Guadalupe Carniel: É russo!

O 9 de maio é um dia importante não só para a Rússia, mas para o mundo. Nesta data comemora-se o aniversário da vitória na Grande Guerra Patriótica, quando os nazistas foram derrotados. O Dia da Vitória (Dien Pobiedy), como é chamado, é comemorado na Praça Vermelha com tanques, desfiles e para o povo russo é uma das datas mais importantes da sua história.

Equipe soviética de futebol campeã da Eurocopa de 1960

Por isso, nada mais justo falar do futebol daquele país, que em pouco mais de um ano receberá a Copa, o maior evento do esporte, e já este ano sediará a Copa das Confederações. O país tem proporções continentais e ama o futebol assim como o Brasil.

Atualmente é uma das ligas mais ricas, já que na Rússia não faltam milionários pra investir. Mas as semelhanças param por aí. O único título do país é a Eurocopa de 1960, quando ainda era CCCP (Sigla no alfabeto cirílico para União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). E talvez seu jogador mais memorável de todos é Lev Iáchin (foto), o grande goleiro apelidado de aranha (ou pantera se for na Europa) negra, longe de ser algum artilheiro, mas com feitos tão incríveis quanto: 270 jogos sem levar gols, defendeu 150 penais e participou de 4 Copas (1958, 1962, 1966 e 1970).

Se hoje em dia falamos tanto de clubes como CSKA Moscou e Zenit, clubes que venceram a Copa da UEFA, até o fim da URSS os ditos "grandes", dentro da República Socialista Soviética Federada Russa (precursora da atual Rússia), eram formados por Spartak, Dinamo, CSKA, Lokomotiv e Torpedo, todos de Moscou.

Atualmente, dessa lista o Torpedo foi extinto. Seu retorno emula o que aconteceu com alguns clubes brasileiros, como a Ferroviária e o Novorizontino, que não têm nada a ver com seus ancestrais. Este Torpedo atual é considerado apenas um clube tradicional, já que está na segunda divisão e que assim como aqui, consideram grandes os clubes da primeira divisão.

No seu lugar, nessa lista dos maiores, entraram clubes de outras cidades como o Rubin de Kazan e Zenit, de São Petesburgo (que pelas últimas pesquisas detém a maior torcida do país). O Zenit, que pertencia à indústria de armamentos soviética e tem várias "filiais" na ex-URSS, foi campeão soviético em 1984 mas era considerado um azarão. O sucesso atual dele se deve a fatores como o financeiro, título continental e por ser um clube de fora de Moscou, que torcedores de outras cidades (principalmente as separatistas que não suportam a capital) adotam para torcer quando elas não têm clubes na primeira divisão. Isso faz com que as torcidas dos clubes moscovitas se concentrem apenas nessa cidade, onde a maior torcida é a do Spartak.

A história do futebol lá se divide em duas partes. A do período soviético, com a hegemonia do ucraniano Dinamo (13 títulos), mas com um equilíbrio grande entre o "trio de ferro" moscovita: Spartak com 12 títulos, Dínamo com 11 e CSKA com 7. O CSKA, por sinal, é o último campeão soviético, em 1991. A história por lá começou parecida com a de todo o resto do mundo: ingleses e cidade portuária. No caso, São Petersburgo em 1862 e logo depois, em 1864, é a vez de Moscou. Mas ele começou na clandestinidade, entre operários. Só começa a se popularizar em 1910. O esporte vivia na linha tênue entre ser uma manipulação ou servir de instrumento para mobilizar a população à prática esportiva coletiva e consequentemente à preparação militar.

A partir do período soviético, os clubes passam a ser propriedades de diversos setores da indústria, do comércio ou das forças armadas. Um dos mais famosos é o Dinamo, que tem sua origem em um clube chamado Orekhovo, de trabalhadores da indústria têxtil, mas que no período socialista passa a pertencer ao Ministério do Interior, que englobava as polícias do país. Cada república soviética tem o seu Dinamo e três deles se tornaram muito famosos, o de Moscou, o de Kíev e o de Tblissi.

A sociedade intitulada Lokomotiv tem origem no setor ferroviário, enquanto o Spartak tem como mantenedores vários setores da indústria e do comércio. Apesar da história contar que o Spartak era o clube da "oposição popular", ele sempre foi ligado à alta cúpula do país. Sua história é altamente ligada aos irmãos Starostin, que durante os tempos soviéticos oscilavam entre as graças dos líderes às prisões. Um dos seus torcedores mais ilustres, de hoje, é o chanceler Serguei Lavrov. Os Torpedo eram ligados à indústria automobilística e os Asas dos Sovietes (Krílya Sovietov) eram ligados à indústria aeronáutica.

A seleção que nasceu em 1911 (o país se filiou à FIFA em 1910) até 1952 não tem grandes feitos para contar, já que o máximo que protagonizava eram jogos amistosos, que literalmente serviam apenas para manter as relações diplomáticas. A URSS até então mantinha uma posição de isolamento em relação à participação de seus atletas nas competições internacionais. Mas a partir da Olimpíada de Helsinque a seleção soviética começa a aparecer. Em 1956 conquista o ouro. Em 1958 consegue a vaga para a Copa do Mundo. Apesar de não ter conquistado nada significativo, exceto a Eurocopa de 1960 e os jogos olímpicos de 1956 e 1988, sempre foi considerada uma seleção forte.

O Campeonato Russo (Vyshaia Liga) iniciou-se a partir de 1992 e sua liderança não mudou muito: em 25 edições o Spartak continua reinando, com 10 títulos. Depois dele vem o CSKA (6), o Zenit (4), o Rubin Kazan (2), o Lokomotiv Moscou (2) e o Alania Vladikavkaz (1) (antigo Spartak Vladikavkaz, faliu em 2010). Umas das maiores forças da ex-URSS, o Dinamo, jamais venceu o Russo e hoje disputa a segunda divisão.

O maior clássico de todos é Spartak versus CSKA, também conhecido como o Grande Clássico Moscovita. Com o fim da maior rivalidade da era soviética, que envolvia o Dinamo Kíev e o Spartak Moscou, na Rússia capitalista cria-se uma nova rivalidade, entre o time do povo e os "cavalos". Tudo começa pelas origens dos times. O Spartak é o time que foi fundado num bairro de operários russos, o Krasnaya Presnia, é apelidado de "time do povo" e só conseguiu ter um estádio em 2014. Antes mandava jogos no parque Lujniki (antigo estádio Lênin, construído para o Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes em meados dos anos 1950), na margem do rio Moscou. Fundado em 1922 por Nikolai Starostin, teve como nomes Krásnaia Présnia, Pichtcheviki e Promcooperatsia, até 1935, quando a sociedade adota o nome de Spartak, inspirada em Espártaco, líder de uma revolta de escravos contra o Império Romano.

Os adversários chamam os seus torcedores de "carniças" (Miaso), por causa de um dos setores que mantinha o clube, o da indústria da carne. O seu rival, o CSKA (Clube Central Esportivo do Exército) é o clube "dos soldados". Originou-se nas forças armadas soviéticas e tem "partes" espalhadas por toda a ex-União Soviética. Outros clubes europeus foram criados sob sua inspiração, como o CSKA de Sófia (Bulgária), o Steaua de Bucareste (Romênia), o Dukla Praga (Tchéquia) e o Estrela Vermelha, de Belgrado (Sérvia)

Chamado pejorativamente de "cavalo" pelos adversários, por ser o animal que era usado pelos soldados no início do estado soviético, tem grande apelo popular na cidade. Como o Palmeiras no Brasil, sua torcida acabou adotando o cavalo como símbolo. Mas não se deixe levar pelas origens: a grande maioria dos torcedores dos times russos, sem excessão, são hoje defensores do nacionalismo, do pan-eslavismo e do neofascismo. Os torcedores do Spartak de Moscou, por exemplo, têm alianças com clubes como o Estrela Vermelha sérvio e o Olympiacos grego, por causa da religião ortodoxa. O Zenit de São Petersburgo é notório por seus torcedores racistas.

Okolo Futbola (Sobre o futebol) é um dos filmes mais interessantes pra quem curte um pouco de cultura de arquibancada. Ele conta um pouco sobre a relação dos hooligans russos (eu não acho que a expressão hooligan caiba bem para um russo ainda) e o Spartak. Logo no começo mostra uma briga de spartakistas com os torcedores do CSKA dentro do metrô de Moscou. O filme é dividido em duas partes:

Portanto, não se engane. A Rússia vai bem além de vodka e bons escritores.