O trabalho doméstico na crise econômica: uma dinâmica anticíclica

No período dos governos petistas o trabalho doméstico foi perdendo centralidade. Está aí a sua característica anticíclica. Quando todas as ocupações crescem e a economia retoma o dinamismo e o crescimento, o emprego doméstico tende a perder participação. Nas manifestações pró Impeachment, não raras vezes se erguiam cartazes denunciando o alto custo do trabalho doméstico.

Por Juliane Furno*, no Le Monde Diplomatique

Paulo Skaf presidente da Fiesp - Foto: Fiesp

O trabalho doméstico no Brasil tem determinações históricas e profundas, deitando suas raízes no passado colonial escravocrata brasileiro. A sua reprodução em larga escala e feita basicamente por mão-de-obra negra, advém da transição truncada do trabalho escravo para o trabalho livre, em fins do século XIX. As transformações políticas e econômicas brasileiras, levadas a cabo por acordos sem perdas nem danos, manteve inalteradas as condições desiguais e excludentes que circunscreviam a vida dos negros escravizados. Abolida a escravidão sem políticas públicas de integração, somado a uma estrutura de mercado de trabalho com heterogeneidade estrutural, marginalidade, excedente de mão de obra e baixos salários, nos legou como herança a permanência da população negra em tarefas “servis”. O fim da escravidão, dessa forma, determinou o aparecimento do assalariamento doméstico. Segundo Heleieth Saffioti¹ 70% das mulheres negras no pós escravidão seguiram trabalhando como domésticas.

Embora o Brasil tenha tido um intenso processo de modernização e industrialização, iniciados na década de 30, e em que pese tenha vivenciado distintos ciclos econômicos, o trabalho domésticos seguiu alheio às transformações mais substanciais, permanecendo constante no total dos empregados. Dessa forma o trabalho doméstico mantém-se em coexistência com atividades de alto valor agregado e tipicamente capitalistas, reafirmando uma desconexão da extensão dos ganhos do desenvolvimento social e econômico. O que determina que o Brasil – que vigora entre as 10 maiores economias do mundo – produza e reproduza um montante de 6 milhões de trabalhadores domésticos é, notadamente, a grande desigualdade que assola a nossa sociedade.

É nesse sentido que o trabalho doméstico correlaciona-se positiva e intensamente com a concentração de renda, vale a máxima de “salário remunera salário”, ou seja, o trabalho doméstico não segue a lógica da contratação visando um acréscimo de valor futuro, nem mesmo a produção de uma mercadoria comercializável. O que o mantém com um percentual tão grande de ofertantes e demandantes dessa mão-de-obra é a desigualdade social persistentes no Brasil e os baixos salários da categoria.

Os ventos do neoliberalismo que chegaram em território brasileiro nos ano 90 forneceram os ingredientes necessários para a explosão do trabalho doméstico. Enquanto a economia apresentava um crescimento pífio, avançavam as políticas de desregulamentação do mercado de trabalho e se intensificava a desindustrialização nacional, o trabalho doméstico mostrou comportamento anticíclico, com aumento expressivo do contingente de mulheres – especialmente negras – dispostas a receber uma pequena remuneração por um trabalho tão penoso. Dessa forma o crescimento da oferta de trabalho doméstico se constitui como uma resposta as transformações no capitalismo brasileiro, que foi apresentando uma performance desastrosa na geração de empregos nos setores mais dinâmicos. O emprego doméstico foi o setor que mais criou postos de trabalho nos anos 1990².

Além disso, na década de 90 o trabalho doméstico cresceu na sua participação relativa no total dos ocupados e, principalmente, no total das mulheres ocupadas. Isso nos deu a terrível marca de que até 2003 o trabalho doméstico era a ocupação que mais concentrava mão de obra das mulheres empregadas, absorvendo nada menos que 19% da mão de obra das mulheres, nenhuma outra ocupação batia essa marca! Atualmente comercio e serviços e serviços educacionais estão entre as primeiras ocupações que mais abarcam mão de obra feminina.

Gráfico 1: Proporção de domésticas sob o total dos trabalhadores ocupados e sob o total das mulheres ocupadas

No período dos governos petistas o trabalho doméstico foi perdendo centralidade. Está aí a sua característica anticíclica. Quando todas as ocupações crescem e a economia retoma o dinamismo e o crescimento, o emprego doméstico tende a perder participação, por vários motivos, o primeiro deles é que essas mulheres – negras e pobres, em sua maioria – passam a ter outras oportunidades de trabalho, rompendo com a tradição das suas mães e avós. Sendo assim, em que pese às mulheres terem rumado para outros empregos precários, como telemarketing, tal movimento já apresenta uma ascensão social considerável, seja pelo valor socialmente atribuído pela sociedade, seja pelas maiores chances de formalização e ascensão profissional fora da carreira de domésticas. Além disso, com a valorização do salário mínimo – que é um piso praticamente indexado ao rendimento das domésticas – elas obtiveram maior poder de compra e também maior poder de barganha. Parte das domésticas recusou trabalhar por diárias mínimas ou salários abaixo do mínimo. Condições para tal foram dadas, também, pela emergência de políticas sociais distributivas, tais como o bolsa família, por exemplo.

Outro elemento importante que atesta uma melhoria do perfil da ocupação nos anos 2000 foi a completa inversão da pirâmide etária, isso quer dizer que as mulheres mais jovens já não viam mais no emprego doméstico sua alternativa única de inserção no mercado de trabalho e foram migrando para outras ocupações, permanecendo as trabalhadoras mais velhas. Esses elementos apontam uma tendência de reversão da importância do trabalho doméstico nas ocupações brasileiras, ao mesmo tempo em que vai pressionando o estado a assumir maior parte das tarefas reprodutivas.

Gráfico 2: Proporção de trabalhadoras domésticas por faixa etária.


Ocorre que redução das desigualdades sociais (ainda que muito tímida e principiante) incomoda bastante. Parte da classe alta e média brasileira, acostumada a um exército de serviçais ao seu dispor, passou a “se indispor” com o rumo dos acontecimentos. Frequentemente se ouvia em conversas informais ou nos noticiários, que as empregadas domésticas andavam abusadas demais, não queriam mais “servir”, e até se principiou a prática de importação de empregadas domésticas Filipinas³ , afinal, elas adoravam trabalhar, dormiam no local, cobravam pouco e ainda falam com as crianças em inglês!

Nas manifestações pró Impeachment, não raras vezes se erguiam cartazes denunciando o alto custo do trabalho doméstico, e a Revista Veja fez até uma capa anunciando um homem com uma frigideira na mão, na desastrosa frase: “esse será você amanhã”, aludindo à mudança na legislação que equiparou os direitos das trabalhadoras domésticas às demais categorias profissionais.

O ano de 2015, no entanto, inicia um movimento de inflexão, tanto na trajetória de crescimento econômico com geração de emprego, como na tendência de queda da participação do emprego doméstico. A terapia de choques4 a que a economia brasileira foi submetida no primeiro semestre de 2015, com um forte ajuste fiscal, levou a economia a maior recessão já vista na história. Os resultados no mercado de trabalho foram desastrosos, com queda abrupta no rendimento real médio e elevação drástica do desemprego, que saltou de 6,8% em 2014 para 13% em 207 (PNAD/IBGE).

O emprego doméstico, seguindo sua tendência anticíclica, foi – junto com trabalhado por conta própria – a única categoria que teve variação positiva. Em 2014 o total de trabalhadoras domésticas variou 4,4 pontos percentuais em relação ao mesmo período do ano anterior, enquanto as demais ocupações variaram negativamente a uma média de -2 p.p.

Gráfico 3: Número absoluto de trabalhadores no serviço doméstico


Além disso, a renda média do trabalho doméstico, pelo menos para as sem carteira de trabalho assinada, já foi comprimida, e a das trabalhadoras com carteira de trabalho só se manteve estável por sua forte relação com o salário mínimo, e o fato de que esse ainda não foi objeto de retrocesso (o que será logo em seguida).

Tabela 1: Renda Média Real dos Trabalhadores Domésticos com e sem registro em carteira

Esses resultados tem haver com diversos fatores. O primeiro deles é que em momentos de crise dificilmente a economia brasileira gera emprego nos setores mais dinâmicos, que envolvem maior nível de investimento. Em segundo lugar, o desemprego de um membro da família pode obrigar a uma reorganização, na qual a mulher que estava apenas estudando ou não trabalhando se vê obrigada a se lançar no mercado de trabalho em busca de complementação da renda, e a mesma encontra no trabalho doméstico a alternativa primeira. O rendimento cai em função da maior oferta de mulheres nessa ocupação, e isso tende a rebaixar os salários do conjunto dos trabalhadores. Por fim, o fenômeno do aumento expressivo de domésticas disponíveis no mercado mostra que a crise tem efeitos sobre os trabalhadores – e entre os mais pobres – no entanto, fica evidente que existe uma parcela da sociedade que não sofre os efeitos da crise econômica, mas que aproveita-se do rebaixamento das condições do conjunto dos trabalhadores nesses períodos de crise e recessão.

Eis, então, os resultados dos clamores do mercado, da grande burguesia financeira internacional, de parte dos setores industriais e das altas classes médias. Seu desejo foi cumprido. A sociedade brasileira já mostra sinais de retrocessos sociais e de melhor ajustamento a sua sanha de produtora e reprodutora das desigualdades sociais. Mulheres, especialmente pobres e negras, estão “voltando aos seus lugares”.

[1] SAFFIOTI, Heleieth. Emprego Doméstico e Capitalismo. Editora Vozes, Petrópolis, 1978.

[2] NOBRE, Mirian. Trabalho doméstico e emprego doméstico. In: Reconfiguração das relações de gênero no trabalho. COSTA, Ana Alice Costa, MENIUCCI, Eleonora BEZERRA, Maria Ednalva Lima, SOARES, Vera (org.) CUT Brasil. São Paulo 2004.

[3] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/05/1627108-empresa-importa-babas-e-domesticas-das-filipinas-para-o-brasil.shtml

[4] Um choque fiscal (com a queda das despesas públicas em termos reais), ii) um choque de preços administrados (em especial combustíveis e energia), iii) um choque cambial (com desvalorização de 50% da moeda brasileira em relação ao dólar ao longo de 2015) e iv) um choque monetário, com o aumento da taxas de juros para operações de crédito. (Ver mais em ROSSI, Pedro e MELLO, Guilherme. Choque recessivo e a maior crise da história.