Alexandre da Maia: O TSE ou o jogo da amarelinha entre medo e desejo

As relações entre medo e desejo costuram possibilidades de compreensão distintas sobre os sentimentos e os pensamentos que tomam forma em nosso sistema psíquico. Buscarei articular essa tensão com a decisão do Tribunal Superior Eleitoral no processo de cassação da chapa Dilma-Temer e refletir sobre o papel do direito num contexto como o nosso.

Por Alexandre da Maia*

TSE julgamento Dilma Temer - TSE

As relações entre medo e desejo costuram possibilidades de compreensão distintas sobre os sentimentos e os pensamentos que tomam forma em nosso sistema psíquico. Há quem defenda a incompatibilidade entre eles. De acordo com essa tese, o medo provocaria repulsa imediata enquanto o seu “oposto” teria o condão de gerar aproximação, mesmo que idealizada, ao que se deseja, traduzida em vontade de experienciar o desejo em sua plenitude.

Por outro lado, é possível compreender o medo e o desejo como facetas nem sempre tão distintas no espaço dos nossos pensamentos; ao contrário, podem ser consideradas como imagens que se mostram diferentes, mas que se coimplicam, em que temos dimensões aparentemente ocultas de desejo quando destacamos o medo e vice-versa. Temos medo (e o desejo) de andar de avião e ao mesmo tempo desejo (e o medo) de viajar, por exemplo. Buscarei articular essa tensão com a decisão do Tribunal Superior Eleitoral no processo de cassação da chapa Dilma-Temer e refletir sobre o papel do direito num contexto como o nosso.

Como não podemos conter por completo os mecanismos de processamento de nossas emoções e da nossa memória, a gente vai se contentando com a velha explicação de que somos “animais racionais”. Esse argumento é central na construção dos modelos de compreensão que recebemos desde o colégio. Eis um lugar-comum transformado em mantra na nossa educação: “o homem é um animal racional”.

Quando o debate da racionalidade humana chega ao direito e às suas pretensões de cientificidade, ele ganha contornos sofisticados e teóricos dos mais variados matizes. Pretendo lançar uma provocação: a partir da decisão do TSE mencionada anteriormente, como é possível processar uma racionalidade do direito em face de tantas interferências de ordens diversas na sua fundamentação?

O direito hoje está situado em uma sociedade muito mais complexa do que suas teorizações, num contexto em que não temos mais mecanismos universalmente válidos para fixar o conteúdo de uma “receita de vida boa” para os seres humanos e que, simultaneamente, a comunicação pode se estabelecer tanto em contextos tradicionais situados em determinados espaços físicos, como comunidades indígenas e quilombolas, quanto por meio da formação de redes em que o elemento espacial ganha outros contornos e representações. Hoje a gente pode construir relações de amizade e intimidade via internet com pessoas que nunca vimos e ao mesmo tempo não falamos com o vizinho de porta no prédio em que moramos.

Relevante pensar o papel do direito nesse contexto, envolvendo as dimensões do medo e do desejo dos discursos de uma ciência jurídica, tais como o desejo de se afirmar como detentora de um papel relevante e fundamental na construção de uma “racionalidade” capaz de dar a última palavra quando as interferências políticas e econômicas ganham na dinâmica social uma proeminência frente às dimensões dos direitos. E o Judiciário seria aquele Um capaz de resguardar, por um caminho metodológico seguro e “racional”, a manutenção do direito e dos direitos.

O problema é que nós, juristas, enfatizamos essa necessidade de racionalidade sem enfrentar a dinâmica concreta das interferências geradas pela política e pela economia. Buscamos construir um discurso de “integridade”, de “patriotismo constitucional”, de “neoconstitucionalismo” que no fundo envolvem olhares normativos sobre a sociedade: ao invés de entender como ela funciona e os possíveis fatores relacionados, buscamos estabelecer como a sociedade “deve ser”, criando regras capazes de construir uma sociedade “livre, justa e igualitária” e outras receitas deslocadas da dinâmica social envolvida na operacionalização desses conceitos.

A ciência jurídica no mais das vezes buscou sedimentar paradigmas de racionalidade a partir de enunciados abstratos que tentavam se encaixar a problemas concretos como verdadeiros leitos de Procusto: desconsiderando os elementos tidos como “excedentes”, como os processos históricos, que entendo fundamentais para compreendermos a dinâmica do direito e da política.

Mas pensar os processos históricos implica entendê-los não como acontecimentos sucessivos e progressivos que nos levarão a alguma forma de redenção, seja pelo fim da história ou pelos conceitos de “progresso”, “ordem” ou quaisquer outros que sejam alheios ao acontecer dos fatos. Se a história fosse necessariamente “ordem e progresso”, a crise de agora não existiria, já que a democracia teria inaugurado um processo de conquistas sociais que jamais poderiam “voltar atrás”, aquilo que na linguagem técnica do direito a gente pode chamar de “proibição do retrocesso”. Mas viver no Brasil de Temer só nos mostra concretamente o oposto: direitos vilipendiados sempre sob o argumento da “necessidade do mercado”, o que transforma os direitos em produtos, em objetos de consumo.

A decisão no direito envolve uma dimensão que mais parece um jogo de amarelinha em que, para além de uma construção pretensamente linear e “íntegra”, os “saltos” de leitura e compreensão para a formação do raciocínio dos Ministros envolvem aquelas dimensões do medo e do desejo quando se evoca, como no caso do TSE, o velho e renovado argumento da “governabilidade” no malabarismo verbal transformado em decisão jurídica e no discurso – sempre envolto em imagens de medo e desejo – da “manutenção da ordem”, que parece formar par com um governo que adota como lema o adágio oitocentista da bandeira brasileira.

Em síntese, o que o TSE fez foi usar medos e desejos para dizer que medos e desejos não cabem na decisão: não é possível “ampliar a causa de pedir” por conta da “razão de Estado”. Para uma resposta possível a esses discursos, evoquemos a epígrafe de O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, escrita por Jacques Vaché em carta a André Breton:

“Nada mata mais o homem
do que a obrigação de representar um país”

*Alexandre da Maia é professor e coordenador do curso de graduação da Faculdade de Direito do Recife – UFPE e professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE.