A corrupção como forma ideológica e violência contra o povo

Acompanhamos o desenvolvimento da situação brasileira com os dados da mídia (mesmo daquela que, comprometida com o golpe e o governo do ilegítimo, procura filtrar para dar apenas o lado da realidade que lhes apraz). No meio das manipulações, cosméticas de imagem e mentiras descaradas, a mídia passa de quando em vez dados que nos permitem fazer uma leitura mais completa de uma realidade em convulsão, com as suas contradições essenciais cada vez mais à vista.

Por Alexandre Weffort

Temer pronunciamento - Fotos Públicas/TV NBr

Já referia G. Lukács, em 1921, que "as próprias condições indispensáveis à afirmação dos interesses de classe são, com frequência, criadas por intermédio da violência mais brutal (por exemplo, a acumulação primitiva de capital); em segundo lugar, é exatamente nas questões da violência, nas situações em que as classes se enfrentam na luta pela existência, que os problemas da consciência de classe constituem os momentos finalmente decisivos" (1).

Assim, vimos Temer enredado na teia produzida pela J&F (os donos da JBS), como vimos Aécio caindo (e a mídia desmascarando o carácter falho do antigo candidato do PSDB). O trecho da conversa publicada pela Globo é elucidativo:

"Se for você a pegar em mãos, vou eu mesmo entregar. Mas, se você mandar alguém de sua confiança, mando alguém da minha confiança — propôs Joesley.

— Tem que ser um que a gente mata ele antes de fazer delação. Vai ser o Fred com um cara seu (…) respondeu Aécio" (2). O tal Fred era, afinal, primo dele.

A gravação registra o diálogo havido na sua crueza. E põe em evidência a baixa moral do sujeito – baixa, sem dúvida, mas mesmo assim, moral. Essa é uma questão a reter: a moral do bandido choca com a moral social, mas continua a existir enquanto problema da esfera da ética, porque é o código de conduta de certos estamentos da sociedade.

No mesmo momento, somos confrontados com o relato da morte de dez camponeses no Pará, chacinados. A estas mortes juntam-se as nove mortes ocorridas em Abril, em Mato Grosso (3). O conflito exprime a violência da contradição entre o uso legítimo da terra, concebido como bem social colectivo, recurso vital para largas camadas de camponeses, ou como posse só para alguns, que a deixam sem uso ou a destinam ao agronegócio. O combate pela Reforma Agrária é também um combate pela vida (tanto ao nível do indivíduo como da sociedade), que se exprime em números dramáticos que, só em 2016 representou 61 mortes e que em 2017 já contabiliza mais 36 (4).

A violência patente no conflito social que se desencadeia contra a Reforma Agrária não é alheia à violência que a (baixa, mas mesmo assim) moral que é evidenciada por Aécio no seu diálogo com o dono de uma das empresas maiores do Brasil, com interesses no agronegócio. O crime do jagunço a mando do proprietário rural, matando camponeses, é equivalente ao que faz o bandido quando diz: "… a gente mata …". A linguagem é comum aos dois: da força bruta, animalesca.

O interlocutor de Aécio, nas gravações já homologadas pelo STF, também conversou com Temer. E, perante a pressão popular, a escolha de Temer foi óbvia: não tendo capacidade de resposta política, recorreu à força. À força efetiva da repressão e à força simbólica da farda militar. E, embora a instituição militar não o tenha acompanhado nesse passo,

produzindo discurso bem mais cordato, o elemento simbólico conta (e, nisso, Temer será lembrado, como aquele que teve o despudor de recorrer à ameaça da repressão militar).

Num Brasil que ainda tem vivas marcas da época da ditadura, que ainda não enfrentou cabalmente o problema ético que a história legou, do golpe militar, da tortura, das perseguições, das mortes, nem da conivência que alguns tiveram, do papel concreto desempenhado pelos detentores do poder económico ou da mídia repisadamente golpista, é nesse quadro que Temer recorre, abusivamente, às Forças Armadas.

É a face moral que irmana os protagonistas aqui referidos. Trata-se da violência que radica nos interesses económicos, na moral de classe (da classe dominante). É a esses interesses que se opõem os interesses da maioria do povo brasileiro. E, à baixa moral, expressa em palavras por Aécio e secundadas em gesto político por Temer, terá que opor-se uma moral radicada na noção de cidadania, na ética do bem comum,

Sabendo que o modus operandi das classes dominantes, dos que hoje detêm o poder no Brasil, é por natureza violento, a ação popular que se opõe a essa dominação requer um nível de organização e de consciência à altura do momento, capaz de interpretar, nas condições concretas, os anseios da maioria da sociedade, não se quedando pela expressão filtrada dos atores políticos (sem contudo os ignorar, procurando envolvê-los num projeto realista de âmbito nacional de comprometimento com os movimentos populares e de rejeição das políticas golpistas).

A contradição, nesta fase, consiste na necessidade objetiva de se promover uma "uma recomposição política, diante da crise e da profunda perda de credibilidade do sistema político" (5), recomposição que implica a capacidade de diálogo entre forças de campos políticos afastados, mas que somente alcançará legitimidade através das urnas, de eleições diretas, todavia cientes que, como assinala Flávio Dino, "só haverá eleição direta havendo mobilização popular nessa direção" (5).

A questão mobilização popular ou do engajamento individual (como sugere Flávio Dino na entrevista publicada pela BBC/Brasil, em relação a FHC e Lula) apresenta dimensões que podem ser vistas em termos da sua relação com a consciência de classe. A mobilização popular não se confunde, porque mais estruturada e estruturante, com a mobilização da opinião pública.

Retornando ao texto citado a início, de Lukács: "Engels parte do seguinte ponto: embora consista, a essência da história, em que "nada se produz sem desígnio consciente, sem fiz desejado", a compreensão da história exige que se vá mais longe. De um lado, porque "as numerosas vontades individuais em ação na história produzem, na maioria das vezes, resultados inteiramente diferentes dos resultados desejados, e frequentemente opostos a esses resultados desejados, , e que, por conseguinte, os seus móveis, igualmente, não tem mais do que uma importância secundaria para o conjunto do resultado" (1).

Daí que a consigna pelas "Diretas Já!", mesmo sabendo das dificuldades que enfrentará para conseguir impor-se perante a hegemonia atual da classe dominante no Congresso, é aquela que afirma de forma mais coerente o princípio da participação popular no processo político – de uma participação que tem origem nos movimentos sociais – e que, por isso mesmo, oferece maior garantia de contribuir para a superação da fase crítica em que o Brasil se encontra.