Como se tornar uma Juíza Garantista

"Alguns chegam à Magistratura porque foi o concurso em que tiveram êxito em passar. Outros já focam logo na carreira de juiz, pela estabilidade e bons salários. Ou pelo poder. Mas se me perguntarem, responderei sem hesitar que o tipo de Juiz no qual me espelho, o tipo de juiz que uma sociedade espera encontrar, é aquele que vai sendo, por sua trajetória, “talhado” para a função".

Cristiana Cordeiro*

E então, tá estudando pra quê? Ministério Público? Defensoria? Magistratura? O que rolar?

Durante um bom tempo eu fui uma “concurseira” sem foco. Ao longo dos dois anos em que cursei a Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (entre 1995 e 1997), inscrevia-me no que aparecesse, e acho que fiz uns dez concursos até a primeira aprovação, na Defensoria Pública, logo seguida do ingresso na Magistratura estadual.

Vejo hoje que foram os caminhos que trilhei enquanto pessoa – muito mais que as noites insones, as horas de estudo e a decoreba de conteúdos ao sabor do gosto e das obras publicadas pela banca – o que me conduziu até aqui.

Preciso esclarecer que espécie de juíza sou.

Carrego a pecha de juíza garantista. Pecha, porque a expressão vem sendo invariavelmente usada em sentido depreciativo. É uma “fama” que hoje transcende o mundo jurídico, parcialmente graças ao empenho didático -midiático de certos atores em permanente solilóquio e “atentos à voz das ruas”, os quais traduzem o juiz garantista como um “juiz-manteiga derretida”, ou “juiz-assistente social”[1].

Sem me sentir de maneira alguma afetada pelos rótulos insistentemente colados por aqueles que se auto-intitulam “contra a impunidade”, “homens de bem”[2], “cidadãos de bem”, admito e confesso que sou “culpada”, sim, de buscar prestar jurisdição, no mínimo, de uma forma diferenciada[3].

Sou “culpada” de tratar os acusados em processos criminais com urbanidade, e até de providenciar alimentos ou roupas, caso estejam famintos ou esfarrapados.[4] Também sou “culpada” de não “fazer vista grossa” diante das nulidades das prisões e invasões de casas de pessoas que, por morarem em favelas, são aprioristicamente vistas e tratadas como potenciais inimigos da sociedade. Sou “culpada” de entender que o que leva uma pessoa a cometer um crime não passa pelo raso raciocínio de que “ela quis”, “ela fez a opção”, “ela é bandida e vagabunda”.

E também sou completamente “culpada” de praticar, sempre que estiver ao meu alcance, uma Justiça mais restaurativa do que meramente retributiva. “Culpada” de pensar que o resultado que se obtém com um processo judicial está longe de ser aquilo que restabeleceria a paz social. E de tentar fazer diferente.

Diferente, por exemplo, do que foi comigo.

A Justiça entrou cedo na minha vida. Filha de pais separados, mãe advogada, costumava ouvir aqui e ali os famosos brocardos latinos.

Como parte em processos, por morarmos de aluguel numa época de alta inflação, fomos atingidas por “ações de retomada” que não eram exatamente para uso próprio, e sofremos “derrotas” que nos obrigaram a mudanças involuntárias de endereço. Mas foi a história do que aconteceu na relação entre mim e meu pai o que imprimiu em mim a marca de uma Justiça que eu não queria e não quero jamais exercer.

Meu pai era médico, psiquiatra e psicanalista, e teria sido menos do que o que hoje se denomina um “pai de Facebook”, ou seja, ele não fazia questão de ter contato nem para ostentar ao público em geral que exercia um papel de bom pai.

Algo parecia ter mudado em 1982: eu tinha 12 anos e ele teve uma relação mais estável, com uma companheira que gostava de crianças. Durante cerca de um ano e meio, vivi aquela vida de visitas quinzenais, sendo pega às sextas e devolvida nos domingos, após passar momentos inéditos e idílicos na casa de campo, em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro…

Até que meu pai adoeceu gravemente, seus rins pararam de funcionar e sua primeira crise aconteceu justamente quando ele estava na casa de Petrópolis com uma amante, pivô do término daquele relacionamento estável, amante essa que acabou virando sua esposa pouco tempo depois.

Durante o período inicial de tratamento de meu pai, com três sessões semanais de hemodiálise, minha mãe, que mantinha com ele um relacionamento de amizade, disponibilizou seu carro e uma pessoa de confiança para viabilizar sua ida ao local. Porém um disse-me-disse acabou criando um mal estar com a noiva[5], e então todos “cortaram relações” comigo e minha família.

Após três anos sem qualquer contato, fui procurada por um pai que havia literalmente casado, mudado e sumido (não, não fui convidada para o casamento). Inicialmente, hesitei em vê-lo, mas acabei concordando. Ele havia comprado (sim, comprado) um rim, sido submetido a um transplante, mas estaria – segundo o primo que fez o contato – com os dias contados.

Meu primeiro reencontro com meu pai foi cerca de vinte dias antes de sua morte. Recostado num “sofá-cama”, uma dupla de enfermeiras à disposição e fisicamente irreconhecível, aparentava vinte anos mais do que tinha. Queixava-se do tratamento que vinha recebendo da mulher (que o “expulsara” do quarto do casal).

Foi um encontro que teve enorme importância emocional para mim: uma tarde de pedido e aceitação de perdão. Seguiram-se poucas outras visitas (cujos horários passaram a ser regulados pela mulher do meu pai), nas quais eram patentes seus estados mental e físico profundamente prejudicados pela doença, mas ainda assim transparecia sua satisfação em me ver (“sã” e salva!).

Todo dia de visitas (para as quais ele se arrumava e barbeava, pretendendo parecer mais digno, dentro das condições possíveis), ele me entregava um livro ou dois. Acabo de me dar conta de que fiz anos de terapia e nunca falei sobre esses títulos e nem sei se todos tinham de fato alguma correlação entre si, ou carregavam alguma mensagem subliminar, fora o primeiro deles (El Filicidio[6]), que me foi dado junto com um diploma da International Psychoanalytical Association[7] e um cartão datilografado, onde se lia: “Cristiana, perdão, 16 anos.”

Ocorre que, a despeito da enigmática intenção da pequena coleção bibliográfica, o fato é que todos os livros vinham com um “recheio”: bilhetes endereçados a minha mãe, pedindo “Socorro”, “Não faça nada, apenas aguarde”, “Precisamos sustar o testamento”.

Um testamento feito cerca de 90 dias antes do óbito deixava a parte disponível dos bens para a viúva, ou seja, deixava para a única filha – no caso, eu – 25% do que sobrara. Ah, sim, “sobrara” porque havia uma procuração, também, com poderes irrestritos sobre os patrimônios do meu pai e da minha avó paterna, que fora usada para vender diversos bens, inclusive aquela casa de Petrópolis que mencionei anteriormente.

Em 20 de julho de 1986, aos 44 anos de idade, meu pai morreria de “hemorragia digestiva alta, encefalopatia porto-sistêmica, hepatite crônica ativa, cirrose hepática, insuficiência renal crônica, transplantado de rim.”

Falando sério? Não era muito o que ele deixou, após a “queima” do patrimônio[8]. Mas era uma ajuda. E um direito. Uma ação de anulação de testamento, fundada na incapacidade de meu pai para testar, pelo quadro de confusão mental (afinal, quem está com o cérebro totalmente intoxicado na data do óbito estaria em condições de fazer um testamento em casa, 90 dias antes?), foi ajuizada, porém julgada improcedente.

Enquanto isso, eu mudava de curso universitário: de comunicação para letras; e de letras, enfim, para direito.

E foi já formada em direito e advogada, cursando a Escola da Magistratura, “concurseira sem foco” como descrevi no início deste texto, que tive a oportunidade de fazer minha primeira (e última, vejam só) sustentação oral, no recurso de apelação contra aquela sentença de improcedência.

Acredito que todos os desembargadores que integravam aquela câmara não estão mais na ativa. Alguns sequer estão entre nós.

Eu tinha pouca fé na reversão daquela decisão de primeiro grau. O advogado da viúva do meu pai era de escritório influente (para dar noção mais exata, tinha o mesmo sobrenome de pessoa que ocupara alto cargo na Administração do Judiciário Fluminense[9]) e eu, bem… eu era uma jovem advogada, concursanda, ingressando nos autos a meio caminho andado, em causa própria, fazendo a sustentação ali por opção.

Entre lanches e conversas paralelas, percebi um ou outro julgador atento ao que falei (não sei se porque citei Shakespeare), mas o voto pré-pronto do relator dizia que eu era “uma filha inconformada com o fato de o pai ter constituído relacionamento com uma mulher 16 anos mais jovem, a quem decidira deixar amparada, através do testamento”, ou algo bem parecido.

Se havia algo que nunca tinha sido dito porque não era objeto do pedido era o fato de meu pai ter se casado, já doente, com uma ex-paciente, dezesseis anos mais nova que ele (só foi tema de fofoca, mas não estava nos autos). Embora isso fosse verdade, o pedido girava unicamente em torno da capacidade para emitir uma declaração de vontade, no caso declaração de última vontade.

Enquanto ouvia a sequência de “acompanhos”, sem um pedido de vista sequer (e acho até que percebi meneios de cabeças), sentia um calor subir pelo pescoço e pela nuca, chegando às têmporas. Alguma náusea. Hoje sei claramente que é o que sinto quando percebo ou presencio uma situação de injustiça, humilhação, degradação.[10]

A sensação demorou a passar, embora eu tenha ficado um pouco aliviada quando, iniciado o julgamento do processo seguinte da pauta, deixei a sala soltando a porta de madeira e vitral transparente. Não sei se a força da minha indignação ou a mola fraca fizeram com que ela acabasse se fechando com certo estrondo.

Minha mente também estava uma zoeira só. Dali a algum tempo, eu mesma poderia estar me sentando na cadeira de julgador – eu pensava. E foi então que surgiu meu principal anseio, aquele que me acompanha até hoje, diariamente: não fazer injustiça.

Eu tinha certeza de que eu teria, inclusive, que me libertar daquela equação que eu visualizara no meu processo (homem com excelente situação financeira + doença terminal + mulher mais jovem com interesse patrimonial), pois – numa outra situação – poderia ser que os papéis desempenhados não fossem idênticos.

Ouvir os interessados, considerar as diferentes hipóteses, não prejulgar, despir-me de preconceitos. Pensar na solução que melhor atende às partes envolvidas e à coletividade.

Entre passar num concurso, dar conta das leis, entendimentos, “correntes”, jurisprudência e ser Juiz com “jota” maiúsculo há uma enorme distância. Tenho um “juiz-paradigma”, um “juiz-modelo”, no qual desejo me espelhar e tenho buscado esse ideal, há quase 20 anos.

Alguns chegam à Magistratura porque foi o concurso em que tiveram êxito em passar. Outros já focam logo na carreira de juiz, pela estabilidade e bons salários. Ou pelo poder. Mas se me perguntarem, responderei sem hesitar que o tipo de Juiz no qual me espelho, o tipo de juiz que uma sociedade espera encontrar, é aquele que vai sendo, por sua trajetória, “talhado” para a função.

É por isso que concluo com uma história real.

Recebi dia desses uma mensagem privada da amiga Flavia Bichara, advogada. Ela contava que tinha se deparado com um juiz do “meu estilo”, pois levara um cliente para se entregar no cartório e pediu a reconsideração da preventiva… E o colega reconsiderou a decisão. E ela prosseguiu:

Saí do cartório com o menino chorando de alegria… Mas o melhor de tudo foi o juiz ver com carinho, ver com outros olhos o caso… E não sair canetando… Ele leu e me escutou com atenção. Que vocês se espalhem. Se meu cliente um dia for condenado por ele, tenho certeza que foi justo.

E é a esse colega (não quero nomeá-lo, porque, sei lá, vai que ele sofre algum tipo de retaliação ou, pior, vem a ser processado), que se ler esse texto saberá quem é, pois fiz questão de “amigá-lo” nas redes sociais e cumprimentá-lo, que dedico essa minha primeira participação aqui no Justificando.

*Cristiana Cordeiro é juíza de direito do TJ-RJ desde janeiro de 1998, integrante da Associação Juízes para a Democracia – AJD.

Notas:

[1] Conforme postagem na página do Facebook “Movimento contra a Impunidade”, criticando as audiências de custódia: “Esse é mais um entre milhares que acontecem….. Mais um impune! E o que é pior, quando se consegue prender um elemento desse em flagrante, logo é levado para a famigerada Audiência de Custódia e depois de contar uma triste estória de vida e comover a todos, é colocado em liberdade e, obviamente volta a fazer o que sempre fez: o CRIME! Precisamos que os profissionais do direito, especialmente juízes e promotores sejam mais juristas e menos assistentes sociais….”

[2] Com certo asco da falta de pudor da utilização de um termo que nominava o periódico da KKK, esta que vos escreve prefere usar o termo “HDB”.

[3] Não confundir diferenciada com alternativa. Entendo que a presto como todos deveriam fazê-lo, mas infelizmente não é assim que acontece em toda parte, pelo que ouço das queixas de advogados, defensores, servidores da Justiça…. Ressalto, porém, que a maioria dos juízes que conheço o fazem com enorme competência, fidalguia e denodo. Não poderia citar todos, sob pena de esgotar o número de caracteres a que tenho direito, mas faço questão de registrar aqui que meu guru e paradigma foi e é Geraldo Luiz Marcarenhas Prado.

[4] http://justificando.cartacapital.com.br/2017/05/26/promotor-representa-na-corregedoria-do-tjsp-juiza-que-alimentou-acusados-famintos/ Noticiou-se aqui no Justificando o caso da juíza Silvia Estela Gigena, de São Paulo, ameaçada de processo pelo promotor por ter determinado que fossem retiradas as algemas e que fossem alimentados os presos apresentados à audiência de custódia, pois chegaram à sala judicial famintos.

[5] Teria chegado aos ouvidos dela o seguinte comentário, feito entre familiares em minha casa: “qual o interesse de uma mulher tão mais jovem em se relacionar com o Cicrano, ainda por cima já doente?”

[6] El Filicídio, de Arnaldo Rascovsky, psicanalista argentino falecido em 1995, conta com interessante resenha em http://psicopsi.com/Filicidio-Arnaldo-Rascovsky

[7] A IPA foi fundada em 1810, pelo próprio Sigmund Freud. Meu pai era um sujeito cheio de titulações, mas certamente esse era o título de que mais se orgulhava.

[8] Ao contrário do que pode parecer, as vendas de imóveis não foram realizadas para custear os tratamentos. Meu avô paterno era muito rico e financiou tudo.

[9] Sem com isso querer dizer que tal circunstância foi de qualquer maneira usada ou influenciou no resultado…era como eu me sentia.

[10] Em 1977, a Rede Globo exibia uma telenovela chamada Dona Xepa, em que a personagem-título era constantemente humilhada, por sua origem e aparência humildes e era exatamente isso o que eu sentia naquelas cenas, aos 7 anos de idade.