Juan Rulfo, 100 anos: uma memória fantasma

Nesta terça-feira (16), Juan Rulfo completaria 100 anos, trazemos um conto inédito do escritor contemporâneo Juan Pablo Villalobos (prêmio Herralde de Literatura) sobre a memória do autor de Pedro Páramo.

Juan Rulfo - Divulgação

Leia na íntegra:

Memória fantasma

Em janeiro de 2005, enquanto cursava o doutorado na Universidade Autônoma de Barcelona, conheci a Andreia, agora mãe dos meus filhos. Como éramos pessoas de letras (creio que continuamos sendo), o ritual de nossas trocas afetivas incluía livros. Uma madrugada, bem no começo da relação, falando de literatura, prometemos nos presentear com nosso livro favorito. Ela, que é brasileira, me deu Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, na edição de bolso da Alianza. Eu lhe dei Pedro Páramo, também de bolso, de uma coleção da Anagrama, que nunca havia visto antes no México (nossas bolsas não alcançavam grandes luxos bibliográficos).

Não percebemos como sinal de mau agouro o fato de que ambos havíamos escolhidos livros sobre o além-túmulo. No fim das contas, eram apenas clássicos. Nem chegavam a ser nossos livros favoritos e, sim, uma maneira de alardear a potência de nossas respectivas tradições literárias. Como se não fosse pouco, havíamos nos conhecido em um seminário sobre literatura do Holocausto. Mais romântico, impossível.

Por volta daquela época havia me inscrito em outro seminário na universidade, chamado Dante e a pós-modernidade. A ideia era rastrear a influência de A divina comédia na literatura, no cinema, no teatro e na arte do século 20. Não tinha muito a ver com meu projeto de tese sobre escritores excêntricos latino-americanos; mas também não precisava ter. Eu precisava somar créditos, e os seminários eram a maneira mais rápida de conseguir isso (precisava apenas estar presente às aulas e escrever um ensaio). Tendo relido recentemente Pedro Páramo com Andreia, para sussurrar ao seu ouvido notas de pé de página, o tema me resultou óbvio. O título do meu trabalho Pedro Páramo e A divina comédia: duas versões da escatologia.

Estávamos, como já disse, em 2005 e eram lembrados os 50 anos de publicação de Pedro Páramo. Havia, como era de se esperar, uma avalanche de artigos que, ou insistiam nas mesmas leituras de sempre (a exegese do status animarum post mortem) ou se esforçavam em propor interpretações inéditas da novela (falhando, na maioria das vezes). Ao mergulhar na internet para a pesquisa, quase me afogo e me arrependo de cara. No entanto, não podia voltar atrás, porque de uma maneira bastante irresponsável havia comunicado ao professor o tema do meu ensaio antes de começar a pesquisar.

Ao me encher de documentos para a escrita, como um caçador em busca de material para engordar meu ensaio, descobri que Carlos Fuentes defendia a conexão entre A divina comédia e Pedro Páramo e que Carlos Monsiváis a negava, argumentando que era uma estratégia da “ignorância ilustrada” para tirar o caráter social da novela, para reduzi-la à esfera do mítico. Nas entrelinhas: uma apropriação do neoliberalismo. “Tudo é mítico”, escreve Monsiváis, “o que ao pé da letra quer dizer: incompreensível, distante, selado”.

Com bastante surpresa, tive de encarar a difícil realidade: se queria escrever o ensaio (e obter os créditos), teria de me colocar ao lado de Carlos Fuentes.

“É como se, para Rulfo, Cristo não tivesse ressuscitado”, escrevi naquele ensaio, “o que lembra a admoestação de São Paulo aos incrédulos: se Cristo não ressuscitou, nossa fé é vã e estamos vivendo em pecado (1 Co, 15-17). Os personagens de Pedro Páramo realizam uma interpretação negativa da escatologia cristã: Cristo havia sofrido um martírio sem sentido, sem salvação, sem ressurreição”.

Entreguei o ensaio e consegui a nota sem que o professor fizesse maiores comentários (uma prática comum da mediocridade das universidades espanholas). Esqueci o ensaio. Esqueci Rulfo. Andreia engravidou. Abandonei o doutorado (a bolsa acabava e eu precisava de trabalho). Nasceu Mateo em setembro de 2006. Escrevi uma novela, Festa no covil, que só consegui publicar em 2010. A novela foi traduzida para o francês e Dominique Deruelle, um professor aposentado de Saint-Étienne, me convidou para o Letras Latinas, o festival de latino-americano de Lyon. Era novembro de 2012.

II

– Martín Acuña de la Torre morreu – disse-me André Feraud, da Universidade de Stendhal de Grenoble, em meia a um dos jantares do festival.

A princípio, distraído pela perícia que me exigiam a pinça e o garfo para comer os escargots, não prestei muita atenção. Como o nome não me dizia nada, pensei que o comentário não havia sido dirigido a mim, mas a algum dos outros comensais.

– Martín Acuña de la Torre – insistiu André, e desta vez tirei o olhar do prato e percebi que examinava minha torpeza manual –, o grande rulfista paraguaio.

Me apressei a meter na boca o escargot que havia pescado, ao mesmo tempo em que ensaiava uma feição de pesar incerta, protocolar. Confesso que também me abateu um rápido cansaço em confirmar, uma vez mais, que, por haver nascido em Jalisco, estava condenado a ser um escritor da terra de Juan Rulfo.

– Ele morreu aqui, na França – seguiu André –, onde passou a viver desde que se aposentou da Universidade de Indiana.

Nessa hora, algo ecoou em minha memória, talvez a menção à universidade norte-americana: eu havia citado profusamente Martín Acuña de la Torre no meu ensaio sobre Rulfo e Dante. Uma de suas ideias, sobre o tempo além-túmulo, e sua noção de diferença entre o que para Rulfo é filosófico, e o que para Dante é questão moral, foram as bases da escrita daquele ensaio. Transcrevo agora um fragmento: “As in Dante, the pained shades of Rulfo have a kind of ghostly body, a phantom appearence, and they talk, they move, they complain, they grieve, and, deprived of any possibility of change, incapable of bettering their condition in any way, they find themselves outside of time”.

Imagine então uma história triste e estereotipada: a do acadêmico latino-americano que, depois de viver um longo tempo nos Estados Unidos, volta a seu país e tenta se reintegrar. A história do expatriado que perde seu lugar no mundo e, velho e cansado, elege um novo lugar, distante, para morrer. André interrompe meu devaneio melodramático:

– Ele foi assassinado, dizem que foi morte natural, mas eu sei que foi assassinado.

Coloquei de lado o enorme garfo com que perseguia os escargots no prato. Ergui a taça de vinho e, lentamente, dei um trago. Olhei os outros escritores na mesa (Alejandro Zambra, Alberto Barrera, Guillermo Fadanelli), absortos numa conversa paralela com Dominique Deruelle e com o diretor do festival, Alonso Morales. Para seguir a lógica do diálogo, faltava perguntar como sabia que havia sido um assassinato, e a curiosidade, fulminante, me golpeava, mas eu intuía que fazer a pergunta seria um caminho sem volta. André resolveu meu dilema respondendo à pergunta sem que eu precisasse formulá-la:

– Ele próprio me disse. Falo com ele todas as noites.

André Feraud tinha cerca de 60 anos e era também um rulfista de carreira. Não era dos mais notórios ou famosos, talvez porque havia se dedicado aos estudos comparativos entre vários escritores telúricos e a obra de Rulfo: Jorge de Icaza, Ciro Alegría, Manuel Scorza. Nos meios acadêmicos mexicanos, era mais conhecido por ser um dos poucos que reivindicavam um lugar fundamental que deveria ocupar um livro de contos esquecidos, Trópico, de Rafael Bernal, dentro da tradição da narrativa indigenista e da terra. Era considerado um acadêmico menor, por conta de um julgamento arbitrário baseado num ditado popular: aquele que muito quer saber de tudo, acaba não sabendo de nada [nota 1].

Quando os garçons retiraram os nossos pratos com as conchas vazias de escargots, e com as minhas ainda pela metade, vi que Dominique se levantava para ir ao banheiro e me apressei em segui-lo.

– Que figura André Feraud, não? – disse a Dominique, enquanto urinávamos, um ao lado do outro, nos mictórios.

– Um pouco excêntrico, sim – respondeu Dominique.

Terminamos de urinar em silêncio. Fiquei pensando se deveria compartilhar com Dominique o que André acabara de me contar, ao menos para fazê-lo cúmplice do incômodo quando retornássemos à mesa.

– André me contou que – comecei a dizer enquanto lavávamos as mãos.

– Que ficou muito afetado pela morte de Martín – interrompeu-me Dominique –, eles eram muito amigos, levaram anos trabalhando em um livro sobre Rulfo, que pensavam em publicar no ano do centenário.

– Que centenário? – Perguntei confuso, naquele 2012.

– Em 2017 – respondeu Dominique –, dentro de cinco anos é o centenário de Rulfo.

– De que morreu Martín?

– Sempre teve problemas com a bebida, passou um tempo muito deprimido.

Ele enxugou as mãos e saiu do banheiro sem acabar de me responder.

Ao retornar à mesa, consegui me integrar num papo sobre futebol com Alejandro Zambra e Alonso Morales, que especulavam sobre a demissão do treinador da seleção chilena, nessa mesma noite, após perder de 3 a 1 para a Sérvia. Fingi ignorar André durante o resto do jantar, mas, na verdade, estava atento à sua maneira de se comportar. Isolado das conversas ao seu redor, permaneceu calado, taciturno, vagamente triste, era possível notar, talvez estivesse paulatinamente mais e mais bêbado. Eu estava morto de fome, porque entre os malfadados escargots e uma raquítica porção de costelinha de cordeiro (literalmente “costelinhas”), era como se eu não tivesse jantado. O vinho, esse sim em quantidades generosas, estava fazendo seu efeito. E logo chegou o detalhe tóxico: o carrinho de queijos, esses queijos podres, maravilhosos, que são verdadeiras drogas que abrem as portas da percepção de múltiplos delírios gástricos.

Fizemos o caminho de volta ao hotel onde todos nos hospedávamos e o torpor que me dominava enalteceu, tontamente, minha empatia. Aproximei-me de André, que tropeçava, e tomei-o pelo braço como se fosse meu pai. Misturava frases em francês, que meu medíocre domínio da língua me impediu de entender. Ao chegar ao hotel, Dominique pediu que garantisse que André chegaria bem ao seu quarto.

Entramos todos no elevador ao mesmo tempo e eu fui com André até o segundo andar. Atravessamos o salão, deixei-o no seu quarto e, enquanto me despedia, André falou.

– Tenho um conhaque muito bom – disse já com a língua enrolada –, vamos tomar um último trago antes de dormir.

Foi quando me dei conta de que sua bebedeira já havia alcançado o nível da impertinência e o melhor seria seguir o fluxo das coisas para evitar um escândalo e escapar para meu quarto assim que pudesse.

André serviu dois copos de conhaque de uma garrafa que tirou da mala. Deu-,me um e se deixou cair na única poltrona do quarto. Sentei-me na beira da cama e comecei a fingir que dava uns goles na bebida, temendo a ressaca do dia seguinte, quando teria de pegar o avião de volta pra casa.

– Agora, vem – disse André de supetão.

– Quem? – perguntei, receoso, vigiando a porta de entrada, que era também a minha rota de fuga.

– Martín – respondeu André –, temos que terminar o livro.

A bebedeira me fez temer que, em algum momento, realmente, pudesse aparecer o fantasma de Martín, representado da forma como o havia descrito no ensaio sobre Rulfo e Dante: “a ghostly body, a phantom appearance”.

– “Quem matou Martín?” – perguntei, de forma absurda, e de fato pude perceber que aqueles queijos eram mesmo alucinógenos.

– Quem matou Martín? – repetiu André –, quem matou Martín?

Ele se serviu de um segundo copo de conhaque e me ofereceu a garrafa, o que recusei com um gesto de prudência.

– Martín gostou muito do seu ensaio – disse André esvaziando o copo com um gole –, essa leitura herege o animou, essa conexão satânica com Pedro Páramo é muito interessante.

Mentiria, se dissesse que minha bebedeira se foi de repente com a surpresa, isso nunca me acontece. A surpresa, de fato, se somava à confusão que tomava conta da minha cabeça. Como Martín Acuña de la Torre havia lido meu ensaio, se eu nunca o havia publicado? Coloquei-me de pé disposto a fugir como se tivesse acabado de descobrir uma trama de conspiração que pretendia me agarrar. Mas a curiosidade foi maior que a cautela.

– Como ele pode ter lido meu ensaio? – perguntei –, era um simples trabalho de sala de aula, apenas o escrevi para somar os créditos do doutorado.

– Nós, os rulfistas, estamos a par de tudo – respondeu –, ele o leu numa revista da Universidade Veracruzana, não me lembro bem o nome, estou um pouco bêbado.

A teoria conspiratória se desmontou porque acabei entendendo a lógica da narrativa: eu havia enviado todos os ensaios que escrevi durante o doutorado para Teresa García Díaz, a orientadora com quem havia trabalhado como seu bolsista na Instituto de Investigações Linguístico-Literárias da Universidade Veracruzana e lhe havia pedido que tentasse publicá-los. Mas logo acabamos perdendo contato, já que eu havia abandonado minhas pretensões acadêmicas.

– Em La palavra y el hombre? – perguntei.

– Isso, isso – respondeu.

E acabou dormindo. Fiquei em dúvida se deveria colocá-lo na cama antes de sair. Me aproximei do criado-mudo para deixar seu copo e acabei vendo o manuscrito.

A bem da verdade, o livro de Martín e de André não era sobre Rulfo. Era sobre os rulfistas. Era um retrato implacável, uma verdadeira vaia, sobre o mundo acadêmico. Estava escrito em espanhol desigual (se notava a diferença entre os países escritos, entre o espanhol nativo de Martín e o espanhol escolar de André), que exigia uma revisão de estilo profunda e que talvez tivesse um “defeito” que o fizesse parecer um livro de Roberto Bolaño. Mas isso não é necessariamente um defeito: às vezes alguém tenta contar a verdade e acaba parecendo com algo que Bolaño escreveu.

Havia especulações deliciosas sobre as origens dos fundos que financiavam as várias investigações rulfianas. Essas, sim, verdadeiras teorias da conspiração que incluem universidades europeias e norte-americanas, obscuras dependências governamentais do México, Estados Unidos e União Soviética, editoras das Bahamas, revistas impressas em Liechtenstein. Havia um capítulo sobre um congresso em Bratislava, nos anos 1990, dedicado exclusivamente a determinar quem dormia com quem no mundo dos rulfistas, que mais parecia um clube de swingers. E outro que sugeria que havia uma relação entre os lugares onde havia maior concentração de rulfistas e o fluxo de maior investimento estrangeiro no México. O livro acusava também, reiteradamente, de serem os tradutores de Rulfo espiões a serviço do imperialismo.

No último capítulo, intitulado Rulfo e Satanás, era citado meu ensaio. E era justamente aí onde Martín e André haviam levado seu delírio ao limite: descreviam os fundamentos teológicos de uma seita inspirada pela escatologia de Pedro Páramo. Havia rituais. Entre eles, sacrifícios humanos em que se prometia ao sacrificado que sua alma habitaria Comala.

Tive uma crise de riso, não sei se de nervoso ou por achar tudo aquilo engraçado, ou a bebedeira havia me deixado confuso. Mas o tema do último capítulo me impôs um respeito macabro, que me levou a abandonar o quarto de André de uma vez por todas. Tentei dormir e acabei tendo pesadelos o resto da noite.

Voltei para casa. Esqueci André e Martín, talvez ocasionalmente eles aparecessem em meus pesadelos. Esqueci também Rulfo (um escritor de Jalisco precisa esquecer Rulfo, se quer escrever alguma coisa). Em 2014, minha segunda novela foi publicada na França e então reapareceu Dominique que, por e-mail, me perguntou se estaria disponível para ir de novo ao festival. Dessa vez, as datas não me eram favoráveis, e acabei não indo, mas aproveitei para perguntar a Dominique como estava André Feraud, “nosso amigo excêntrico”. “Oh”, Dominique me escreveu, “pensei que você já sabia. André morreu ano passado.”. Respondi ao e-mail lamentando a notícia e perguntando se André havia conseguido terminar o livro que havia começado a escrever com Martín sobre Rulfo, se ele havia conseguido publicá-lo. “Não existe tal livro”, me respondeu, “falava muito desse livro, mas não havia nada. Nada foi encontrado entre suas coisas e, como você sabe, ele gostava muito de beber”.

Eu sabia que estava sendo impertinente, mas, depois de dois ou três dias com uma dúvida que não me largava, decidi perguntar como havia morrido André. Dominique me respondeu numa só linha, concisa, dura, no último e-mail dessa série: “Ele tirou a própria vida”.

Na sexta-feira, 13 de novembro de 2015, regressei a Lyon, para participar outra vez do festival. Dessa vez, estava acompanhado de Andreia e dos nossos dois filhos, planejávamos aproveitar o fim de semana para passear na região. A má sorte quis que o trem em que viajávamos desde Barcelona tivesse um problema técnico e tive de acabar por cancelar meu primeiro compromisso. Chegamos em cima da hora a fim de partirmos para Saint-Étienne para uma fala na biblioteca municipal. Dominique iria mediar a mesa.

Ao finalizar tivemos correr à estação para tomar o último trem que nos levaria a Lyon. Não tive tempo praticamente de falar com Dominique e, ao chegarmos em Lyon, tivemos a notícia do atentado terrorista a Paris, que aconteceu no meio de nossas férias em família e minhas participações de segunda e terça no festival acabaram sendo canceladas.

Diante do ambiente rarefeito na cidade, de súbito repleta de policiais, Andreia e eu decidimos ficar em Lyon até o domingo e depois voltar para Barcelona. No sábado, levamos as crianças ao Parc de la Tête D’Or, que tem um maravilhoso zoológico com espécimes raras. Estávamos percorrendo a seção dos macacos, quando um tipo se aproxima de mim e começa a falar:

– Você que é Villalobos, não?

Não respondi nada, mas o encarei com desconfiança. Devia ter uns 40 anos e tinha aparência de latino-americano, de um tipo que mudara seu estilo na Europa, mas não suas feições. Andreia e as crianças não haviam percebido nada e caminhavam para a jaula seguinte.

– Eu o vi há um par de anos no Festival de Letras Latinas – disse e pude identificar um sotaque mexicano – foi há dois anos, na Ópera Fadanelli.

– Foi há três – lhe respondi, admirado pela coincidência –, foi em 2012.

Contou-me que era de Guadalajara e que fazia um doutorado em Grenoble, mas que sempre que podia fugia para Lyon, que agora tinha uma noiva francesa que vivia em Lyon e acabava passando mais tempo lá que na universidade. Acabamos por ficar em silêncio e, no lugar de me despedir, para não parecer grosseiro, disse uma dessas frases vazias de cortesia (sempre tenho medo de parecer grosseiro, de que pensem que sou arrogante).

– Que coincidência – falei.

Ele olhou para os lados. E disse:

– Não é bem coincidência, queria falar com você.

Antes que eu tivesse tempo de construir mentalmente uma narrativa paranoica, ele se apressou a explicar:

– Havia pedido a Alonso que me agendasse uma entrevista com você e achei que fôssemos conversar na segunda, escrevo para uma revista digital, mas Allonso ligou ontem para cancelar a entrevista, dizendo que se quisesse falar com você teria de ser hoje, porque voltaria antes do esperado. Fui ao hotel e o vi sair, mas fiquei com vergonha de interrompê-lo, porque sua família estava junto.

– Você nos seguiu?

– Na verdade, não, escutei quando você perguntava na recepção como chegar ao parque e vim até aqui procurá-lo.

Olhei com exasperação para onde estavam Andreia e as crianças.

– André era meu orientador de tese – disse.

– Como? – exclamei, surpreso.

– André Feraud, você o conheceu, foi um dos organizadores do festival.

Ficamos contemplando um momento um macaquinho calvo do Amazonas que pulava diante de nós.

– Sabe o que aconteceu?

– Sim, que morreu.

– Não morreu – disse, cravando um olhar titubeante nos olhos –, André foi assassinado, da mesma forma que Martín Acuña.

– Disseram que havia se matado.

– É o que dizem, é o que dizem.

Andreia se aproximou, surpresa. Vi-me obrigado a fazer as apresentações, sem nem mesmo saber como o indivíduo se chamava, enquanto ele brincava com as crianças para não ter de revelar o nome.

– Um minuto e não mais o incomodo – disse, repetindo o pedido para Andreia, para que nos deixasse a sós.

Esperou até minha família estar distante o suficiente.

– Preciso falar com você.

Respondi que precisava ir embora.

– Dê-me meia hora e lhe explico tudo. Você pode ajudar a verdade a ser conhecida.

– Não posso – desculpe-me –, vim com minha família para compensar o fato de que tenho viajado muito e não vou deixá-los sozinhos no hotel.

– Tem mais – interrompeu-me.

– Mais o quê?

– Sánchez Cuesta de Salamanca, Eske Rohde da Universidade de Leiden. O de Inga em Austin não está tão claro, mas apostaria que se trata do mesmo.

– O mesmo o quê?

– Passo pelo hotel e lhe explico – respondeu –, na hora em que você quiser.

Obrigou-me a lhe telefonar para que guardasse meu telefone.

– Eu lhe telefono daqui a pouco para chegarmos a um acordo.

– Qual o seu nome?

– Eu lhe digo esta noite.

A próxima vez que soube dele foi através do noticiário.

Esta é a parte mais difícil de escrever, a mais desnecessária, porque todo mundo a conhece: aquele estudante de doutorado em Guadalajara era o mexicano que se jogou da Pont de la Guillotière, na madrugada do domingo 15 de novembro de 2015.
 
III

De volta a Barcelona, reconstruí pela primeira vez para Andreia o relato completo do que havia acontecido.

– Prometa que não vai mais se meter nessa história.

– Eu não me meti em nada.

– Prometa – insistiu.

Eu lhe disse que sim, que não pensava mais em voltar para esse assunto.

– E prometa que não vai mais escrever sobre isso – pediu, assustada.

– Prometo, já disse, prometo.

Para espantar os fantasmas, recorri ao único colega que não iria rir da minha ingenuidade, ou do meu provincianismo, se pedisse sua opinião sobre o que acontecera. Ao contrário do que esperava, Santiago acabou rindo da minha cara, mas, como imaginava, acabou fascinado pela história.

– Você procurou alguma pista na internet, seu preguiçoso? – perguntou enquanto jogávamos pingue-pongue na Gala Placídia.

– Os três morreram – respondi. Sánchez Cuesta e Eske Rohde em 2014. Inga Berg em 2013.

– De que morreram?

– Não sei. Os necrológios das universidades não davam esse tipo de detalhe.

– Mas, se o que você diz é verdade, a internet tem de estar cheia de informação.

– Não encontrei nada.

– Você está procurando errado.

Guardou a raquete na mesa, fez um sinal ao seu filho para que o substituísse e se pôs a fazer uma ligação.

– Para onde vai?

– Tenho um conhecido que pode nos ajudar.

– O que está buscando? – perguntou o “conhecido’ de Santiago do seu sótão em Poble Nou.
Santiago fez um resumo, exageradíssimo, como se estivesse falando de um filme de terror, como se a história, em vez de se parecer com um livro de Bolaño, fosse uma de suas novelas. Ele lhe deu uma folha de papel em que havíamos anotado os nomes de todos os envolvidos, alguns endereços de e-mail que havíamos conseguido nas páginas das universidades na internet.

– Isso não serve de nada – nos disse – você acha mesmo que nomes verdadeiros são usados na deep web?

Nos sugeriu que buscássemos fóruns sobre Juan Rulfo.

– Para ver se vocês entendem – nos disse, com as mãos levantadas sobre o teclado do computador como se fosse começar a tocar piano. Toda a deep web está cifrada, codificada com uma senha. Digam-me palavras relacionadas com Rulfo, quanto mais melhor.

Começamos pelo óbvio, “Macario”, “Luvina”, “Comala”, sem resultados relevantes e seguimos mais um pouco, até que o conhecido de Santiago, exasperado, baixou Pedro Páramo e Chão em chamas e colocou para funcionar um programa de busca que relacionava todas as palavras dos dois livros, deixando de fora apenas as preposições e os advérbios.

– Isso vai demorar, desçam para tomar uma cerveja e voltem em meia hora.

Obedecemos e, ao voltarmos, sua indiferença me fez achar que a busca fracassara. No entanto, havia encontrado algo, mas suponho que esse mundo de conspirações era sua vida comum, seu pão de cada dia.

Havia um fórum criado e administrado em Guadalajara, em Tlajomulco, para sermos exatos, com membros de lugares distintos da Europa, Estados Unidos e América Latina. Era o meio de comunicação de uma seita satânica, fundada por acadêmicos rulfistas do mundo inteiro, sob os preceitos de Pedro Páramo.

– É o típico fórum de uma organização clandestina – comentou o conhecido de Santiago – , disso está cheia a deep web: terroristas, fraudadores, partidos políticos extremistas, seitas apocalípticas, corretores de bolsa.

Santiago pediu que imprimisse as trocas de mensagens do fórum.

– Você assiste a muitos filmes, Santi, não perca seu tempo com isso. Tenho algo melhor. Alguém se descuidou. Sempre há um idiota que se distrai e deixa uma pista à mostra. É assim que a polícia os pega.

Nos entregou um pedaço de papel com uma informação escrita a lápis.

– Memoriza – nos disse – ninguém sai daqui carregando nada.

Li o número, um e-mail, um endereço em Colonia de Las Águilas, em Zapopan.

– Isso lhe diz alguma coisa? – perguntou Santiago.

– Sim.

Aquilo havia acontecido numa outra vida, quando morava em Guadalajara, fazia mais de 20 anos, 22, para ser preciso. Estudava administração de empresas, porque não havia descoberto ainda minha “verdadeira vocação”, e tratava de impressionar a uma colega de universidade, por quem estava interessado. Parte da minha estratégia de sedução, já naquela época, incluía livros, e o que havia escolhido fora Os ensinamentos de Don Juan, de Carlos Castañeda, o que me concederia um ar místico e misterioso e me faria um homem interessante. Mas o tiro saiu pela culatra.

Quando completamos seis meses de namoro, ela me disse que tinha um presente especial para mim, que nos havia inscrito num curso sobre os ensinamentos de Carlos Castañeda. Eu quis corrigi-la, dizendo que, na verdade, os ensinamentos eram de Don Juan, o bruxo yaqui, mas ela me disse que o curso era oferecido por um discípulo de Castañeda. O tema consistia em quatro aulas na cidade, de segunda a quinta, e por acampamento no fim de semana no bosque da Primavera.

Para mim, tudo não passava de uma fraude para arrancar dinheiro das pessoas e tentei fazer com que desistisse da ideia. Impossível, a menos que quisesse terminar o namoro. E, para dizer a verdade, não queria que isso acontecesse, pois estava apaixonado.

O suposto discípulo de Castañeda se chamava Salvador Barba, e, como esperava, não passava de um manipulador. Em outras palavras, estava se preparando para dirigir uma seita. Os fiéis seriam os alunos dos seus cursos, que funcionavam, na verdade, como uma estratégia de recrutamento. Nunca entendi bem como faziam para identificar suas “vítimas”, mas o sistema era bem preciso: ali só chegava gente desesperada, solitária, drogada, doentes terminais, que haviam sofrido tragédias ou que não encontravam o sentido da vida. Ainda assim levaria um bom tempo para que eu descobrisse como minha noiva havia chegado ali, comigo a reboque.

Desiludido desde o início, assumindo uma postura de superioridade cínica, o curso me pareceu uma encenação ridícula, uma mistura de ioga e de técnicas de relaxamento orientais, de calistenia, de magia branca, de indianismo desfigurado, de explorações retiradas do manual dos escoteiros e de Jung e, claro, de Castañeda. Tudo isso era formulado com um discurso motivacional, que ia criando laços de dependência entre os alunos e sobretudo, deles com o líder. O pior de tudo é que fazia efeito: ao fim do acampamento, todos aceitaram continuar com o “treinamento”, expressando publicamente o compromisso de serem fiéis ao grupo e mantendo em segredo tudo que ali ocorrera entre eles. Todos menos eu, é claro.

Diante da minha negativa, Salvador tentou me convencer e, ao ver que seria impossível, passou a me humilhar. Mantive a firmeza, ainda que assustado com a violência desse exercício de manipulação das emoções. Fui expulso como um traidor, tive de voltar para a cidade caminhando, sozinho, deixando minha noiva para trás e perdendo-a para sempre.

No começo de dezembro, viajei ao México para participar da Feira do Livro de Guadalajara. Havia me prometido, e prometido a Andreia, não fazer nada, cortar de uma vez por todas essa narrativa absurda que estava começando a ir longe demais. Mas tudo mudou, quando aterrissei na cidade e tive a certeza da presença de Salvador e da sua influência perversa, fui acometido pela urgência das histórias inacabadas, da necessidade de saber a verdade, de entender e, sobretudo, de fechar uma etapa da minha vida que havia ficado inconclusa desde aquele domingo do bosque de Primavera. Uma das minhas vidas possíveis havia sido truncada naquela tarde, e embora não me arrependesse, muito menos me resignei que alguém tivesse agido de maneira tão arbitrária para tirar-me da trama.

Pedi a Rolando, amigo de toda minha vida, que me levasse ao endereço em Las Águilas e que esperasse do lado de fora, que ficasse alerta se eu demorasse a sair. Eram 10 da manhã de uma quinta, 3 de dezembro de 2015.

– Você demorou a voltar – disse-me Salvador quando abriu a porta – mas voltou, é o que importa.
Deixou a porta aberta e me pediu que o seguisse. Eu tinha a certeza de que era impossível que me reconhecesse, passaram-se mais de 20 anos, eu havia engordado, tinha barba, mudara por completo meu cabelo e minha maneira de vestir. A frase era, imagino, o que Salvador dizia cada vez que abria a porta e não encontrava um de seus discípulos. Em sua mentalidade arrogante de líder de seita, todo aquele que não era um fiel, era um arrependido.

Atravessei o corredor e a sala às escuras, as cortinas estavam fechadas e fui até o pátio traseiro, onde Salvador acabara de se sentar numa cadeira de balanço sob o sol radiante. Não havia outro lugar para sentar, me encostei na parede e passei a observá-lo atentamente. Usava óculos escuros e um rabo de cavalo grisalho com o que sobrava dos seus cabelos. Vestia uma calça que mais parecia um pijama. Estava descalço. Calculei que devia ter uns 60 anos.

– Se você se convertesse ao satanismo – disse, começando o prólogo – suponho que não é muito difícil de entendê-lo, é como dizem: “o dinheiro fala mais alto”. [nota 2]

– Do que você está falando – perguntou-me, sem se mexer da sua insolação.

– Do inferno de Pedro Páramo.

Tirou os óculos escuros para me olhar sem qualquer interferência e se inclinou para frente, interessado.

– Quem lhe mandou até aqui?

– Você não lembra de mim, não é?

– Deveria?

– Na verdade não importa.

Voltou a colocar os óculos e se reclinou na cadeira de balanço.

– Esses filhos da puta ficaram me devendo muito, muito dinheiro – disse.

– Pessoas morreram – disse e me aproximei para analisar sua reação –, pessoas foram sacrificadas.

– Eu não tive nada a ver com isso – defendeu-se –, eu não fazia nada além de organizar o circo.
Inclinou o torso para frente, se levantou e arrastou a cadeira de balanço até a sombra, fugindo de mim.

– Em que você trabalha?

Eu lhe disse que era escritor. Riu de maneira sincera, sem afetações. Atravessei o pátio para também ficar sob a sombra, o sol me atacava com força.

– Você está investigando para escrever um livro? – perguntou –. Não acredite que a verdade seja tão interessante, ela é muito mais mundana do que você pode imaginar. Mas escreva o livro, eu espero que você tire um sarro com esses filhos da mãe.

– E qual é a verdade?

– Qual deveria ser? – disse. Adivinha, escritor, use sua imaginação.

– Fiz um gesto de pressão na língua, forte, para demonstrar que me exasperavam as charadas.

– Agora, suma daqui, que me lembrei de você.

IV

Chegamos a 2017, o ano do centenário de Juan Rulfo e, por alguma estranha razão, talvez, de novo, por haver nascido em Jalisco, ou talvez porque minha última novela tenha recebido um prêmio importante, muitas revistas e jornais do México, da Espanha e de outros países pediram-me textos de homenagem. Neguei a maioria dos pedidos, evitei falar do tema, especialmente quando havia um evidente ânimo de censura contra toda exegese ou leitura que fugisse do “autorizado”.
Escrevi essas páginas sabendo que não me atreveria a publicá-las nunca.