completa, o governo a suprimir inteiramente todos os colégios de religiosos de ambos os sexos, sobretudo os destinados a moças ricas, por intermédio dos quais o clero acaba dominando os seus futuros maridos ou amantes; e, sabendo-se que estes são, em geral, pessoas poderosas e em altos cargos, a gente de sotaina pretende, desse modo, influir decisivamente nos atos dos poderes políticos do país e obter a nossa completa regressão aos áureos tempos das fogueiras e do beatício hipócrita. Há mais. Uma das mais urgentes medidas do nosso tempo é fazer cessar essa fome de enriquecer característica da burguesia que, além de todas as infâmias que, para tal, emprega, corrompe, pelo exemplo, a totalidade da nação. Para amontoar milhões, a burguesia não vê óbices morais, sentimentais nem mesmo legais. Toca para adiante, passa por cima de cadáveres, tropeça em moribundos, derruba aleijados, engana mentecaptos; e desculpa-se de todas essas baixezas, com a segurança da vida futura dos filhos. Não encontraria mais motivo para proceder dessa maneira, mais infame do que o dos antigos salteadores dos grandes caminhos, se riscássemos do Código Civil o direito de testar, e as fortunas, por morte dos seus detentores, voltassem para o Estado; e nisto, imitaríamos os seus maiores, os burgueses da Revolução Francesa, que golpearam profundamente a nobreza, estabelecendo a igualdade de herança entre os filhos. O feudo, o castelo desapareceram, pois a fortuna deixou de passar intacta ou quase intacta, do marquês para o seu filho mais velho. Todas estas medidas têm caráter financeiro, sem deixar de ter social; mas, a que me parece, mais urgente, é uma reforma radical do casamento, medida puramente social. Eu sou por todas as formas de casamento; não me repugna admitir a poligamia ou a poliandria; mas transigiria se fosse governo. Continuaria a monogamia a ser a forma legal do matrimônio, mas suprimiria toda essa palhaçada de pretoria ou juizado de paz. O Estado só interviria para processar e condenar o bígamo. (…). Apelo para todos aqueles que não têm a superstição da lei, dos códigos, dos praxistas, dos acórdãos, dos arestos, do Pegas, do Lobão, das Ordenações e outros alfarrábios caducos; e quanto aos doutores do Direito que estão envenenados, intoxicados até à medula, com tudo o que decorre do sinistro e cruel direito romano, codificado, em grande parte, por um tirano das margens do Propôntida e pela prostituta sua mulher, como diz Condorcet, nas suas Réflexions sur l’Esclavage des Nègres; quanto a tais chacais e hienas a serviço dos burgueses, eu tomo a liberdade de dizer-lhes que, tarde ou cedo, sem eles ou com eles, há de se fazer uma reforma social contra “o Direito” de que são sacerdotes, pois o seu deus já está morto no coração da massa humana e só falta enterrá-lo, com o seu cortejo de apostilas e sebentas, de consolidações e manuais, não levando tal enterro senão as grinaldas dos arqueólogos, antiquários, geólogos e paleontólogos. Requiescat in pace! Muitas outras medidas radicais me ocorrem, como sejam: uma revisão draconiana nas pensões graciosas, uma reforma cataclismática no ensino público, suprimindo o “doutor” ou tirando deste a feição de brâmane do código de Manu, cheio de privilégios e isenções; a confiscação de certas fortunas, etc., etc. Iremos, porém, devagar e por partes; e, logo acabada esta guerra que é o maior crime da humanidade, quando os filhos e os outros parentes dos pobres-diabos que lá estão morrendo às centenas de milhares, ou se estropiando, tiverem de ajustar contas com esta burguesia cruel, sem caridade, piedade e cavalheirismo, que enriqueceu e está se enriquecendo de apodrecer, com esse horroroso crime, nós, os brasileiros, devemos iniciar a nossa Revolução Social, com essas quatro medidas que expus. Será a primeira parte; as outras, depois. Terminando este artigo que já vai ficando longo, confesso que foi a revolução russa que me inspirou tudo isso. Se Kant, conforme a legenda, no mesmo dia em que a Bastilha, em Paris, foi tomada; se Kant, nesse dia, com estuporado assombro de toda a cidade de Koenigsberg, mudou o itinerário da excursão que, há muitos anos, fazia todas as manhãs, sempre e religiosamente pelo mesmo caminho – a comoção social maximalista tê-lo-ia hoje provocado a fazer o mesmo desvio imprevisto e surpreendente; e também a Goethe dizer, como quando, em Valmy, viu os soldados da Revolução, malajambrados e armados, de tamancos muitos, descalços alguns, destroçarem os brilhantes regimentos prussianos – dizer, diante disto, como disse: “A face do mundo mudou.”. Ave Rússia!