O ataque aos direitos do trabalhador e sua relação com a crise no Rio

Ao invés de buscar uma saída a partir da valorização da classe trabalhadora, aprofunda-se a retórica da austeridade para exigir mais sacrifícios do povo sem nenhum compromisso garantido no acordo de pleno funcionamento dos serviços públicos.

Por Bruno Leonardo Barth Sobral*

protestos de servidores no rio
 “Governo nenhum que destrói direitos diz que vai destruir direitos. Se o governo dissesse 'eu vou devastar', 'eu vou fazer uma verdadeira devastação social' ele teria o repúdio. Então, a grande alquimia, a falácia que é profunda falsidade, é dizer que eu vou criar direitos destruindo direitos”. (Ricardo Antunes, 2016)
 
No Brasil, diversos entraves históricos impediram grupos sociais explorados de superarem uma referência genérica como “povão”. Apesar de conquistas fruto do movimento sindical e da redemocratização do país, ainda se a manteve a dificuldade de identificação como classe trabalhadora, ou seja, um sujeito histórico que, por suas lutas e bandeiras históricas, fosse capaz de assumir um lugar de protagonista na agenda política nacional. Apesar disso, as elites e seus processos de modernização conservadora sempre tiveram um claro medo da participação do “povão” nas decisões, ou seja, uma não tolerância em ampliar o precário estado de direito.

A compreensão do Lulismo como projeto popular depende dessa perspectiva de classe. O Lulismo marca a possibilidade de uma “revolução passiva”, na qual um movimento reformista ia gradualmente abrindo a possibilidade de novas modificações. De fato não deu margem a uma perspectiva revolucionária ativa, mas também não se tratou de mera concessão “pelo alto” de classes dominantes para a satisfação de algumas demandas sociais. Isso fica claro pela reação em prol da restauração das bases fundamentais da dominação de classe no curso de um golpe.

A gravidade das forças restauradoras só se compreende à medida que se enfatiza sua rejeição a qualquer possibilidades de avançar na renovação da ordem social diante do medo das massas exigirem mais e questionarem os limites da sociedade conservadora. A fim de evitar isso, as forças restauradoras desviam de uma rota que estava pressionando por uma maior radicalização da democracia e deslocam o problema para a recriação do Estado a ponto de transformar reivindicações sociais mais profundas em expressões de irracionalidade diante da necessidade de garantir estabilidade à ordem vigente.

Essas forças distorcem o sentido de uma lógica reformista retirando-lhe aspirações progressistas, passando a traduzi-las em franco combate a um suposto estatismo visto como imoral (permissivo à corrupção) e irracional (impede a eficiência econômica). O Estado antes reconhecido como arena de mediação política para garantir conquistas de direitos e proteção social, agora volta a ser visto como um empecilho às virtudes meritocráticas do capitalismo idealizado.

Nesse ínterim, a luta de classes deixa de ser por mais direitos como se desencadeou no Lulismo (mesmo sem organizar politicamente de forma satisfatória), e volta a ser para impedir a perda daqueles direitos já conquistados não só no período recente, mas historicamente sedimentados desde o Varguismo. Assume-se então o caráter duplo de resistência: a luta pela soberania nacional e a luta pelo valor do trabalho. De fato, trata-se de um recuo tático para tentar recompor suas bases sindicais e partidárias diante de uma correlação de forças altamente desfavorável que levou a negação da grande política.

É nesse contexto que precisa ser analisada a crise no Rio dado que este território se tornou um laboratório para padronizar as ações federais pós golpe nos níveis estaduais e municipais. Primeiramente, destaca-se a farsa narrativa dominante: não se trata de "ajuda" federal. Afinal, não haverá um único repasse de dinheiro novo do orçamento da União para o governo fluminense. A União atua somente como uma credora que, diante do colapso financeiro do devedor, busca formas de recuperar um fluxo de pagamento de dívidas e encargos associados. Faz isso em troca de expor o devedor a mais dívida e retirar todos seus ativos com algum valor de mercado que ainda possua.

O que os defensores do pacote federal chamam de "medidas estruturais" são severas contrapartidas que desconsideram o efeito multiplicador do gasto público e o papel das políticas públicas. Sobre essa nomenclatura vistosa, "medidas estruturais", esconde aquilo que é exigido de forma inegociável para demonstrar que está retomando capacidade de pagamento da dívida com governo federal e, assim, não ter o acordo sustado (com novos bloqueios e arrestos). Logo, não se trata da defesa dos interesses do Rio, e sim de atender os termos impostos pelo credor federal, doe a quem doer, com o impacto socioeconômico não mensurado no acordo que tiver.

Não é verdade que o acordo seja fundamental politicamente, dado que existem alternativas desconsideradas. Esse acordo se tornou a aposta central para negar que se amplie o debate público, dando sobrevida a um governo fraco para defender os interesses do Rio, em particular, prostrado frente a sucessivos bloqueios e arrestos federais.

A venda da CEDAE foi irresponsável diante de nenhum estudo técnico que garanta o interesse público. Até o momento, não houve preocupação em assegurar o papel da empresa como instrumento de política pública. Ademais, não se colocou ainda uma única cláusula no acordo que impeça o desrespeito aos servidores públicos. Ao contrário disso, o que transparece que sempre a remuneração dos servidores será a variável de ajuste cíclica, ainda mais por se instaurar um teto de gastos públicos com o acordo. Portanto, nada garante que os direitos dos trabalhadores estão assegurados, podendo perdurar ou se repetir ataques.

Ao invés de buscar uma saída a partir da valorização da classe trabalhadora, aprofunda-se a retórica da austeridade para exigir mais sacrifícios do povo sem nenhum compromisso garantido no acordo de pleno funcionamento dos serviços públicos. Em particular, em nenhum momento, há uma previsão de que será apresentado um plano de recuperação econômica estadual para gerar uma inflexão positiva na trajetória crítica de receitas públicas, bem como se ignora que deveria fazer a politização necessária de controvérsias tributárias com a União e grandes empresas.

Para piorar, colocam-se falsas questões no centro do debate. Exemplo: o acordo assume a necessidade de supostos ajustes estruturais no Rioprevidência a partir de aumento de contribuições dos trabalhadores. Contudo, já se reestruturou o modelo de previdência dos servidores estaduais desde 2013, logo, não há ajuste estrutural nem déficit estrutural nenhum, basta ver cálculo atuarial. Os déficits que de fato existem são um custo de transição do próprio processo de reestruturação em curso, fruto de um passivo de origem. Por lei, esse passivo é de responsabilidade do governo estadual realizar um plano de amortização e não transferir o ônus para os trabalhadores.

Outro equívoco comum é o endosso a uma visão ideológica que fica contra os mecanismos de proteção legal às despesas que o governo ainda está proibido de não assumir. Ao se realizarem sucessivos cortes de despesas sem conseguir com isso evitar déficits primários nas contas públicas, dado que as receitas caem mais, os apoiadores do acordo questionam o fato de o orçamento ficar cada vez mais restrito às despesas obrigatórias associadas aos direitos trabalhistas. Usam de uma hipocrisia moral ao falar que faltam recursos para gastos sociais por essa razão quando, na verdade, o problema é um processo recessivo e uma debilidade produtiva que só impor cortes e redução do Estado não resolve.

Ao invés de se empenhar em combater a queda de receitas públicas, pretende-se empurrar para frente o problema e manter o Rio isolado politicamente em um quadro de grave tensão federativa. O governo estadual não se esboça nenhuma análise de estratégia de desenvolvimento e os riscos que o acordo impõe, ficando aliviado de, em caráter temporário, ganhar um folga no caixa. Para piorar, ele enxerga contrapartidas duras, que significam uma profunda renuncia consentida da autonomia fiscal, como se fossem legados a beneficiar a gestão pública. Na verdade, esse truque político-contábil só é capaz de gerar um otimismo de tolos que tem como única pretensão durar para além do término normal da gestão Pezão. Assim, ninguém assumiria as responsabilidades com a problemática de fundo: festejar agora uma humilhação federativa, e cada vez mais se cegar para uma profunda desvalorização do serviço público estadual.

Lutar contra isso não é uma luta que diz respeito somente aos funcionários públicos, mas de toda classe trabalhadora para esta voltar a pleitear o lugar de protagonista na agenda política nacional.

*Bruno Leonardo Barth Sobral é economista e Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE/UERJ). Autor do livro “Metrópole do Rio e Projeto Nacional” (Garamond).