Em um ano, mais de mil mulheres chegam à Cracolândia

Pesquisa realizada em junho revela que a porcentagem de mulheres na região aumentou em quase 20%.

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Enquanto buscava na memória a sequência de fatos que a levou até à Cracolândia, Carla Andrade Furlan, 27 anos, enrolava os fios de cabelo e os acomodava atrás das orelhas. Foi abandonada pelo pai aos seis meses de idade, quando ainda vivia em Juazeiro do Norte (CE) com a mãe e a irmã.

Até hoje, não sabe se o homem se encontra vivo ou morto. E a sua família, que mora em São Roque (SP) não imagina que o filho, hoje mulher transexual, está há oito anos nas ruas da Cracolândia. “Aqui é terra onde o filho chora e a mãe não vê”, constata Carla.

No começo de junho, uma pesquisa encomendada pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (SEDS) e realizada pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), levantou que entre 2016 e 2017, a porcentagem de mulheres na Cracolândia passou de 16,8% para 34,5%. São mais de mil mulheres em apenas um ano. A porcentagem de pessoas transgêneros diminuiu somente 1,5%.

A pesquisa é o primeiro levantamento de características sociodemográficas e de vulnerabilidade social da população da Cracolândia.

O estudo, que teve consultoria de Clarice Sandi Madruga, doutora em Psiquiatria e em Psicologia Médica, também mostrou que quase 18% da mulheres foram abandonadas por familiares em algum momento da vida.

Madruga entende que o aumento de mulheres se deu possivelmente pela quantidade de equipamentos de amparo social e de saúde existentes na região.

“Quando o estigma do uso da droga é muito maior para as mulheres, existem mais barreiras para o acesso ao tratamento. A Cracolândia, nesse sentido, acaba atraindo as mulheres para a região central, por se sentirem mais abertas para procurar ajuda neste ambiente”, afirma a especialista.

Ela afirma que, embora o lugar tenha muita gente, o número de usuários já foi maior. Um dos motivos identificados para esta diminuição são as internações compulsórias promovidas pela gestão Doria. “Se eu tivesse um celular, eu teria filmado tudo aquilo, as pessoas sendo amarradas como se fossem loucas”, lamenta.

A terra de Padre Cícero, líder católico do Ceará, onde Carla comeu barro na falta de feijão e arroz, ficou para trás quando ela tinha 13 anos e ainda era um menino. Um homem de São Roque (SP) conheceu a família, enquanto passava as férias em Fortaleza, e a trouxe para a cidade do vinho.

Na cidade nova, Carla conheceu o crack na escola. Entre as amigas e os passos de dança, Carla era a rainha de pagode, do É o Tchan. “Eu era a Débora Brasil”, relembra, saudosa.

O mesmo homem, que hoje Carla vê como pai, não aceita que ela tenha se descoberto menina. Motivo pelo qual, Débora Brasil de Juazeiro do Norte pulou a janela e fugiu de casa aos 16 anos. Foi quando começou a se prostituir e a fazer o uso progressivo da droga. Carla não terminou o Ensino Fundamental, assim como quase 40% da população da Cracolândia. Em 2016, esse número tinha chegado a mais de 45%.

A pesquisa também mostrou que aproximadamente 45% das mulheres já sofreram algum tipo de abuso sexual. Em 2008, Carla foi presa por tentativa de homicídio ao se defender de um cliente que a estuprou. Ficou durante meses dentro de uma cela com 83 homens, em uma das Penitenciárias de Franco da Rocha. Lá, Carla conheceu os “putos”, homens que forçam relações com a população LGBT nas cadeias.

Quando saiu do sistema carcerário, aos 19 anos, conheceu a Cracolândia.

Eduardo, nome fictício, que não usa a droga há pouco mais de um mês, contou que na região as mulheres se prostituem por cinco reais, o suficiente para comprar até duas pedras de crack. O ex-usuário, que é de Santos, chegou na região atraído pelo baixo preço da droga. Enquanto na baixada santista a pedra custa dez reais, na Cracolândia de São Paulo, é possível encontrar até por dois reais. Segundo a pesquisa, somente cerca da metade da população da região é de São Paulo.

“Não importa se você sente fome, frio ou sono, a droga sempre vai falar mais alto”, afirmou o ex-usuário. A pesquisa também levantou que 73% das mulheres trocam dinheiro por sexo; 76%, drogas por sexo. Além disso, mais de 50% dos usuários não tem nenhum tipo de renda há pelo menos um ano.

Há três meses, quando Carla se descobriu soropositiva, tentou se matar tomando veneno de rato misturado com leite. Cerca de 78% da população da Cracolândia já fizeram o exame do HIV, 6,2% tem vírus do HIV, 6,2% tem o vírus do HIV. Pouco mais de 18% das mulheres usam camisinha. A pesquisa também mostrou que uma a cada quinze mulheres estão grávidas.

Aos poucos, Carla foi entendendo que a doença “não mais um bicho de sete cabeças”. Agora Carla procurou internação e espera pela próxima ambulância.

“Não vou ficar me acabando, vim procurar a internação aqui nas tendas. Eu usei esses dias. Mas não como antigamente”.

Madruga enxerga os investimentos nas áreas sociais, como programas amplos de moradia, como um dos caminhos para realizar mudanças concretas na Cracolândia a fim de evitar que novos indivíduos cheguem à região.

“Ali muitas pessoas não têm onde morar e perderam qualquer referência familiar. Sem ter renda, acabam entrando em um ciclo contínuo do uso da droga e permanecendo na Cracolândia”, afirma a psicóloga.

Carla, na Cracolândia, está em situação de rua, bem como 67,4% da população da região. A maioria afirmou que, antes de ter o consumo de drogas agravado, nunca tinha estado nesta situação.

Outro mudança pontuada por Madruga é a necessidade de mais atenção às demandas específicas da população feminina. “É necessário dar mais atenção para todas as mulheres em situação de pobreza que passaram por contextos que levam para esse extremo que é a Cracolândia”, como o abandono e o abuso sexual, conta a consultora da pesquisa.

Outras informações

A pesquisa também mostrou que apenas 20% da população da Cracolândia faz uso conjunto de crack, cocaína e álcool. Por ser a droga mais cara, ninguém usa só cocaína. Na frente, vem álcool e crack.

Antes de ir para a Cracolândia, mais de 70% dos usuários moravam em sua própria casa ou na residência de familiares. Além disso, 11% são oriundos da Fundação Casa e, 7%, de instituições sociais ou de acolhimento.

Entre os dados de saúde, a pesquisa mostra que pouco mais de 13% têm tuberculose. Todos iniciaram o tratamento para se curar da doença, mas 10% deles não concluíram. Outras doenças como sífilis, hepatite B e C também foram encontradas.