“Divinas Divas ou o arco-íris de Leandra Leal”

“Ser grande é abraçar uma grande causa”, já dizia Shakespeare. Leandra Leal estreia como diretora em “Divinas Divas”, filme sobre a primeira geração de travestis que subiram aos palcos dos teatros nas décadas de 1960, 1970 e conquistaram o mundo. Nestes tempos bicudos, em que presenciamos a intolerância com o que não é espelho, Divinas Divas é um gesto de grandeza.

Por Vandré Fernandes*

Divinas Divas - Foto: Divulgação

Entre o palco e a coxia

Leal cria um enredo sólido ao reunir as travestis Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K, Eloína dos Leopardos, Fujika de Halliday, Marquesa e Brigitte de Búzios para uma apresentação no teatro Rival, no Rio de Janeiro. Nele, Leandra Leal passou grande parte da infância. O local foi de seu avô, Américo Legal, e depois passou a ser administrado por sua mãe, a também atriz Ângela Leal, que a levava muito pequenina para a coxia. Foi nesse ambiente que a diretora conheceu as Divas que saíram dos palcos para ganhar o mundo.

As histórias foram colhidas através das lembranças, imagens de arquivos e durante a preparação das Divas para o show comemorativo de 50 anos de suas carreiras. A intervenção de Leal durante as entrevistas, ou mesmo nos OFF’s da diretora, faz o espectador se aproximar das personagens.

A amálgama das influências

Não há como não perceber a influência de Eduardo Coutinho na direção de Leandra Leal. Ela conduz em muitos momentos referenciando-se no mestre dos documentários. Isso fica claro numa quase homenagem a cena do filme “Edifício Master”, na qual um dos personagens canta My Way. Em Divas, é Fujika de Halliday quem canta “Abandono”, de Roberto Carlos, para lembrar de seu ex-companheiro.

Outra influência presente na narrativa é do documentário “Dzi Croquetes”, de Tatiana Issa e Raphael Alvarez. Nele, a diretora também passou a infância na coxia onde conviveu com a trupe que sacudiu o Brasil no início dos anos de 1970. Mesmo sendo um documentário, também é possível encontrar Fellini na obra de Leal. O diretor italiano é mencionado no filme por Brigitti de Buzios, para mostrar o mundo lúdico em que ela vive.

Toda essa mistura só poderia resultar num filme de “sabor intenso” de quase duas horas de duração, fugindo da ditadura dos 70 minutos para documentários e 90 minutos para ficção impostos pela indústria cinematográfica na última década. Mas, como afirmam alguns críticos: O filme é que determina o seu tempo de duração. Divas segue a justa medida.

Tempos de riso e de intolerância

Logo no início, Rogéria dá o tom do filme, ao dizer que ela não gosta de tristeza. O filme usa da ironia, do humor refinado, da emoção, do glamour, do sonho, para contar a trajetória das divas. Mas, ao mesmo tempo, não deixa de abordar o preconceito e a violência que elas sofreram por conta de suas decisões e identidade de gênero.

Em forma de desabafo/manifesto aparece Jane di Castro olhando direto para a câmera, para defender a prostituição das jovens travestis como forma de se sustentar. Afinal, ela diz, as travestis precisam comer, morar, se vestir, e no contexto de tanto preconceito e discriminação elas não são aceitas no mercado de trabalho. Desta forma, lhes resta a prostituição como forma de sobrevivência. “Aonde ela pode ter uma profissão?”, pergunta Di Castro. Nas décadas passadas elas faziam shows, hoje ninguém contrata travesti para os palcos, lamenta.

Além da discriminação, as travestis são vítimas da violência. Atualmente, no Brasil, segundo dados do publica.em.com.br, no ano de 2016 uma travesti ou trans foi assassinada por dia. 

Não deve ser nada fácil para uma travesti chegar aos 70 anos e ver um país tão intolerante.

Yes, nós temos banana!

Mas as personagens não deixam a peteca cair. A plateia ri das discussões e das performances, entre uma maquiagem e outra, entre um ensaio e outro com a música de Braguinha, “Yes, nós temos banana” o documentário remonta o passado e o cotidiano dessas senhoras. São artistas, são amantes, são pessoas.

É tão forte o envolvimento do público com o filme que você chega a achar que está num campo de futebol. Como não comentar, concordar, discordar. Há quem diga que as salas de cinema em Cuba são assim, um caldeirão. Não posso afirmar, já que nunca estive na terra da la sueño una perla encedida sobre la mar.

Quando Leandra pergunta para uma das personagens sobre a ditadura militar, ela diz que não podia contestar o sistema, pois já vivia sobre o risco. Neste momento, uma travesti na sala se ergue e diz: "Nada disso, tem que contestar o sistema sim!" As pessoas pedem silêncio e a travesti emenda: "Silêncio é o caralho!"

É com essa temperatura que Leandra Leal chega na direção da mesma maneira que chegou como atriz em “A ostra e o vento”: Sensível e arrebatadora.

Divinas Divas já é um clássico brasileiro, estreia colorindo as telas do nosso cinema para exorcizar os preconceitos e fazer com que as pessoas respeitem a diversidade.

Assista ao trailler: