A aliança entre EUA e Europa acabou?

 Enquanto a passagem de Donald Trump pelo Oriente Médio e o Vaticano praticamente nada trouxe de novo, de sua passagem pelas reuniões da Otan em Bruxelas e do G-7 em Taormina, na Sicília, pode-se dizer que abalou a ordem mundial.

Por Antonio Luiz M. C. Costa

Trump Macron - Mandel Ngan/AFP

A consequência mais imediata e visível foi o discurso de Angela Merkel no comício de sua coligação em Munique do domingo 28, no qual se referiu às reuniões dos dias anteriores, “os tempos em que podíamos confiar inteiramente em outros ficaram para trás. Foi o que vivi nestes últimos dias. Nós, europeus, precisamos tomar o nosso destino nas próprias mãos, naturalmente em amizade com os americanos, com os britânicos, com outros vizinhos quando possível e também com a Rússia”.

Não foi um deslize por excesso de cerveja, pois no dia seguinte seu ministro das Relações Exteriores, Sigmar Gabriel, criticou as “políticas míopes” dos EUA e na terça-feira a própria Merkel, ao receber o primeiro-ministro indiano Narendra Modi, reiterou a essência do discurso anterior. “A situação atual nos dá mais razões para tomar nosso destino em nossas mãos.

A Europa precisa se tornar um participante ativo das questões internacionais.” A escolha da ocasião também pode ser entendida como um sinal de que a Alemanha buscará fazer acordos com a Ásia emergente sem levar em conta os planos de Washington e Londres.

Se essas palavras têm de ser tomadas ao pé da letra – e Merkel, ao contrário de Trump, não é de exageros retóricos –, trata-se da maior reviravolta geopolítica desde a queda da União Soviética. A União Europeia, ou pelo menos sua nação líder, está conformada com o fim da Aliança Atlântica construída desde o fim da Segunda Guerra Mundial e se prepara para lidar com os EUA e o Reino Unido nos mesmos termos com os quais se relaciona com, digamos, a Rússia.

Trump deu muitos sinais claros de que os EUA não merecem mais a confiança dos europeus, três dos quais foram especialmente importantes. O primeiro foi em Bruxelas, ao inaugurar uma nova sede da Otan e um monumento aos mortos do 11 de setembro de 2001.

Essa foi a única ocasião na história da organização, fundada em 1949, na qual foi invocado o Artigo V e mais fundamental de sua carta, segundo o qual uma agressão externa a qualquer dos integrantes deve ser tratado como um ataque a todos.

Os sócios atenderam à convocação de 2001 e participaram da intervenção ainda não terminada no Afeganistão, na qual quase 3 mil soldados dos países aliados (além de 20 mil estadunidenses e cerca de 80 mil afegãos) perderam a vida até hoje.

Dada a ambivalência das atitudes de Trump em relação à Otan, que declarou “obsoleta” no início de seu governo, os aliados pediram e esperaram de Trump uma reafirmação explícita do compromisso dos EUA com o Artigo V e com sua disposição de devolver o favor e intervir se aliados forem atacados – os países bálticos pela Rússia, digamos. Pois ele se recusou.

Trump deu o segundo sinal decisivo no G-7 ao recusar qualquer compromisso com o até então consensual Acordo de Paris sobre a mudança climática. Deixou claro que pretendia romper com essa pedra fundamental da cooperação internacional no século XXI, da qual só dois países haviam ficado de fora: Síria e Nicarágua.

Na quinta-feira, 1º de junho, confirmou que cancelava a implementação para “renegociar” o acordo. Pelo processo previsto no próprio documento, a retirada só poderia ser anunciada em novembro de 2019 e completada um ano depois, mas Trump pode romper com a Convenção sobre Mudança Climática da ONU e com toda a diplomacia sobre o clima, o que pode ser feito de imediato e completado em um ano.

Com isso, os EUA se afirmam como o grande pirata climático do mundo, enfraquecem a autoridade de outros governos para impor controles a suas empresas e põe o mundo a caminho de uma catástrofe.

Essa decisão atende às bases republicanas, à indústria do carvão e a pequenos e médios produtores de petróleo, mas contraria setores importantes da economia dos EUA, do Vale do Silício e da própria Exxon do secretário de Estado Rex Tillerson.

Trump talvez volte parcialmente atrás, assim como a pressão de empresas e regiões mais ameaçadas por um colapso do Nafta o fez recuar da ruptura pura e simples do acordo com o México e Canadá e autorizar uma renegociação, mas já tomou medidas práticas para abandonar regulamentos ambientais, esvaziar órgãos reguladores e inviabilizar o cumprimento das metas aceitas por Barack Obama, a saber, reduzir emissões em 26%-28% de 2005 a 2025.

Nesse debate, Theresa May desempenhou o papel de escudeira de Trump, ao se esforçar por diluir os regulamentos ambientais europeus e tornar opcionais metas obrigatórias da União Europeia, mesmo se decidiu deixar a organização. Sua atitude reduziu o G-7, outrora G-8, a um G-5.
O terceiro sinal é o completo abandono do discurso humanista em nome do qual América do Norte e Europa reivindicavam o papel de polícia do mundo. Ainda que hipócrita, tinha um valor político e inibia alguns excessos.

Agora Trump elogia o massacre de usuários de drogas e indesejáveis promovido por Rodrigo Duterte nas Filipinas e Tillerson não tem pudor em dizer que direitos humanos não podem ser obstáculo aos interesses econômicos e militares dos EUA nem ser motivo para pressionar países que atendam a esses interesses. Isso tira o chão de toda a retórica usada para unir os aliados ocidentais em ações na Líbia e Síria, por exemplo.

Entre os sinais menores incluem-se a recusa a assumir compromissos com a globalização e o livre-comércio e a conversa em Bruxelas na qual tachou os alemães de “maus, muito maus”, porque, esclareceu depois pelo Twitter, “nós temos um déficit comercial MASSIVO com a Alemanha e eles pagam MUITO MENOS do que devem em relação à Otan e defesa (ênfases dele)”.

Some-se também o aperto de mãos com Emmanuel Macron transformado em uma virtual queda de braço quando o presidente francês se recusou a ser sacudido pelo grosseiro bilionário e o brutal empurrão no primeiro-ministro Milo Dukanovic de Montenegro, país recém-admitido na Otan, para assumir um lugar de destaque para a foto.

Protocolos diplomáticos à parte, o comportamento de macho alfa é particularmente impróprio a quem recusa assumir as responsabilidades de chefe da alcateia. Encabeçar um império é vantajoso, mas exige um mínimo de contrapartidas e de compromisso com a ordem internacional por ele imposta.

Os romanos ofereciam estradas, paz e cidadania aos conquistados e os britânicos comércio, educação e respeito às suas próprias leis, mas Trump quer se livrar de todos os ônus, talvez sem perceber que isso equivale a renunciar à liderança mundial, por mais que aumente o orçamento do Pentágono.

O poder militar é um instrumento de construção e manutenção da hegemonia, não o seu substituto. As legiões não salvaram os romanos do colapso quando os vassalos foram abandonados à própria sorte.

Assim como a Rússia e a China, a Alemanha poderia colher alguns pedaços dessa hegemonia jogada às traças, mas de fato a deseja? Chamar Merkel de “líder do mundo livre” tornou-se popular entre liberais dos EUA desde a eleição de Trump, mas ela e seu país não estão ansiosos pelo papel.

A Alemanha também foge das suas obrigações imperiais, que deveriam incluir um afrouxamento da própria austeridade e flexibilidade ante os sócios endividados para equilibrar as relações dentro da União Europeia, mas prefere proteger seus interesses financeiros e seu superávit comercial. Também não parece ter interesse em criar capacidade militar para fazer frente a eventuais ameaças russas, muito menos intervir em conflitos distantes.

Mesmo a França, aliada mais próxima e influente da Alemanha, não tem segurança ou clareza de até onde pode contar com Berlim para conseguir uma Europa mais unida – e, por isso, o recém-chegado Emmanuel Macron reluta em abrir mão da esperança de cooperação transatlântica.

Entretanto, o problema não é um mandatário incompetente, mas um sistema social e político deteriorado a ponto de pôr no poder um grupo disposto não a reformar o sistema mundial como Obama ou mesmo governá-lo de forma mais autoritária, como foi o caso de Bush filho, mas simplesmente saqueá-lo para proveito próprio e imediato, sem pensar no amanhã.

Um sistema que também não dá sinais de frear, muito menos de reverter as tendências a concentração de renda, polarização e radicalização que o levaram a esse ponto.

Não é Trump, são os EUA que não merecem mais confiança. Na medida em que restar alguma ordem global quanto a política climática e comércio internacional, terá de ser liderada no futuro previsível pela China, justamente a potência que a política de Obama se esforçou por isolar – e, se esta não for capaz de desempenhar esse papel, a civilização moderna não terá futuro algum.

Seria desejável que a União Europeia pudesse oferecer complemento e contrapeso, mas, se continuar a tratar seus próprios problemas internos com a miopia e a mesquinhez que a tem caracterizado desde a crise de 2008, qualquer pretensão a desempenhar um papel nessa escala será fútil e sua própria existência a médio prazo continuará em questão.