LGBT: Enfraquecimento da democracia e de direitos estão conectados

Quando a proposta da reforma trabalhista (PLC 38/2017), de relatoria do senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), foi lida na Comissão de Assuntos Sociais do Senado (CAS), movimentos e organizações, que atuam na defesa dos direitos LGBT apontavam para o público do 14º Seminário LGBT do Congresso Nacional, como as reformas da Previdência e Trabalhista acentuam o contexto de exclusão social, precarização das condições de trabalho e desassistência do Estado à população LGBT.

Andrey Lemos e Thais Paz - Mídia Ninja

As principais questões contidas nas reformas trabalhista e previdenciária, medidas reprovadas pela população nas pesquisas de opinião, devem incidir com força nas realidades da população LGBT. Isto porque as alterações da vigente legislação pelo aumento dos anos de contribuição do trabalhador e pela fragilização das garantias trabalhistas, com a institucionalização do “negociado sobre o legislado”, ou seja, a possibilidade de que acordos entre empresas e sindicatos prevaleçam sobre a lei, devem precarizar ainda mais um contexto de discriminação, preconceito e exclusão social sofrida pela população LGBT em virtude de suas orientações sexuais e identidades de gênero.

“O aumento de tempo de contribuição afeta a população LGBT porque ela entra no mercado tardiamente por conta da discriminação”, apontouy o presidente da União Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais ((UNALGBT), Andrey Lemos, em referência à dificuldade em atingir a exigência de 40 anos de contribuição pelo trabalhador para alcançar a aposentadoria integral, proposta contida na reforma previdenciária.

A medida atinge mais duramente a população de travestis, transgêneros e transexuais. Com expectativa de vida inferior à 35 anos em razão da violência transfóbica e da falta de assistência adequada à transformação dos corpos, muitas vezes realizado em clínicas clandestinas, este segmento vê-se apartado das possibilidades de construção de uma profissão pelas escolas e universidades – o que implica em acesso tardio, informal e precarizado ao mercado de trabalho. “Como a gente não tem formação profissional a gente não acessa o mercado de trabalho. No Brasil, a gente não tem nenhuma política e legislação trabalhista que reconheça a nossa existência. O único código que nos cita é o CBO [Classificação Brasileira de Ocupações] da prostituição, pelo qual a gente consegue recolher a previdência. ”, denunciou a secretaria nacional de relações internacionais da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Adriana Sales. “Para nós a reforma da Previdência é mais um ponto nevrálgico no nosso sofrimento”, complementou.

Em referência às mudanças previstas pela reforma trabalhista, a avaliação das organizações é de que a realidade de precarização das condições do trabalho já vivenciada pela população LGBT será estendida ao conjunto da população. “Vivemos uma relação de muito assédio moral, baixos salários e postos em locais ‘invisíveis’, como call-centers. E para garantir o trabalho nos submetermos a jornadas extensas de trabalho. Com a reforma, a vulnerabilidade em relação ao patrão será ampliada”, complementou Andrey.

A opinião é compartilhada pela integrante do Coletivo LGBT do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), Thaís Paz. “A reforma trabalhista expande a precarização para todos, mas para os sujeitos que já são precarizados, essa precarização será ainda mais intensificada”, afirmou.

Pauta ampliada

No contexto de ruptura do pacto democrático, com a implementação de uma agenda política rejeitada nas urnas, a avaliação dos organizadores do seminário é de que a pauta da defesa da democracia e dos direitos humanos ganha mais força no diálogo com as bandeiras da população LGBT. “O Brasil passou por um golpe na sua recente democracia. As nossas instituições democráticas estão em choque. Só a democracia pode garantir o avanço da cidadania plena da população LGBT”, enfatizou o deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ). Para ele, é fundamental o diálogo das pautas LGBT com o conjunto de relações as quais o sujeito está conectado. “Não podemos descolar nossa luta de outras lutas, (…) como a do machismo, do racismo, não há LBGT abstratos. (…) A pobreza, a negritude vulnerabilizam ainda mais os LGBTs”, defendeu o psolista.

A opinião foi compartilhada pela deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), ao defender a necessidade da soma de esforços em defesa da democracia. “É uma luta de direitos humanos. Estamos na rua contra o sequestro do nosso direito de voto. Por meio das diretas já para que que possamos retomar uma pauta de avanço [das políticas para população LGBT]”, pontuou.

Em razão da compreensão da necessidade de soma de esforços e da intersecção da pauta LGBT com o conjunto de áreas, o seminário LGBT deste ano foi requerido por seis comissões da Câmara: Direitos Humanos e Minorias; de Legislação Participativa; Educação; Cultura, Seguridade Social e Família; e Trabalho, Administração e Serviço Público.

O arranjo do evento fez com que vários parlamentares passassem pelo evento, mesmo em dia de intensa pauta deliberativa. “Realizar esse seminário significa entrar numa batalha nas múltiplas comissões. Foi significativo ver aqui vários deputados, é inédito”, comentou Jean. Dada a conservadora configuração parlamentar da atual legislatura, que obstaculiza o avanço de matérias de interesse da população LGBT, a presença no evento, pondera Jean, colabora para ampliação do repertório dos parlamentares que não atuam pela pauta LGBT, bem como para tensionar por avanços na legislação em favor desta popular ação.

Vazio legislativo

Ainda que outras violências se imponham com força à população LGBT, os altos números de atentados à vida da população LGBT implica como reivindicação permanente a criação de uma lei de tipificação de crimes de ódio motivados por discriminação de gênero e orientação sexual.

Após oito anos parado, o PL 122/2006, que definia e punia crimes de natureza homofóbica, de autoria da deputada federal Iara Bernardi (PT-SP), foi arquivado no Senado. Outro projeto, de conteúdo mais abrangente, tramita na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara. De autoria da deputada Maria do Rosário (PT/RS), o PL 7582/2014 define crime de ódio e intolerância e estabelece punições a responsáveis pelos crimes.

Ciente da correlação de forças desfavorável ao avanço de matérias legislativas em favor da diversidade, o presidente da comissão, deputado Paulão (PT/AL), afirma que o PL deve entrar em pauta na próxima sessão ordinária da comissão. “O estado brasileiro ainda não oferece um suporte legal. Vamos trabalhar um consenso. Não é fácil, o parlamento vive um momento de muito conservadorismo”, afirmou o deputado.

Desta forma, as 343 mortes de pessoas LGBT ocorridas em 2016 e levantadas pelo Grupo Gay da Bahia são registradas como crimes com outras motivações, como latrocínio. A dificuldade em punir os responsáveis, acompanhado da ausência de atendimento às vítimas, está expressa em dados conhecidos pelo estado brasileiro. De acordo com relatório do Disque 100, no último ano, apenas 253 dos 2.306 registros de violência recebidos pelo canal governamental de denúncia, ou seja 10,97%, receberam algum tipo de encaminhamento.

Desmonte de política LGBT

Os movimentos e organizações apontam que desde o afastamento da presidenta Dilma Rousseff para sequência ao trâmite de impedimento pelo Congresso, em maio de 2016, a já frágil política dirigida à população LGBT foi ainda mais golpeada. Ainda que o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos, local onde estão lotadas as políticas LGBT, tenha sido recriado por pressão popular, a pasta sofreu significativo corte orçamentário. Por decreto publicado no Diário Oficial da União (DOU), em 23 de julho, 12,9 milhões foram transferidos do ministério para a Presidência da República.

O congelamento dos gastos públicos por 20 anos, com a alteração do orçamento público para políticas como saúde e educação, ação prevista na Emenda Constitucional 95 (anterior PEC 55/241), deve também afetar diretamente a população LGBT. O integrante do Coletivo Arte LGBT, Cleyton Feitosa, afirmou que a medida já em vigência para o ano de 2017 afeta uma das políticas mais incidente nesta população. “Temos a Política Nacional de Saúde Integral da População LGBT que prevê tratamento hormonal, trangenitarização, políticas hiv/aids. Com o congelamento isso vai ser impactado por esses cortes”, destacou.

A exemplo de desmontes de espaços de participação popular como ocorre nos Conselhos Nacionais de Educação e das Cidades, o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT também sofre da ingerência governamental. O canal institucional para proposição e controle das políticas LGBT sofre com a redução de orçamento e deslegitimação funcional. “Nunca fomos recebidos pela Luislinda [ministra dos Direitos Humanos, filiada ao PSDB]. Temos dificuldade para cumprir as cinco reuniões ordinárias. O ministério não ajuda, a impressão que dá é que ele quer nos vencer nos dizendo não, não e não”, denunciou o presidente do conselho, Zezinho do Prado. “Você chega a conclusão que para este governo não interessa a participação da sociedade civil na construção de política pública”, completou.

O recente afago do executivo à bancada religiosa a retirada das expressões “identidade de gênero" e "orientação sexual" da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), no último mês de maio. A ausência dos termos nas competências e os objetivos de aprendizagem dos estudantes a cada etapa da vida escolar implica na invisibilidade dos sujeitos LGBT e suas demandas. “Enquanto a gente faz um movimento para o reconhecimento de direitos da população LGBT pela educação, o estado brasileiro faz outro: o de invisibilizar, de deslegitimar”, destacou a diretora de diversidade da Universidade de Brasília (UnB), Susana Xavier.

LGBT no campo

Para a população LGBT residente nas áreas rurais, ainda perpassam desafios iniciais como o auto- reconhecimento e identificação de espaços de sociabilidade, comuns à população LGBT. Thaís Paz aponta que se impõe, com força, um sentimento de solidão à população. “Muitas pessoas para encontrar seus parceiros precisam ir para a cidade”, afirmou.

A permanência no campo, em contextos de não acolhimento à população LGBT pela família e comunidade, sofre o agravante do avanço da ação do agronegócio, modelo que fragiliza as relações dos pequenos agricultores com a terra. “Para os LGBTs, os laços para se manter no campo são ainda mais frágeis. Por preconceito, os laços familiares são facilmente rompidos e há dificuldade de acesso ao trabalho – as mesmas dificuldades que vivem a população LGBT na cidade, mas com o agravante de que a permanência no campo já é mais frágil por conta da contradição do agronegócio”, disse.

Segundo paz, os coletivos LGBTs estão em fase inicial de estruturação e ainda é necessário construir uma fotografia das demandas desta população no campo.