Imprensa brasileira esconde a América Latina popular

Em livro lançado nesta quarta-feira (10), o pesquisador da USP Alexandre Barbosa analisa como e porque o continente foi condenado à solidão pelo jornalismo brasileiro.

Por Marcelle Souza, da Calle 2

Alexandre barbosa - usp

Foi na adolescência que o agora professor e pesquisador Alexandre Barbosa sentiu o início do pulsar do seu instinto latino-americano: consumia roupas, músicas, livros e tudo mais que o fizesse alimentar a nova paixão. Se no início da década de 1990 o intrigava que os amigos desconhecessem a cultura da região, dez anos depois ele perceberia que o mesmo silêncio caracterizava a cobertura dos jornais, que não retratavam a diversidade e a riqueza que o encantava.

“O que está ausente do noticiário é a América Latina Popular (proletária, camponesa, indígena, negra, mestiça). A América Latina Oficial, com todos os gabinetes presidenciais, suas produções culturais inseridas na indústria cultural de massa e seus números resultantes das negociações comerciais, já tem sua fatia garantida”, diz.

Mestre e doutor pela USP (Universidade de São Paulo), Barbosa lança nesta quarta-feira (10) o livro “A Solidão da América Latina na Indústria Jornalística Brasileira”, publicado pela Alexa Cultural (veja detalhes do lançamento abaixo). Segundo o autor, o silêncio da região na mídia é fruto tanto de uma construção histórico-cultural, marcada por um Brasil que não se vê latino-americano e voltado para a indústria cultural estadunidense, quanto de processos jornalísticos viciados por fórmulas e processos que se transformam em verdadeiros muros para as pautas sobre a região.

Em entrevista à Calle2, Barbosa fala sobre os obstáculos estabelecidos para esse tipo de cobertura e os desafios enfrentados pelos meios que se despem dos preconceitos para dar mais visibilidade às pautas sobre a América Latina. Além disso, elogia meios que tentam romper com essa solidão latino-americana, como a revista Calle2 e o site Opera Mundi.

O que lhe levou a pesquisar o tratamento da imprensa do Brasil sobre a América Latina?

Desde que acabei o ensino médio, em 1993, eu nutria grande paixão pela América Latina em vários aspectos (música, história, as lutas populares, gastronomia) e me incomodava a raridade em encontrar informações consistentes sobre a região.

O Brasil faz parte da América Latina, mas se dizer latino-americano e brasileiro soava como paradoxo. Isso me inquietou durante toda a graduação e, na pós-graduação, essa inquietação começou a beirar a indignação e propus, como trabalho de conclusão, um veículo de comunicação voltado para a América Latina.

A dificuldade de fundamentação teórica sobre a integração do continente me levou a estudar o tratamento da imprensa no mestrado e a pesquisa resultou nesse livro.

Por que você diz no livro que a América Latina e as periferias do Brasil são tratadas da mesma forma pela imprensa?

No processo de seleção e construção das notícias, há a exclusão e criminalização das periferias, ou seja, as notícias são centradas nos ambientes palacianos, nos acontecimentos dos centros políticos e econômicos. Isso nas diversas editorias, de cultura a esportes, passando por cidades, política e economia. Quando um bairro periférico de uma cidade como São Paulo aparece nas manchetes, geralmente, é com uma notícia ou exótica ou que reforça seu caráter de periferia (violência, precariedade dos serviços públicos, desastres, enchentes, deslizamentos). Dificilmente há uma notícia positiva das periferias.

Na sua opinião, por que o Brasil ainda não se vê como parte da América Latina?

O senso comum atribui ao fato do Brasil falar português, enquanto boa parte fala espanhol. Mas, mesmo não nos sentindo norte-americanos, nossa cultura de massa é muito próxima à estadunidense. E o inglês é uma língua também distante do português.

'O Brasil está de costas para a América Latina por fatores históricos que remontam ao século XIX, quando os britânicos (a potência imperialista da época) não só reprimiam a integração como incentivavam a disputa bélica. Há também o processo de americanização no período entre Guerras, em que a indústria cultural norte-americana foi colocada a serviço do processo de sedução do Brasil para se tornar aliado dos EUA na Segunda Guerra. E esse processo foi concomitante à modernização da indústria jornalística brasileira.'

Além disso há os escassos estudos sobre a região nos nossos programas de história. Eu fui bolsista numa escola particular de ponta da região do ABC. Meus professores de história foram excelentes, mas lembro de só estudar Simón Bolívar na 7ª série, em um ponto sobre a independência da “América Espanhola” e antes, uma aula sobre civilizações pré-colombianas. Da mesma forma, na literatura, fui conhecer Gabriel Garcia Márquez depois da graduação. Ainda que, para ser justo, li “As Veias Abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano, na 8ª série.

Você cita que editores de grandes veículos costumam afirmar, numa avaliação imediata, que matérias sobre a América Latina não interessam ao público. Você acha que há espaço para essas reportagens na imprensa?

É um vício da nossa profissão atribuir toda sorte de desculpas ao público. Felizmente, já há diversos estudos que mostram que o público não só reage, como também pode ser “educado” para compreender os meios de comunicação. É um alívio perceber que há espaço para programação com mais reflexão. Trazendo para a América Latina, um editor disse durante a pesquisa que notícias do Uruguai, normalmente, não interessam. Ele usou essa figura para dar exemplo de uma nação que não era protagonista das relações comerciais, nem potência militar, ainda dentro de critérios de noticiabilidade políticos e econômicos. Mas o Uruguai despertou muito interesse, ainda que por um fato “espetacular”, por causa da legalização do uso recreativo da maconha e pela notoriedade do [ex-presidente José] Mujica. Mas isso abriria espaço para uma reportagem mais interpretativa sobre a sociedade uruguaia e sua história. O que permitiu a eleição desse presidente e a aprovação dessas medidas? Por que é um país com população tão pequena e com tantos expatriados? E como estão os índices hoje? As perguntas existem, mas se as redações continuarem dependentes do material das agências de notícias fica muito difícil encontrar espaço.

Você explica a solidão da América Latina a partir de dois eixos: um histórico-cultural e o outro do contexto de produção jornalística no Brasil. Nesse cenário, onde estão as possibilidades de boas reportagens sobre a região?

O primeiro passo é diminuir a dependência das agências internacionais de notícias. Manter correspondentes é muito caro, então muitos veículos recorrem aos despachos das agências. Mas as notícias resultantes deste processo são o filtro do filtro. Um correspondente teria um olhar latino-americano dentro da América Latina. Hoje, os veículos adotaram algumas estratégias para compensar a ausência desses profissionais, que é a figura do colaborador. O triste é que o aumento de colaboradores contribui também para a precarização da profissão, mas, pelo menos, foi um avanço para os veículos com menor poder econômico de ter olhares diferentes das agências de notícias..

Um repórter sensível é suficiente para romper a invisibilidade dos países sul-americanos nos meios de comunicação do Brasil?

Não, infelizmente um repórter com essa sensibilidade não seria capaz de romper essa solidão.
'A solidão da América Latina na indústria jornalística é consequência tanto do contexto social e histórico quanto das próprias rotinas jornalísticas. E são nesses dois campos que mudanças precisam ser feitas. A sobrevivência do jornalismo está em formas mais criativas de contar as histórias, de não ficar apenas no ‘declaracionismo’ e de colocar a reportagem além dos ambientes palacianos.'

Mas as mudanças mais estruturais teriam de vir no campo da educação. Enquanto a América Latina não for tema de estudos, desde o ensino básico, ela continuará na solidão.

Você escreveu o livro em 2007. Acha que de lá para cá essa situação de isolamento da América Latina na imprensa mudou um pouco? Em que direção? Você é otimista em relação ao futuro desse tipo de cobertura no Brasil?

Para essa edição, eu fiz uma breve atualização, principalmente sobre os meios de comunicação alternativos. Quando comecei a pesquisa ainda havia certo deslumbre com a capacidade de a Internet ser um amplo espaço de produção e consumo de informações. A febre das redes sociais mudou muito esse panorama. Mas, nos últimos dois anos, surgiram outras iniciativas, dentro do que apontei como novas formas de contar histórias e que encontraram terreno fértil na Internet. A Calle2 mesmo é um belo exemplo, sem querer fazer média. O Opera Mundi, a Carta Maior, a Adital são outros. Hoje há muita coisa em sites e blogs pessoais. Posso citar também o projeto Colabora, que apesar de focar na economia sustentável e no terceiro setor, procura trazer pautas de outras editorias relacionadas à temática. Mas a Calle2 se diferencia pela proposta editorial. Além destes veículos, há a imprensa ligada às classes populares, com os meios de comunicação do MST. Nesta parte da imprensa, a América Latina não está solitária. Os problemas desses veículos ainda são o financiamento e o alcance. Mas nem que seja para garantir a própria sobrevivência do jornalismo, sou otimista que novas ideias e projetos surgirão. E cabe aos acadêmicos também contribuir com pesquisas sobre a imprensa alternativa para que possam escapar das armadilhas das formas de financiamento. Esse é o grande desafio dos próximos anos.