A voz crítica de Lima Barreto ainda ecoa na nossa República

Em novembro passado, a FLIP (Festa Literária de Paraty) anunciou o escritor carioca Lima Barreto como o homenageado da edição de 2017 do evento. A notícia chega quatro anos depois que a jornalista baiana Joselia Aguiar, atual curadora da FLIP, e a tradutora Denise Bottmann, iniciaram uma campanha pela escolha do autor de O triste fim de Policarpo Quaresma.

Lima Barreto

Para Felipe Botelho Correa, pesquisador e professor da King’s College de Londres, “a demora em homenagear Lima Barreto simboliza e sintetiza uma série de pesquisas que foram feitas nesse começo de século 21 e um saudável desejo de discutir a obra e o legado desse autor”.

Correa identificou 164 textos inéditos de Barreto publicados sob pseudônimos nas revistas ilustradas Fon-Fon e Careta. Os escritos estão compilados no livro Sátiras e outras subversões (Penguin & Cia das Letras), publicado em julho deste ano. Negro e de origem pobre, Lima Barreto produzia crônicas de costumes do Rio de Janeiro e em suas obras tratava sobre o preconceito racial e as injustiças sociais do Brasil. Uma literatura “subversiva e militante”, segundo o pesquisador.

“A voz crítica de Lima Barreto ainda ecoa na nossa República, que em meio a tantas turbulências claramente não deixou de ser uma Bruzundanga”, diz. Nesta entrevista, Correa discorre sobre a homenagem ao autor no principal evento literário do país e fala sobre as características de sua literatura “militante”. “Ser um escritor abertamente negro era uma perspectiva pouco comum no meio intelectual da época, quando muitos tentavam se embranquecer.”

Em 2013 houve um movimento pela escolha de Lima Barreto como homenageado do evento, mas só em 2017 essa homenagem vai, de fato, se concretizar. Como interpreta essa demora de quatro anos?

A homenagem vem em boa hora. Nos últimos quinze anos um grande número de trabalhos reanimou a obra de Lima Barreto. Textos inéditos foram revelados em edições recentes: alguns nos dois volumes com as crônicas que foram editados por Beatriz Resende e Rachel Valença; outros na edição com os contos que foram compilados pela Lilia Moritz Schwarcz, que também escreveu uma biografia. Além disso, aumentou o número de teses de doutorado sobre Barreto, apontando para novas perspectivas de leitura do autor carioca. O livro Sátiras e outras subversões é, de certa forma, um elemento a mais nessa renovação da obra de Lima Barreto, levando ao público 164 textos que permaneciam inéditos até então, a maioria camuflados por pseudônimos. Nesse sentido, a demora em homenagear Lima Barreto simboliza e sintetiza uma série de pesquisas que foram feitas nesse começo de século 21 e um saudável desejo de discutir a obra e o legado desse autor.

A homenagem na FLIP pode trazer novo fôlego à sua obra?

A FLIP tem sido nos últimos anos um momento de redescoberta de autores fundamentais, atualizando debates e impulsionando acesso e visibilidade à obra dos homenageados. A novidade desse ano é que finalmente teremos uma homenagem que tem respaldo de uma campanha popular que vem sendo sugerida informalmente por muitos anos e que representa uma perspectiva ímpar no nosso panteão literário. Curiosamente, Lima Barreto continua representando aquilo que Jorge Amado sugeriu: um escritor que representa uma certa voz popular. A voz crítica de Lima Barreto ainda ecoa na nossa República, que em meio a tantas turbulências claramente não deixou de ser uma Bruzundanga. Creio que o desafio da curadoria de Joselia Aguiar será traduzir para o nosso momento atual as questões e as subversões que Lima Barreto propunha há cem anos.

Por que devemos voltar à obra e à biografia de Lima Barreto neste momento?

Lima Barreto já faz parte de nossa historiografia e devemos lutar por tê-lo presente em nossas bibliografias, não importando o momento político que estamos atravessando. Feita essa ressalva, eu não poderia deixar de mencionar um aspecto da obra e da perspectiva de Lima Barreto que me parecem importantes neste momento não só no Brasil, mas também em vários outros países, que é a questão do nacionalismo. Em 1920, Lima Barreto escreve um artigo que poderia perfeitamente ser publicado hoje em dia, alertando para os males da utilização desenfreada do nacionalismo político. Naquele momento, essa questão tinha como pano de fundo o fim da Primeira Guerra Mundial e, no Brasil, a questão da intensa imigração europeia e do movimento que veio a fundar o Partido Comunista em 1922. Lido hoje em dia, o artigo “O nacionalismo”, publicado no jornal Voz do Povo em 1920 nos dá um sopro de lucidez e clareza.

Você já afirmou que o projeto literário que dá direção à produção de Lima Barreto é seu anseio por uma “literatura militante”. Essa militância pode ter contribuído para a sua marginalização, digamos assim, na história da literatura brasileira?

De fato, Lima Barreto teve dificuldades em sua trajetória literária, como muitos outros escritores, e há exemplos de instituições nas quais ele não era bem-vindo, como a Academia Brasileira de Letras e o jornal Correio da Manhã, mas estas são questões menos relevantes, ao meu ver. Essa ideia de uma suposta marginalização é difícil de sustentar se olharmos pelo lado do alcance de sua literatura não só em sua época como hoje em dia. Lima Barreto foi um escritor de imprensa, mais especificamente um escritor de revistas, e seu projeto literário e militante passava necessariamente por esse meio. Ele era um profundo conhecedor dos vários tipos de revistas da época (clássica, ilustrada, pequena, de humor, de variedades etc.) e ao longo de sua carreira como escritor sempre esteve ligado a várias publicações e seus respectivos grupos de intelectuais que se reuniam nos cafés da cidade. As pequenas revistas como a Floreal lhe davam a liberdade de escrever seus “sonhos e maluquices” e desafiar a “escala de valores intelectuais”, como ele mesmo dizia.

Por outro lado, as revistas de grande circulação, como as revistas ilustradas, lhe davam não só uma maneira de melhorar sua renda, como também um amplo público que ia muito além da capital, com cerca de 70% de suas numerosas tiragens sendo enviadas para outros estados. Ser lido pelo grande público era um pilar importante dessa literatura militante, e as revistas, muito mais que os livros, eram os meios que proporcionavam esse contato com os leitores. Arrisco a dizer que foi muito mais através das revistas do que por meio de livros que Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge Amado e muitos outros escritores da época conheceram a verve de Lima Barreto. Quando Lima Barreto morre em 1922, essa presença nos periódicos acaba e o que fica são seus poucos livros editados e a imagem de um escritor sagaz e popular, amplamente lido nas várias camadas da sociedade brasileira. Entre as décadas de 1930 e 1950, vemos um escritor que foi esquecido pelo mercado editorial.

Essa escassez de edições só foi sanada na década de 1950 com a iniciativa de Francisco de Assis Barbosa, primeiro com a biografia e depois com a luxuosa edição de 17 volumes em 1956. É só nesse momento que passamos a ter acesso ao Lima Barreto que conhecemos hoje. Mas como escritor de imprensa ou de livros, é difícil sustentar a tese de que Lima Barreto foi um autor marginalizado. Por outro lado, acho perfeitamente cabível entendermos Lima Barreto como escritor marginal no sentido daquele que vai contra a corrente, que produz uma literatura crítica e mordaz sobre o seu tempo, com temáticas até então pouco exploradas. A isso, podemos adicionar também as circunstâncias de sua biografia e os desafios que um escritor negro enfrentava naquele Brasil do começo do século 20, ainda muito dominado pelas ideias do Darwinismo social que surgiram no final do século 19 na Europa e nos EUA. Nesse sentido, ser um escritor abertamente negro era uma perspectiva pouco comum no meio intelectual da época, quando muitos tentavam se embranquecer.

Antonio Candido, por exemplo, observa que, se por um lado, a “militância” de Lima Barreto “favoreceu nele a expressão escrita da personalidade”, por outro “pode ter contribuído para atrapalhar a realização plena do ficcionista”. Você vê um embate entre esses dois fatores ou considera esta uma ideia já superada?

O fato de boa parte da obra de Lima Barreto ser baseada em referências autobiográficas já foi discutido por vários críticos. Quem primeiro colocou isso em pauta foi Sérgio Buarque de Holanda em 1949 no texto “Em torno de Lima Barreto”, que é uma resposta à declaração de Caio Prado Junior de que, sob muitos aspectos, Lima Barreto era o maior romancista brasileiro, numa comparação indireta com Machado de Assis. Sérgio Buarque, no entanto, responde que Lima Barreto não poderia ser comparado a Machado de Assis porque em grande parte a obra do carioca era uma confissão mal escondida que atrapalhava o acabamento e as qualidades da “literatura de fantasia”. Lima Barreto dizia que, ao contrário de Machado, ele escrevia sem medo da palmatória dos gramáticos e com muito temor de não dizer tudo o que queria e sentia, sem calcular se se rebaixava ou se se exaltava demais. Obviamente, essa questão da exposição da perspectiva pessoal salientada por Lima Barreto tem uma relação direta com o fato de os dois terem sido mulatos numa sociedade marcada indelevelmente pela escravidão. Utilizar essa categoria para ler a obra de Lima Barreto me parece um equívoco, e o próprio Lima já alertava para isso.

No texto “Os enterros de Inhaúma”, um dos que foram revelados em Sátiras e outras subversões, ele esclarece um pouco essa questão. Ele pede desculpas aos leitores por suas constantes confissões e afirma que isso era inevitável, pois tudo que escrevia eram páginas das suas memórias, numa indicação clara de que sua perspectiva era uma espécie de autoficção, misturando autobiografia com invenções. Nesse sentido, não vejo os textos de Lima Barreto como obras de um ficcionista com ambições de uma realização plena como sugeriu Antonio Candido. Nem sei ao certo o que seria essa realização plena. Havia uma urgência naquilo que Lima Barreto produzia.