O vendaval político-jurídico e as contradições na esfera do poder

Os fatos políticos sucedem-se com a rapidez do mundo moderno, freneticamente até. Procurar seguir as notícias, comentando os fatos que relatam, é aliciante mas nem sempre profícuo, havendo que procurar as contradições que as tornam significantes. No vendaval político, por quê o PSDB apoia e desapoia Temer?

Alexandre Weffort*

Temer FHC

A mídia já tornou fato notório o traço contraditório do discurso de FHC em relação a Temer: apoiar ou desapoiar, eis a questão. E, será para onde sopre o vento mais forte, conforme a força dominante for no sentido político ou no judicial.

O dicionário Priberan dá, para o verbo desapoiar, os seguintes significados: "tirar o apoio a…", "desencostar", "não apoiar" e "reprovar". Aqui começam as dificuldades do PSDB. Tem que tirar o apoio a Temer porque o custo político de ficar colado à imagem negativa do presidente ilegítimo pode ser demasiado.

Na verdade, tem que desencostar do PMDB (nomeadamente da parte que o domina e que está ligada a Cunha, a Jucá e a Temer), mesmo sabendo que, com isso pode pôr em questão a agenda de desmonte do estado brasileiro assumida por Temer (e defendida pelo PSDB).

Esse será o custo maior de não apoiar Temer no vendaval da desencadeado pelas delações da JBS. Mas o PSDB terá que fazê-lo também porque a opinião pública desaprova a imagem corrupta que, cada vez mais, envolve Temer e seu governo.

Mesmo assim, criticando até o seu próprio partido (PSDB), FHC procura uma solução airosa, pelo menos na retórica utilizada: “Não havendo aceitação generalizada de sua validade (da autoridade presidencial), ou há um gesto de grandeza por parte de quem legalmente detém o poder pedindo antecipação de eleições gerais, ou o poder se erode de tal forma que as ruas pedirão a ruptura da regra vigente exigindo antecipação do voto” (1).

O comportamento contraditório do PSDB não se prende apenas com a imagem de Temer, mas com o alcance que as investigações judiciais podem ter, a começar com o caso de Aécio e a sua possível prisão a ser decretada pelo STF (todavia, embora os indícios se avolumem, não é líquido que seja esse o desfecho; a justiça tropeça muitas vezes no detalhe processual, podendo depender também do modo como o julgador vê o problema (por vezes, cedendo à sua subjetividade).

Mesmo nesse nível, a questão se apresenta complexa (também para aqueles que ora apoiam, ora desapoiam os políticos abrangidos pela investigação judicial). A pressão midiática (como acontece com a atmosférica) pode determinar o sentido em que sopra o vento político e algum do judicial.

Tem causado até admiração (no sentido da surpresa) o modo como a mídia golpista começou a cercar o ministro do STF Gilmar Mendes, antes apresentado como amigo de Temer e de Aécio. Agora a ênfase é dada aos interstícios econômicos em que a JBS tramava a sua relação com personalidades da elite política (seja porque a família do ministro do STF é fornecedora da JBS, líder da indústria de carnes, seja porque a J&F, dona da JBS, apareceu relacionada com o IDP).

Segundo o Jornal do Brasil, citando informações da Folha de S. Paulo , o "Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), que tem como sócio o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, recebeu do grupo J&F, que controla a JBS, R$ 2,1 milhões em patrocínio para eventos". Segue a notícia indicando que, "por meio da assessoria, Gilmar disse que "não é, nem nunca foi, administrador do IDP. Sendo assim, não há como se manifestar sobre questões relativas à administração do instituto".

No detalhe formal, Gilmar Mendes tem argumentos fortes (está na esfera da sua especialidade, a jurídica), no entanto convirá recordar (e assim o faz a mídia) que, segundo os ns. V e VII do art. 144, CPC/2015, o juiz é impedido de atuar nos processos de jurisdição contenciosa ou voluntária "quando for sócio ou membro de direção ou de administração de pessoa jurídica parte no processo" ou "quando for herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de qualquer das partes".

Gilmar Mendes é sócio do IDP, instituto que surge na qualidade de donatário da J&F. Não será plausível haver, no caso, alguma relação mais significante entre a esfera econômica e a jurídica (isto é, entre o ministro do STF e a J&F, detentora da JBS, delatora de Temer). Daí a surpresa em vermos a mídia golpista (como a Globo) lançar tanta poeira aos ventos. Mas há outros elos a considerar.

As doações ao IDP terão sido utilizadas para o financiamento de eventos como os encontros que foram promovidos em Portugal que, lembrando a notícia de 2016 da BBC Brasil, no qual "foram anunciadas as presenças do senador tucano Aécio Neves e do ex-governador paulista José Serra, também do PSDB, além do [então] vice-presidente Michel Temer, do PMDB (…) e do presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf".

O leque de personagens e instituições referidos mostra, e isso foi sobejamente referido à época, como os encontros promovidos pelo IDP em Portugal serviram de plataforma na articulação que antecedeu o golpe de 2016, de tal forma que o presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, sendo convidado, recusou participar. Na ocasião, considerou-se a delicadeza da situação brasileira, "momento de a elite política lusa observar à distância o que acontece no Brasil", como, segundo a BBC Brasil, indicava Adelino Maltez, jurista português especializado em direito constitucional.

É neste âmbito mais específico que podemos perceber de onde sopram os ventos dominantes no processo político brasileiro atual: a questão constitucional, que opõe o sentido mais progressista da Constituição de 1988, a constituição cidadã, aos caminhos que seguem aqueles que buscam uma alteração nesse âmbito da legislação fundamental (seguindo uma lógica de tipo funcionalista ou neofuncionalista, na senda de David Mitrany), procurando amarrar o Brasil ao projeto globalizante que se instituiu chamar de "governo mundial".

Outro especialista português em direito constitucional, Paulo Ferreira da Cunha, citava num texto com o título "Constituição e Utopia" (2), as palavras do filósofo Agostinho da Silva: “Só se deve cercar o palácio do Poder se houver decisão de o tomar. (…) Se não, é um erro fazê-lo. As coisas voltam-se, depois, contra. Regride-se. Vão dar-se, como consequência, recuos graves para os trabalhadores (…) A democracia pode não resistir ao liberalismo selvagem, à corrupção generalizada, à exclusão massiva, à miséria crescente, à neo-escravatura, ao neocolonialismo, ao neofeudalismo ao neoterrorismo que se perfilam, na fase agora iniciada, no horizonte”.

Palavras que foram ditas em 2001, em relação a Portugal, mas que se podem também aplicar à análise da realidade brasileira atual, dos avanços e recuos na esfera da cidadania, conquistados nas últimas décadas sobretudo pela ação do governo Lula e o seu desmonte atualmente em curso.

Para um entendimento mais profundo do processo político atual – de cariz marcadamente anti-democrático – há que considerar a forma como se correlacionam alguns atores envolvidos no vendaval em curso, tanto na esfera política, como na econômica e na jurídica.

Na perspectiva neofuncionalista de Ernst Hass, "os actores políticos de diferentes comunidades nacionais são levados a reorientar as suas lealdades, as suas aspirações e as suas actividades políticas para um novo centro, cujas instituições possuem…competências que as sobrepõem às dos estados nacionais pré-existentes” (3).

Aquela perspectiva neofuncionalista pode elucidar algumas das contradições vividas no processo de governação seguido na fase anterior (dos governos Lula e Dilma), e o papel desempenhado por personalidades que foram colocadas em postos-chave (como Meirelles, atual ministro da Fazenda, que esteve no Banco Central, com Lula e que hoje assume um papel determinante na orientação política do governo federal com Temer).

Mas, há que considerar também a especificidade da questão do poder no Brasil, nas suas múltiplas dimensões e contradições: do poder federal e na posição deste hoje, que se define como contrária aos interesses nacionais; do poder estadual, onde as oligarquias ainda afirmam o poder tradicional, mas onde despontam projetos de poder genuinamente progressistas (como é o caso do Maranhão e de múltiplas prefeituras desse e de outros estados); do poder popular, expresso na ação consequente dos movimentos sociais (como o MST, que procura construir, na dimensão possível dos assentamentos organizados, as bases de um Brasil socialista) e na mobilização em torno do Plano Popular de Emergência, proposto pela Frente Brasil Popular.

*Alexandre Weffort é professor, mestre em Ciência das Religiões e doutorando em Comunicação e Cultura.

Fontes citadas:
(1) De notícia publicada no site do Diário de Pernambuco, acessado em 16/06/2017.
(2) Agostinho da Silva, apud Paulo Ferreira da Cunha, em Constituição e Utopia e o exemplo da constituição brasileira, texto acessado na internet.
(3) José Serra Pereira, Os 50 anos do Tratado de Roma – Que Futuro para a União Europeia?, Negócios Estrangeiros 12, jan. 2008, pp. 32-48, texto acessado na internet.