Sobre igualdade, desigualdade e algumas confusões que tenho visto

Recebi um comentário ao meu texto sobre o racha na Liga do Nordeste e as coincidências com a implosão do Clube dos Treze em 2011 que reflete bem algumas confusões acerca de conceitos como Igualdade (Princípio da Isonomia) e quando os iguais devem ser tratados como iguais e os desiguais na medida de sua desigualdade.

Por Emanuel Leite Jr.

futebol e tv

O comentário dizia algo como "luta contra a desigualdade na divisão das cotas de televisão. Mas não se busca a divisão igualitária com clubes como Flamengo e Corinthians por exemplo." E vai muito no sentido de comentários diversos que vi nas redes sociais logo após o anúncio feito por Sport e Náutico na coletiva que contou, também, com a presença do presidente da Federação Pernambucana na mesa dos dirigentes pernambucanos. Vou procurar, neste texto, esclarecer alguns conceitos, já que, nitidamente, percebo que há quem não o tenha compreendido bem.

É preciso dizer que sobre esse ponto fico bastante à vontade para falar, afinal sou o autor do livro "Cotas de televisão do Campeonato Brasileiro – apartheid futebolístico e risco de espanholização" e o pesquisador que foi consultado pelo então deputado federal Raul Henry (hoje vice-governador de Pernambuco) para a elaboração do projeto de lei que, posteriormente, foi reapresentado pelo deputado federal Betinho Gomes. Ademais, a justificação e fundamentação do PL 7681/14, atual 755/15, são, basicamente, tiradas dos meus estudos.

Como disse, tenho visto alguma confusão acerca do tema, especialmente no que tange ao Princípio da Isonomia (Igualdade). No meu livro, procurei dar uma base teórica como sustentação à minha argumentação e é por isso que o primeiro capítulo faz um resgate dos conceitos de democracia e estado democrático de direito, para, a seguir, no capítulo 2, abordarmos os direitos fundamentais, nos quais se insere o Princípio da Igualdade – considerado por José Afonso da Silva, ao lado do Princípio da Liberdade, não mero princípio democrático, mas a base fundamental de qualquer estado democrático.

De fato, e passo a citar aquilo que escrevi no já mencionado livro "Cotas de televisão…", "o princípio da igualdade não busca um igualitarismo absoluto e muito menos permite que ocorram diferenciações e discriminações absurdas e arbitrárias. A isonomia visa a garantir o respeito aos semelhantes e suas peculiaridades, enfim, o respeito à sociedade plural e democrática. Celso Antônio Bandeira de Mello diz “o que a ordem jurídica pretende afirmar é a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas”. Esta é, afinal, a essência da isonomia: todos são iguais perante a lei, respeitadas as suas diferenças, tratando igualmente os iguais e os desiguais conforme as suas desigualdades."

E é importante frisar a passagem em que Bandeira de Mello fala acerca das "desequiparações fortuitas ou injustificadas", pois esse é um ponto nevrálgico para a discussão. Quais são as desigualdades que podem ser aceitas sob a ótica da Isonomia?

Certamente, não são aquelas propostas por Sport e Náutico para a Copa do Nordeste, bem como não são as que os mesmos Sport e Náutico sofrem pelas mãos de Flamengo e Corinthians (para citar os dois mais beneficiados pela lógica elitista e excludente do futebol brasileiro) a nível nacional.

Ora vejamos, o argumento equivocado que tenho visto é de que "não se busca a divisão igualitária com clubes como Flamengo e Corinthians por exemplo". E por que não pode estar mais equivocado? Primeiro, é importante recordar que o Projeto de Lei de autoria de dois deputados pernambucanos que toma como base os estudos de um pesquisador também pernambucano visa dirimir as "desequiparações fortuitas ou injustificadas" que existem na atual conjuntura de apartheid futebolístico no Brasil. E por quê?

Tomemos a Premier League como paradigma, pois se trata da liga de futebol com a divisão mais equânime no futebol mundial (embora, frise-se, não corresponda ao "ideal de justiça como equidade" como preconizado por John Rawls, como acontece nas ligas norte-americanas, por exemplo). Na temporada 2015/16 o minúsculo Leicester, campeão inglês, recebeu £93,2 milhões; enquanto o gigante Liverpool (18 vezes campeão nacional, inglês com mais títulos de Champions [5] e que ao lado do Man United podem ser considerados o Flamengo e Corinthians de lá) ganhou £90,5 milhões e o badalado Chelsea (que havia ganho quatro dos últimos 12 títulos nacionais até então – ou seja, um terço dos campeonatos disputados) ficou com £87,2 milhões.

Pelo argumento equivocado (provavelmente pela incompreensão precisa do Princípio da Igualdade) que tenho visto nas redes sociais, um clube como o Leicester jamais poderia receber mais do que gigantes como o Liverpool e o Chelsea. Porém, e embora a Premier League não seja exatamente aquilo que Rawls falava de "justiça como equidade", foi a lógica igualitária da distribuição das "cotas de TV" que garantiram que na Inglaterra não houvesse "desequiparações fortuitas ou injustificadas", permitindo, assim, que o pequeno Leicester, que dois anos antes estava na segundona e no ano anterior brigou para não cair, ganhasse mais dinheiro de TV do que Liverpool e Chelsea, e apenas 3 milhões a menos do que outro monstro inglês, o Man United, por exemplo.

Enquanto na Inglaterra a ratio entre o que mais recebe e o menos recebe foi de 1,5:1 em 2015/16 e 1,6:1 em 2016/17, no Brasil, ela foi de 7,3:1 em 2016. A diferença de Flamengo/Corinthians para o São Paulo (o que mais recebe após a dupla) foi de 1,5:1, ou seja, a mesma diferença entre o primeiro e o último na Inglaterra.

Sobre essa questão da "justiça como equidade" de John Rawls, no fim de agosto vou apresentar um paper num congresso na Universidade de Manchester em que abordo precisamente a busca pelo balanço competitivo nas ligas de futebol e analiso qual competição futebolística mais se aproxima do ideal Rawlsiniano de justiça (aproxima-se sem o atingir, volto a reiterar).

*Emanuel Leite Jr. é doutorando em Políticas Públicas na Universidade de Aveiro (Portugal), bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pelo Centro Universitário Maurício de Nassau. Autor do livro “Cotas de televisão do campeonato brasileiro: apartheid futebolístico e risco de espanholização”, que serviu de base para o PL 755/2015 que visa a regulamentar as “cotas de TV” no Brasil.