Cotas na USP: um começo 

Entrevista da professora Márcia Lima à Carta Capital dismistifica os argumentos contra a adoção de cotas e lembra o caminho a ser percorrido depois dessa conquista

Por Alessandra Monterastelli 

cotas

Em entrevista para a Carta Capital na última quarta-feira (12), a professora Márcia Lima, uma das 120 negras que lecionam entre os 6 mil docentes da Universidade de São Paulo, afirmou que “temos sempre que pontuar que essa é uma política liberal, pois isso é o princípio de uma sociedade de classes, de uma sociedade individualista e capitalista”.

A professora, defensora incondicional das cotas raciais, firmou o abaixo-assinado que reuniu cerca de 300 professores da USP a favor da votação de cotas raciais. E retoma a sua importância: “ninguém em sã consciência vai dizer que é contra a meritocracia. Quando você nega o valor da meritocracia você diz que não importa o empenho, a dedicação. Mas as políticas de cotas não se opõem a isso na medida em que sociedades muito desiguais não possuem parâmetros para medir a meritocracia. Se você tem muita desigualdade de oportunidades, o resultado que cada um desses indivíduos alcança não é unicamente em função de seus próprios méritos”. Contudo, relembra que as cotas, inseridas no contexto socioeconômico em que vivemos, também tem seu lado meritocrático: “as pessoas vão competir para entrar na universidade, a reserva de vagas não elimina a competição” e ainda fala sobre a dificuldade do vestibular da USP, destacando que a Fuvest é “um balizador de mérito inquestionável”.

A fala da professora desmistifica o argumento muitas vezes usado por quem é contra a adoção de cotas: de que os cotistas não teriam um nível de aprendizado suficiente para acompanhar os estudos naquela que é considerada a melhor universidade do país, e que posteriormente, ao se formar, seu profissionalismo não seria confiável. “A Fuvest não diploma ninguém, quem diploma é a Universidade de São Paulo. Esse aluno vai ingressar por um sistema de cotas mas vai passar pelas mesmas avaliações que qualquer aluno. Não existe um sistema diferenciado, um conteúdo diferenciado. Se dá ao processo seletivo um peso muito excessivo, e isso é um problema”.

Márcia explica que as ações afirmativas são “políticas públicas ou privadas voltadas para corrigir desigualdades relacionadas a determinados grupos” e que a ideia de quem se opõe a elas é justamente manter as diferenças de oportunidades. “Você apelar para o princípio de igualdade numa sociedade que gera tanta desigualdade gera contrassenso. Não tem como corrigir desigualdades tão profundas se você não atenuar especificamente nos grupos mais atingidos. Tem que melhorar a educação básica, tem que existir igualdade de direitos, mas enquanto a sociedade não produz direitos iguais ela tem que corrigir as formas de acesso à oportunidade”.

A socióloga da FFLCH/USP ainda explicou que “a ideia de formar uma universidade de elite é de uma universidade de qualidade, que forma os principais pesquisadores, as principais mentes do país. Forma pessoas que formarão outras pessoas. A ideia de uma universidade de elite é de um ensino de ponta, com recursos, com condições de fazer diferenças na produção de conhecimento. Uma universidade de elite não é uma universidade racialmente hegemônica”.

Questionada sobre como enxergou a demora da USP na adoção de cotas, a professora diz que esse foi um fator preocupante: “é assustador que a USP não tenha se preocupado de fato em entender o quão importante é formar uma elite que conviva com a diferença, com trajetórias diferentes, pessoas diferentes, origens sociais e econômicas diferentes. É uma resistência que passa por uma concepção equivocada do que é ser uma universidade de elite”.

Deve-se lembrar que além do ingresso, a Universidade de São Paulo deve possibilitar a permanência dos estudantes cotistas, isto é, criar um espaço de acolhimento por meio de políticas universitárias: “a proposta de uma universidade mais inclusiva não termina no vestibular, começa nele”.