"A nostalgia é um direito do cidadão", dizia a professora Ecléa Bosi

Abaixo, o resultado de uma longa entrevista com a professora da Faculdade de Psicologia da USP, que faleceu hoje, em São Paulo

Por Haroldo Ceravolo Sereza

Professora Eclea Bosi

Algumas histórias aparecem, com formas diferentes, nos dois mais recentes livros da professora de psicologia social da Universidade de São Paulo Ecléa Bosi — O Tempo Vivo da Memória (Ateliê, 220 págs.) e Velhos Amigos (Companhia das Letras, 112 págs.), em grande parte desdobramentos de seu clássico estudo Memória e Sociedade — Lembranças de Velhos.

É o caso, por exemplo, da história de Amadeu, um menino que, seguindo o conselho de Gepetto a Pinóquio — “Não jogue nada fora. Isso um dia pode servir para alguma coisa!” —, guardou uma chave partida que encontrou num ralo e, usando-a como chave de fenda, conseguiu abrir uma janela e escapar de um trem que o conduzia para Auschwitz, durante a 2ª Guerra Mundial.

Ecléa, depois de urna longa viagem — e de uma profunda irritação com a liderança petista que ameaçava os deputados do PT que se abstiveram ou votaram contra a emenda da reforma da Previdência —, numa entrevista, voltou a contá-la. Mostra clara de que ela se presta à reflexão, seja numa conversa, num texto acadêmico ou, ainda, numa história para crianças. Por que estudar e, portanto, valorizar a memória?

Ecléa responde, pessoalmente e também em O Tempo Vivo, com um exemplo, retirado de uma entrevista com dona Jovina Pessoa, militante que acompanhou das greves anarquistas dos primeiros anos do século a luta pela anistia nos anos 1970. Jovina contou a Ecléa: “Quando estudante, lia o grande geógrafo Reclus, que só comia pão porque era o que a humanidade podia comer.” “Fui pesquisar quem era Reclus, e encontrei pouca coisa [num dicionário de ciências]”, narra Ecléa. Descobriu, por exemplo, que Elisé Reclus era autor de uma Geografia Universal, mas quase nada além disso.

“A história de Joviria é muito mais tocante: ela a ouviu de um professor de geografia e foi tocada por ela; eu a ouvi e fui tocada por ela; e eu a estou contando a vocês, e ela certamente diz muito mais sobre Reclus do que o verbete que consultei.” (Num determinado ponto do texto “A Substância Social da Memória”, que abre seu livro de ensaios, Ecléa escreve: “O aluno escuta a aula e anota no caderno aquilo que da matéria lhe parece proveitoso. No entanto, em certos momentos, ele esquece de anotar para não perder as palavras do professor que narram algo que desperta seu interesse. Suspende a anotação e o espírito se perde em lembranças, ideias, relações com episódios vividos. Estes salutares momentos de distração vencem o utilitarismo e alargam o conhecimento.”)

A memória é, para Ecléa, um instrumento de resistência — um tema caro também a seu marido, o crítico literário Alfredo Bosi, autor, entre outros, de Literatura e Resistência. Para ela, “a nostalgia é um direito do cidadão”. Ser nostálgico, explica, é também uma forma de demonstrar descontentamento, por exemplo, com o ritmo de nosso tempo. “O tempo não flui uniformemente”, diz, recorrendo a anotações — na mesa, ao seu lado, estavam os livros que publicou e que ela consultou antes da entrevista. “Existe a noite serena da criança, a noite profunda e breve do trabalhador, a noite infinita do doente, a noite pontilhada do perseguido.” Mas esses diferentes ritmos temporais foram, de certa forma, “subjugados pela sociedade industrial, que dobrou o tempo a seu ritmo, ‘racionalizando’ as horas de vida”, conforme escreve no ensaio “A Pesquisa em Memória Social”: “É o tempo da mercadoria na consciência humana, esmagando o tempo da amizade, o familiar, o religioso… A memória os reconquista na medida em que é um trabalho sobre o tempo, abarcando também esses tempos marginais e perdidos na vertigem mercantil.”

Além da pesquisa sobre a memória, Ecléa é autora de um estudo sobre as leituras das operárias, que resultou no livro Cultura de Massa e Cultura Popular (Vozes). As operárias, mostrou Ecléa, investiam até oito dias e três horas de trabalho num mês para comprar um livro.

Essa questão Ecléa retoma em O Tempo Vivo, no ensaio “Apontamentos sobre a cultura das classes pobres: “No meio operário, são as revistas que anunciam cursos e coleções, os livreiros-volantes que rondam com suas peruas Kombi as fábricas na hora de saída dos trabalhadores. É o momento de impingir os refugos das editoras, encadernados e com títulos dourados para corresponder à expectativa do pobre que vê nos livros algo de sagrado. Esses refugos irão para o lugar de honra da sala e as coleções muitas vezes são guardadas zelosamente pa-ra os filhos.”

Segundo Ecléa, estudos do gênero não são feitos regularmente, mas ela acredita que muito deve ter mudado nos mais de 30 anos que se passaram desde que realizou essa pesquisa “Desconfio que os operários, hoje, têm menos tempo para a leitura”, devido ao aumento da intensidade do trabalho e dos tempos perdidos no decorrer do dia (com filas, por exemplo). “Nos tempos de não trabalho — evitemos sempre o termo lazer — o operário tende a buscar atividades menos exigentes que a leitura para poder se recuperar.”