Construir uma alternativa à crise política

Em 1984 o PCB lançava o livro "Uma Alternativa Democrática para a Crise Brasileira". Por meio daquele conjunto de propostas o partidão pretendia alinhar um amplo leque de forças e assegurar a transição e a consolidação da democracia no Brasil. Lançado nas movimentações em favor da sua legalização o texto exprimia a visão do Comitê Central.

Por Ion de Andrade, para o GGN

A “Alternativa”, como passou a ser chamada, representava o eixo central da política do partido e norteava o trabalho da militância em todas as searas, provendo um importantíssimo alinhamento entre a macro e a micropolítica, o que permitiu a um PCB microscópico uma influência política maior naqueles anos. A formulação do partidão teve ainda relevância, apesar do seu esfacelamento, enquanto fundamentação teórica e política para a complexa engenharia que deu vida à constituição de 88.

Mas a Alternativa não foi filha dos primeiros anos da ditadura, ao contrário, foi o resultado de uma longa sedimentação da formulação e das lutas que atravessaram o Brasil nos vinte anos que a precederam. De certa forma a Alternativa veio a ser o ferro de uma lança construída em 20 anos por toda a esquerda. Alguns, entre os quais até me incluo, entendem que a política que levou o PT ao poder alguns anos depois foi a que, para o bem e para o mal, estava inscrita naquele documento, como também no polêmico livro de 1979 de Carlos Nelson Coutinho intitulado "A democracia como valor universal", que aliás também influenciou a formulação da própria "Alternativa". Marx, sobre a Comuna de Paris, dizia que os franceses faziam o que os alemães teorizavam e o PT, marcadamente operacional, cumpriu, sem teorizar tanto, um papel histórico que o partidão não teve como protagonizar.

Porém, nesse momento de turbilhão em que tudo parece ao mesmo tempo certo e errado, passamos a nos mover pela leitura das conjunturas, ou seja, em lugar do sextante ou da bússola, o caleidoscópio e o oráculo. Como a conjuntura é mutável e incontrolável ora vemos viabilidade em tal proposta, ora em outra, o que prova que nos movemos às cegas.

A FBP, com a formulação do MST e dos movimentos sociais à frente, e o MTST, através da elaboração de Boulos, vêm apontando para horizontes menos conjunturais que vão além da idolatria da “análise de conjuntura” e nos colocam diante de tarefas políticas de curto, médio e longo prazos, cuja necessidade histórica é tanta que cedo ou tarde serão o nosso labor.

Tal elaboração desses movimentos, “não autorizada” por uma certa esquerda oficial, fez emergir também “novos” problemas internos a essa esquerda. Permitiram a percepção de uma verdadeira clivagem entre “institucionalistas” e “basistas”, que então, como é recomendável entre nós, passaram a…brigar; como se tais duas elaborações não devessem (também) por obrigação dialogar, com o propósito de, de novo, permitir a construção de uma síntese, de uma plataforma onde a macro e a micropolítica venham a poder se realimentar e estabelecer as necessárias sinergias, sem as quais esse projeto de democracia social e participativa ou de socialismo não é mais que uma quimera.

A FBP tem feito muito no sentido de alinhar propostas de forma aberta, convidando a quem possa interessar-se a participar da sua elaboração e aperfeiçoamento, a Frente se deu e ocupa uma importante posição “para além da divisão dos partidos”. E o MTST, por falta de elaboração teórica contemporânea de fonte partidária, como seria da obrigação dos partidos, tem elaborado para além do escopo classicamente específico a um movimento social e feito um inestimável trabalho de massificação da ideia de que a nossa fronteira de trabalho são as periferias.

Por outro lado os partidos democráticos e da esquerda tem feito, reconheçamos, um esforço hercúleo de elaborar a resistência institucional ao golpe que aí está, perdendo a maioria das batalhas, pois a correlação de forças nos é desfavorável, mas enxergando espaços institucionais de resistência igualmente cruciais. Possivelmente esteja faltando aos dois “lados” que se bastam, como convém à boa esquerda, a percepção da necessidade histórica desse encontro dos diversos, com boa dose de humildade revolucionária, em busca do elo perdido que permitirá um importante salto teórico capaz de apontar finalmente para uma nova Alternativa.

As 76 propostas do plano emergencial da FBP precisam, naturalmente, ser escritas de forma orgânica. Dar organicidade a essas propostas, não é tarefa simples, pois implica num esforço de grande fôlego para entender, (num contexto pós gramsciano) o que vem a ser exatamente emancipar as massas e trazê-las à cidadania (pois elas é que serão protagonistas dos 76 pontos) e de que meios podemos lançar mãos para, convertendo a classe em si em classe para si, multiplicar exponencialmente os protagonistas do nosso projeto. Tudo isso deve fazer simbiose com o que lá vai escrito nas 76 propostas, o que dialoga com a elaboração de Boulos que enxergou um caminho e uma fronteira.

Toda essa elaboração também deve dialogar com a maneira pela qual o poder político é produzido, com o jogo “democrático” que vai, no mundo real, nos fazer chegar, independentemente do fenômeno Lula, com muito maior frequência a prefeituras do que a governos. Qual é o papel do “Estado de direito” que conquistamos e de suas políticas no que toca à tarefa de emancipar as massas? Será que está cumprindo essas tarefas a contento? O que faremos de convergente com o Projeto maior a partir dos poucos fragmentos de poder político municipais de que nos apropriaremos no turbilhão, se sequer temos clareza de que Projeto é esse? E finalmente, como converteremos essa emancipação das massas (que deve produzir protagonismo) numa vontade coletiva capaz de ser massa crítica e força gravitacional para estabilizar a democracia e nos imunizar do golpismo? Como transformar o homem singular no cidadão coletivo?

Essa conexão entre o Poder, o Estado e a emergência de um Movimento Social que galgou fôlego para peitar o aparatchik partidário deve ser o objeto de estudo dos que realmente têm interesse em repor o país nos trilhos e em última análise, devolver ao nosso povo o direito de viver com dignidade.

Mas isso não pode converter-se em palavras ao vento. Serão necessárias ações concretas, encontros físicos entre os representantes de cada vertente, atuação intelectual dos institutos partidários e de intelectuais de renome. Não para, como sempre, reproduzir o teatro onde o lenga, lenga convencido de cada tendência será mais uma vez, orgulhosamente, enunciado; mas para permitir com a necessária humildade a construção de uma síntese mais alta capaz de agregar os diversos e de, despertando-nos das caleidoscópicas análises de conjuntura, repor a proa do barco rumo ao horizonte e dar ao vento a chance afinal de enfunar as nossas velas.