"Temer é uma catástrofe diplomática", diz professor da UFRJ

Entrevistado pelo Jornal do Brasil, o professor de Relações Internacionais e Geopolítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Leonardo Valente analisou papel do Brasil no cenário externo e o desastrado desempenho de Michel Temer no plano internacional.

Por Eduardo Miranda, do Jornal do Brasil

Temer em Oslo

A recente viagem do presidente Michel Temer à Rússia e à Noruega evidenciou os problemas do Brasil no cenário internacional. O mal-estar diplomático teve início com um considerável erro, antes mesmo do embarque do peemedebista, quando o Palácio do Planalto anunciou, na agenda presidencial, a viagem para a "República Socialista Federativa Soviética da Rússia".

Na sequência, gerou estranheza na imprensa mundial a recepção a Temer pelo vice-presidente da Rússia, e não por Vladimir Putin. Para o professor de Relações Internacionais e Geopolítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Leonardo Valente, o desembarque de Temer, sem as pompas de um chefe de Estado, não chega a ser uma gafe, mas "cada gesto nas relações diplomáticas quer dizer alguma coisa", afirma, acrescentando que o governo brasileiro errou ao tirar o país de um foco importante no Brics (bloco político e econômico composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), mas que os líderes e chefes de Estado preferem acreditar que a importância geopolítica do Brasil é de longo prazo, enquanto Temer é um caso "conjuntural" que poderá ser superado nas eleições de 2018.

"A situação é reversível não por conta do Temer, que é irreversível. Michel Temer é conjuntural, uma infeliz conjuntura, mas o Brasil tem um papel muito relevante e é estrategicamente interessante que ele retome o que estava em andamento antes de Temer", avalia Valente, lembrando que nem mesmo o presidente norte-americano Donald Trump provocou reação tão forte em Cuba quanto o Brasil, que, sob o comando de José Serra no Ministério de Relações Exteriores, deu as costas a países da América Latina e assistiu à retirada do embaixador cubano em Brasília por determinação do presidente Raúl Castro.

Na entrevista abaixo, o professor da UFRJ analisa, ainda, o papel da imprensa internacional e das redes sociais no ânimo nacional e no cenário internacional, além do episódio no qual o Palácio do Planalto identificou inadvertidamente um "chefe do posto da CIA em Brasília", o serviço secreto dos EUA, e anunciou encontro entre o espião e o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Sérgio Etchegoyen.

"É inadmissível o governo brasileiro receber um agente da inteligência dos EUA, a menos que houvesse um objetivo comum entre as partes. Ninguém tem que proteger agente que está agindo de forma ilegal, nenhum general deveria receber esse agente. Mas parece que aqui nada mais choca", critica Leonardo Valente.

Jornal do Brasil – Qual é a imagem do Brasil no exterior hoje e o quão ela mudou nesse último ano e meio? Daria pra exemplificar em etapas?

Leonardo Valente – É possível olhar para alguns aspectos, sim. O Brasil é um país de envergadura, vocacionado para ter relevância, por conta de sua dimensão, economia, posicionamento e que lá fora é mais visto com esse papel do que aqui dentro mesmo. Pelo menos desde os anos 2000, o Brasil vinha num crescente de protagonismo por uma série de motivos e despertava desconfiança das grandes potências sobre seu papel. O que aconteceu desde a chegada do Temer na Presidência da República é muito grave: a política internacional de um país, para ser respeitada, precisa manter suas linhas e seus objetivos. Mas o que aconteceu no Brasil, que é um transatlântico, é que ele deu uma guinada drástica. Para entendermos a gravidade disso, podemos olhar, por exemplo, para os Estados Unidos: por mais que existam grandes diferenças entre Republicanos e Democratas nos Estados Unidos, Donald Trump manteve, de certo modo, as linhas de Barack Obama na política internacional.

O que fez o Brasil?

O governo brasileiro pegou o Itamaraty e deu uma guinada violenta, e isso foi percebido pela América do Sul, pelos Brics, pelos Estados Unidos. Depois de todas essas mudanças, nada mais foi feito em sentido algum e o que se vê hoje é uma anomia. O Brasil tem hoje diplomacia, faz contatos protocolares, mas o que chamamos de diretrizes de Estado, isso está suspenso, não existe. E é claro que as outras nações percebem isso e associam ainda ao fato de que o presidente não tem a legitimidade do voto, não tem sequer popularidade, está envolvido até o pescoço em escândalos de corrupção e seu mandato caminha no fio da navalha até não se sabe quando. Neste momento, os chefes de Estado estão desconfiados, mas eles sabem que o Brasil vinha com uma política externa muito estável, concorde-se ou não com ela, e que no ano que vem, quando temos eleições presidenciais, o cenário pode ser completamente diferente. Então, por enquanto, pensam: "Não vamos nos movimentar de forma brusca para esperar o que vai acontecer mais adiante".

Nem Trump provocou a reação que o Brasil provocou na América Latina [com a política externa de Serra]

A manutenção desse mínimo, do que você chamou de "contatos protocolares", não impediu, porém, que o embaixador de Cuba fosse chamado de volta ao seu país.

Leonardo Valente – Sim. Do ponto de vista regional, a política externa tem sido catastrófica, sobretudo no início do governo Temer [com José Serra à frente do Ministério de Relações Internacionais]. Aquela postura radical gerou em nossos vizinhos, uma indisposição imediata. Veja Donald Trump, que anunciou mudanças em relação a Cuba, e não provocou a reação que o Brasil provocou. Isso, porque ele é um radical. Trump fez apenas um jogo retórico de posicionamento, ele não reverteu nada do que aconteceu [no governo Obama] e as representações diplomáticas [entre os EUA e Cuba] continuaram embaixadas. Já o Brasil, com Serra e sua retórica estridente, querendo ser mais papista do que o próprio Papa, lembrou mais a Venezuela dos anos 1960, que decidiu se isolar da América do Sul inteira, porque se dizia democrática e não se relacionava com ditaduras, apesar de ironicamente se relacionar com a Arábia Saudita. Vai entender… A política externa deve priorizar objetivos de Estado e, diante disso, há que se ter parcimônia, cálculo, progressão e diálogo nas iniciativas. O Brasil fez o extremo oposto de tudo isso.

Como você avaliou a viagem de Temer à Rússia? Falou-se muito do fato de ele ter sido recebido pelo vice daquele país, e não por Vladimir Putin.

Cada gesto, cada sinal nas relações diplomáticas quer dizer alguma coisa. Do ponto de vista protocolar, Temer ter sido recebido pelo vice não foi errado, não foi uma gafe, até porque ele próprio é um vice no comando do país. Agora, se fossem outras as conjunturas o governo russo teria optado por colocar mais calor humano e político nesse encontro, o próprio Putin o receberia com honras de chefe de Estado. O que aconteceu ali foi: "Respeitamos você e ponto, você está aqui porque é membro dos Brics". Aliás, a própria participação do Brasil nos Brics foi mudada ao longo desse governo, porque Temer viu uma chance de se salvar ali, e foi aceito porque os Brics não sabe o que vem por aí no ano que vem. É claro que o governo Temer tirou o Brasil de um foco importante, mas o país está na geladeira, em stand-by, porque poderá ser útil num futuro próximo.

A situação do Brasil é reversível, então?

Reversível não por conta do Temer, que é irreversível. Michel Temer é conjuntural, uma infeliz conjuntura, mas o Brasil tem um papel muito relevante e é estrategicamente interessante que ele retome o que estava em andamento antes de Temer. A mudança da política externa do atual governo foi tão brusca, que ela soa com grau de provisória. Não me parece que um futuro governo legitimamente eleito, tanto à esquerda quanto à direita, vá tomar medidas dessa envergadura com tamanha voracidade. Se for progressista, a tendência é retomar o que estava sendo feito anteriormente. Se for de direita, ainda assim a tendência é que seja uma política menos brusca que a de Temer, mais pragmático, acendendo uma vela para deus e outra para o diabo.

O que mais pesa contra o Brasil no cenário internacional? Deterioração econômica, crise política e institucional ou a Operação Lava Jato expondo os nomes do governo?

As notícias sobre o Brasil chegam lá fora basicamente de duas formas: pelas agências internacionais e pelos grandes veículos de imprensa que têm seus correspondentes aqui. O trabalho desses profissionais é realizado a partir da nossa imprensa. A gente não tem muita noção disso, mas o que respalda aqui é o que eles vão ecoar lá fora, o que eles vão assimilar, interpretar e traduzir para eles próprios em seus respectivos países. A nossa autoestima, que sempre foi baixa, anda destroçada. Toda a nossa mídia faz um trabalho de autodestruição e autoavacalhação, e a amplificação dos nossos problemas é algo terrível. A corrupção no Brasil sempre foi notícia no mundo afora, isso não é novidade. O que, de fato, está chocando no exterior é o impasse político, a incapacidade de o Brasil resolver suas questões políticas, um presidente que não está fazendo nada, os Três Poderes em guerra. Essa imagem do impasse é mais relevante que a crise econômica.

Em que medida as redes sociais reverberam esse negativismo lá fora e entre os próprios brasileiros?

Há pesquisadores que afirmam que o fator é limitado, enquanto outros garantem que ele não é mais restrito, dado o fato de termos praticamente um celular com acesso à internet por habitante. Além disso, temos os robôs nas redes sociais, que só nas eleições de 2014 eram 300 mil contra os então candidatos Dilma Rousseff e Aécio Neves. As redes sociais têm dois fatores que eu julgo cruciais: um deles é a multiplicação de notícias falsas e o outro é a amplificação do ânimo das pessoas, num movimento retroalimentar de pessimismo. Seria imprecisão minha tentar cravar os efeitos disso, mas me parece que, sim, o impacto é enorme.

Temer enfrentou protestos na Noruega na última sexta-feira (23) e ainda cometeu algumas gafes diante da primeira-ministra, ao afirmar que teria um encontro com o parlamento brasileiro e com o rei da Suécia, quando, na verdade, a reunião era com representantes políticos noruegueses. Como esses fatores repercutem?

O comportamento de Temer é outro componente, é da diplomacia presidencial, e a nossa é catastrófica. Ele mostrou não estar preparado, e essas gafes que ele comete são terríveis. É preciso lembrar que não víamos o ex-presidente Lula ter esses deslizes. Quando você tem interesse na questão, você dificilmente incorre nesse tipo de erro. Mas Temer não tinha a cabeça nessa viagem. O resultado de fatores como as declarações atrapalhadas e os protestos encontram uma explicação na convergência da política com os estudos de mídia: contágio. Por isso, você não vai ver nenhum líder ou chefe de Estado abraçando Temer. Porque esse contágio é ruim politicamente para quem demonstrar afinidade com o presidente brasileiro.

Para além dos deslizes na Rússia, existe algum fator ideológico que distancie Temer de Putin e provoque consequências na relação daquele país com o Brasil?

A imprensa confunde muito isso, não sei se por desconhecimento ou de propósito, a ideologia com os objetivos de Estado. Lula e Putin são tão diferentes quanto água e óleo, não tinham nenhuma afinidade ideológica, mas tinham afinidade estratégica, que era a de criar um ambiente internacional de multipolaridade no qual os Estados Unidos seria apenas mais uma potência, e não a potência. As potências dos Brics estavam alinhadas, mas isso não pode ser considerado alinhamento ideológico. Lula, Putin e Xi Jinping são completamente diferentes e não convergem ideologicamente.

Como você avalia o fato de o governo ter divulgado, às vésperas da viagem de Temer à Rússia, o nome de um agente da CIA (serviço secreto dos EUA) alocado em Brasília e um encontro de agenda deste com o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Sérgio Etchegoyen?

Isso é uma comprovação documental do que todo mundo já sabia: somos os alvos preferenciais do sistema de inteligência norte-americano. Os Estados Unidos dão mais importância ao Brasil do que o Brasil dá a si mesmo. Eles sabem da importância do Brasil na América, no hemisfério, no mundo e nos objetivos norte-americanos. E claro que eles trabalham com informação. Para além disso, é inadmissível o governo brasileiro receber um agente da inteligência dos EUA, a menos que houvesse um objetivo comum entre as partes. Ninguém tem que proteger agente que está agindo de forma ilegal, nenhum general deveria receber esse agente. Mas parece que aqui nada mais choca.