“Não se destrói o fascismo com práticas fascistas”, diz pesquisadora 

Sonia Maluf, jornalista e doutora em Antropologia afirma que a melhor resposta ao fascismo é a radicalização na luta pela democracia. 

Professora Sonia Maluf

Por Raul Fitipaldi e Caroline Dall’ Agnol, para Desacato.info.

Nesta semana de turbulências no planalto brasileiro, com marchas específicas no sábado, dia 13, clamando pelo fim do fascismo no Brasil e encerraram nos gritos de Diretas Já desde o sul ao norte do país, o portal Desacato traz a você a entrevista com a jornalista, doutora em Antropologia e professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Sônia W. Maluf, sobre a ascensão do fascismo no Brasil e no mundo.

Segundo a pesquisadora, o fascismo na América Latina tem características que diferenciam do mesmo fenômeno presente na Europa. Além de ser um movimento anticomunista e antissocialista, Maluf destaca pontos centrais que formam as práticas fascistas e salienta que a violência da anulação do outro é o principal objetivo da política fascista.

“O fascismo pensa seus opositores como inimigos a serem eliminados. Então o fascismo constrói um chão político que é oposto à democracia. O chão do fascismo é a eliminação do outro, tanto moral, física ou até mesmo de coletividades inteiras” , afirma.

Leia a entrevista na íntegra

D: Como o fascismo se expressa?

S: O fascismo é um fenômeno que demandou muita literatura. Muitos autores tentaram explicar o fascismo: historiadores, sociólogos, antropólogos, psicólogos. Uma questão que define o fascismo é a presença da massa. A ideia de que é preciso mobilizar uma opinião pública enorme, uma multidão, favorável a determinadas políticas ou determinadas afirmações, verdades. Alguns autores são mais restritos na definição do fascismo dizendo que fascismo é um fenômeno historicamente marcado que existiu na Itália e na Alemanha entre os anos 20 e 40. Outros autores já têm mostrado como o fascismo não é uma excrescência da História do capitalismo mas, de alguma maneira, ele está aí, latente e, em vários momentos da história ele vem à tona, seja na forma de regimes que poderiam ser definidos como fascistas, seja na forma de uma cultura política, práticas políticas.

“Fascismo não é sinônimo de conservadorismo. Há conservadores que não são fascistas e, que inclusive, em muitos momentos, se aliaram a fileiras antifascistas”

 

D: Ser conservador pode ser classificado também como um fascista? O que tem em comum?S: Essa explicação é muito importante. Fascismo não é sinônimo de conservadorismo. Há conservadores que não são fascistas e, que inclusive, em muitos momentos, se aliaram a fileiras antifascistas. O que define fascismo é, em primeiro lugar, a ideia de militarização na política. A política é militarizada em vários sentidos, tanto no sentido da presença de um corpo militar, seja da polícia ou a presença de milícias. A segunda questão é que o fascismo pensa seus opositores como inimigos a serem eliminados. Então o fascismo constrói um chão político que é oposto à democracia. O chão do fascismo é a eliminação do outro, tanto moral, física ou até mesmo de coletividades inteiras. É também um movimento anticomunista, antissocialista.

D: Jurídica também?

S: Sim, jurídica. Aí estamos falando dos instrumentos que o fascismo se utiliza contemporaneamente.

“Uma questão central no fascismo é a propaganda, ou seja, meios de comunicação de massa, a mídia. Eles sempre caminham juntos.”

 

D: No dia 13 de maio tivemos várias mobilizações organizadas em todo o país por meio de marchas antifascistas. Nos últimos dias houve vários atos como o 8M, o 15M, a Greve Geral do dia 28 de abril. Quais são os pontos de conexão entre essas mobilizações?

S: O próprio Brasil. O contexto histórico que estamos vivendo nesse último ano e meio e, o fato de que, de alguma maneira, se criou um caos de cultura, uma cultura política no Brasil. E aí eu ressalto uma questão central no fascismo que é a propaganda, ou seja, meios de comunicação de massa, a mídia. Eles sempre caminham juntos. O fascismo sempre instrumentaliza esses meios, seja por meio do cinema, das grandes passeatas fascistas lá dos anos 20, 30 e 40, até hoje, quando chegamos nos meios de comunicação que nós temos e como eles acabam sendo um veículo de propagação dessa cultura do ódio, dessa política do ódio. Então, dessa maneira nós vivemos hoje no Brasil uma situação político-institucional pós golpe, esse mesmo golpe que vem se consolidando por meio do ataque frontal aos direitos – reforma trabalhista, reforma da previdência, terceirizações – com um discurso que sustenta isso, um discurso que recorre a tradição, uma tradição inventada. O fascismo sempre inventa a sua própria tradição e aí entra as questões de gênero, questões de sexualidade e, junto com isso, todo um aparato do estado, incluindo a questão policial quanto o campo jurídico, que acabam de certa maneira protegendo algumas figuras centrais dessa propagação.

“A transfobia e a homofobia são pontos muito forte dentro do fascismo. Não que toda a homofobia seja fascista, mas ela se torna fascista quando ela vira um discurso público legitimado pelas instituição, inclusive, do próprio estado.”

 

D: Quais são as características do fascismo?

S: Talvez a gente possa dizer que aqui no Brasil a questão da xenofobia não apareceria tão fortemente quanto na Europa com a questão da imigração, porém, aparece sim. Nós sabemos de vários casos, tanto em Florianópolis como em outros lugares, de atos violentos contra imigrantes haitianos, senegaleses. A xenofobia é uma característica do fascismo assim como outras formas de preconceito que atacam a esses “outros”. A transfobia e a homofobia são pontos muito forte dentro do fascismo. Não que toda a homofobia seja fascista, mas ela se torna fascista quando ela vira um discurso público legitimado pelas instituição, inclusive, do próprio estado. E junto com isso eu ainda acrescentaria a misoginia. Hoje, existe uma cultura do estupro que é disseminada e é, de alguma maneira, acobertada e legitimada também pelas instituições. Vou dar um exemplo: a recente condenação da ex-ministra de Política para as Mulheres, Eleonora Menicucci. Ela foi condenada porque denunciou um discurso de apologia do estupro feito pelo ator Alexandre Frota. Um exemplo claro de misoginia.

D: Muito se falou, nesses últimos dias, sobre a capa da Veja com a ex-primeira dama, dona Marisa Letícia, e sobre a propaganda violenta e oportunista das lojas Marisa. Isso também se classifica como fascismo?

S: Tem um viés fascista muito forte.

D: Por quê?

S: Porque é a desconstrução do outro. É aquela coisa, pegar o outro como bode expiatório dos males do país. Você pega uma figura pública ou não, e você transforma essa figura em um grande inimigo do país. Não é uma questão política de discussão política de divergências, mas sim, você constrói uma unidade que tem como um único objetivo: destruir o outro. Esse outro pode ser uma pessoa, um partido, ele pode ser a esquerda inteira, pode ser uma etnia.

D: A revista Veja faz isso corriqueiramente. Já fez com o Lula, com o Stédile. Ela coloca a figura e a demoniza. Isso são práticas de um jornalismo fascista?

S: Eu considero isso jornalismo fascista, de propaganda fascista. Na verdade não dá nem para dizer que isso é jornalismo, porque a Veja é um veículo de propaganda da extrema direita hoje no Brasil.

D: Qual a diferença do fascismo europeu para o fascismo presente aqui no Brasil?

S: O que diferencia o fascismo contemporâneo do fascismo que nós vemos na Europa, é que no Brasil o fascismo acabou se tornando um instrumento do capital e do grande empresariado. Hoje, quem deu o golpe, quem está querendo tirar os direitos se utiliza do fascismo como um instrumento político.

D: Na Universidade Federal de Santa Catarina tem apresentado um cenário de acontecimentos fascistas. Aconteceu com representantes do movimento negro, jovens do MBL (Movimento Brasil Livre) atacando outros estudantes. Qual é a sua análise?

S: Tem se mostrado um cenário muito difícil, muito sério e preocupante. Nós temos grupos organizados dentro da UFSC ligados ao MBL e a outros movimentos e que tem atuado de maneira extremamente agressiva. Por exemplo, no período das ocupações dos estudantes, no ano passado, eles chegaram a invadir uma das ocupações carregando armas brancas. Um aluno chegou a ir com um taser e uma adaga em uma assembleia da universidade, fazendo ameaças. Há sim, movimentos organizados dentro da UFSC que, fomentados por todo o tipo de incentivo, que inclusive eu desconheço, e que tem uma atuação forte. Outro exemplo foi na posse do atual reitor, eles estiveram lá e lançaram uma faixa com os dizeres “tchau queridas” referindo-se as duas ex-reitoras e tem uma atuação extremamente misógina. Atacam as mulheres, atacam ao movimento negro. Teve um evento no Restaurante Universitário em que jogaram água em uma jovem negra que fazia uma performance política no local. É lamentável que hoje, dentro da Universidade Federal tenhamos, sim, práticas fascistas.

D: Por que o movimento fascista tem crescido e conquistado mais adeptos?

S: É difícil achar apenas uma explicação. Eu sou muito favorável a pensar nos movimentos como ações complexas. Então você tem fatores históricos que estão relacionados à crise econômica, o aumento do desemprego na Europa e no mundo inteiro e sempre se busca um bode expiatório: o culpado pelo desemprego, o culpado da crise. Mas há também fatores ligados a forma como as elites econômicas se comportam, como elas buscam sempre renovar suas formas de domínio político e econômico e, quando é preciso cortar direitos, nunca é possível cortá-los em regimes democráticos.

D: Isso vem acompanho de outros elementos, Escola Sem Partido é um deles?

S: Faz parte do movimento. A Escola Sem Partido é um movimento que tem o fascismo na sua alma. Porque um dos métodos é o assédio aos professores, é permitir e incentivar às pessoas, em sala de aula, atacaram os professores em pleno exercício de sua função.

D: Quem comporta a base do fascismo?

S: A base do fascismo, historicamente, é composta por uma classe média. Mas claro, com o crescimento da disseminação da propaganda fascista acaba atingindo setores dos trabalhadores, setores do proletariado. Mas quando dizem que a primeira aliança dos fascistas é com os proletários, não! A primeira aliança do fascismo é com o capital. Com o grande empresariado.

D: Essa é a classe média que se sente seduzida por Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro.

S: Exatamente. Uma classe média que não quer se identificar com uma classe trabalhadora em ascensão, que esteve até um determinado momento. É como dizia uma escritora que eu admiro muito, Eglê Malheiros, “a classe média sempre se colocou contra a reforma agrária porque sonha que um dia vai ser latifundiária”

“Quando as pessoas comentam a “ponte para o futuro” de Temer sabem que jamais o programa seria eleito em uma eleição, ela só pode se realizar num governo golpista, em um governo que golpeou a democracia.”

D: O fascismo tem tomado força pelo mundo afora. Podemos ver a truculência no atos que aos poucos vai exterminando a população palestina e tanto outros casos de violência em diversos países. O que está acontecendo com o mundo, o que está acontecendo com as pessoas que escolheram um Dolnald Trump?

S: Parece até que o fascismo é cíclico e mundial. Porque quando o fascismo cresceu na Itália e na Alemanha ele não ficou restrito apenas nesses países. Nós tivemos movimentos de apoio em países na América Latina, em outros lugares de maneira mais forte. Nós vivemos hoje uma grande crise do capitalismo, uma crise que envolve questões não só europeias, questões de uma nova pauta do fundo monetário internacional, não só para países em crise na Europa como a Grécia, Espanha, Portugal, mas que chega na América Latina com uma pauta que só é possível implementar em um regime não democrático. Quando as pessoas comentam a “ponte para o futuro” de Temer sabem que jamais o programa seria eleito em uma eleição, ela só pode se realizar num governo golpista, em um governo que golpeou a democracia. Então eu penso que há sim, uma questão mundial do fascismo ligada a crise do capitalismo e aos modos como as elites buscam responder politicamente essa crise, conter a democracia com o sentido de aplicar a sua pauta.

D: O cerne do fascismo é a desumanização da sociedade?

S: Quando a gente pensa que a cultura política fascista se dissemina e pode chegar a todos nós, a qualquer cidadão comum, que pode adotar práticas fascistas da noite para o dia, perseguir pessoas, eu acho que a grande tarefa nossa é pensar que não há reciprocidade ética com o fascismo. O fascismo ele não pode ser respondido, ele não pode ser atacado com práticas fascistas. A gente responde ao fascismo radicalizando a luta pela democracia, ocupando praça pública, construindo espaços de conversa e de diálogo e, denunciando toda e qualquer prática, seja ela estatal, individual ou coletiva que desumanize o outro e que retire do outro a possibilidade de existência.

Foto: Rosangela Bion de Assis