O diálogo estabelecido por Noel Rosa em sua canção

Em suas canções, Noel Rosa estabelecia um diálogo com seus interlocutores − entre eles, o garçom, os companheiros de bar, a mulher amada e demais personagens que ele identificava em seu universo, a Vila Isabel, bairro do Rio de Janeiro.

Por Tatiana Tavares da Silva

Noel Rosa - Arpa Cartum

Desde adolescente, Noel gostava de viver a Vila Isabel, andar pelas ruas, conversar com as pessoas, sentar nos botequins, montar rodas de samba. Foi na Vila Isabel que Noel conheceu o personagem que mais tarde iria adotar em grande parte de suas canções, o malandro. Mas não só ele. Segundo Máximo e Didier (1990, p. 39), Noel costumava dividir os personagens do bairro, e consequentemente suas canções, em: os institucionais (padre, médico, professora), os marginais (bicheiro, malandro, seresteiro, desempregado crônico, carteador, valentão, vigarista) e os demais (grande maioria das pessoas comuns, que não se encaixavam nos dois grupos anteriores, como a dona de casa, o pai de família e o estudante).

De todos os bairros do Rio, desde os que se banham pelo mar aos que se perdem nas lonjuras dos subúrbios, poucos terão população tão múltipla, tão diversificada, como a Vila Isabel das quatro primeiras décadas do século. Em quanto mais será possível encontrar, convivendo nas mesmas ruas, bebendo nos mesmos botequins, participando das mesmas atividades, tantos e tão diferentes espécimes da chamada “fauna carioca”? Em que outro se verá elenco tão numeroso de homens e mulheres a representar, na ribalta das esquinas, o drama, a tragédia, a farsa de todos os dias? Embora Noel, ao crescer, vá se ajustar perfeitamente àquilo que João do Rio chamou de flâneur, um carioca a percorrer todos os cantos da cidade, espiando, farejando, perguntando, ouvindo, intuindo, conjecturando, descobrindo gente e aprendendo assim a psicologia das ruas, é aqui, em Vila Isabel, que ele começa a conhecer os personagens de sua história (MÁXIMO e DIDIER, 1990, págs. 38 e 39).

No livro A Construção do Samba (MAMELUCO, 2007), citando obra de Lúcio Rangel, Jorge Caldeira lembra uma explicação dada pelo próprio Noel sobre as razões que o carregaram até o samba:

“Eu tinha um objetivo, ou seja, o objetivo de conquistar, de golpe, com uma única melodia, o coração das ruas, a alma da cidade. Queria que meus ritmos dominassem, que eletrizassem os músculos, que influíssem decisivamente nos movimentos das multidões. Mas para isso era imprescindível uma música ao sabor de todas as sensibilidades e cujo ritmo se integrasse, naturalmente, à construção física do carioca” (Noel Rosa, In: RANGEL, 1962, p. 82).

O que nos interessa aqui é justamente pontuar esses interlocutores da canção de Noel Rosa, analisando a presença da função conativa na obra do Poeta da Vila. No texto “Linguística e Poética”1, Roman Jakobson nos mostra as funções da linguagem e quais situações podem identificar cada uma delas. Se faz necessário ver a questão de forma panorâmica para depois nos aprofundarmos na função conativa, uma das funções da linguagem e aquela que pode ser encontrada com frequência na obra de Noel Rosa.

No esquema criado por Jakobson, o contexto assume a função referencial, ou alguém ou algo do qual se fala; o remetente atua como a função emotiva, ou seja, a expressão direta da atitude de quem fala em relação àquilo do que está falando e pode ser representado pela interjeição; o destinatário, que representa a função conativa, aquela ligada ao interlocutor e que está exposta, principalmente, através dos vocativos e dos imperativos; o contato tem a função fática, ou seja, o diálogo com o propósito de prolongar a comunicação; o código assume a função metalinguística; e, finalmente, a mensagem e sua função poética.

O remetente envia uma mensagem ao destinatário. Para ser eficaz, a mensagem requer um contexto a que se refere (ou “referente”, em outra nomenclatura algo ambígua), apreensível pelo destinatário, e que seja verbal ou suscetível de verbalização; um código total ou parcialmente comum ao remetente e ao destinatário (ou, em outras palavras, ao codificador e ao decodificador da mensagem); e, finalmente, um contacto, um canal físico e uma conexão psicológica entre o remetente e o destinatário, que os capacite a ambos a entrarem e permanecerem em comunicação. (JAKOBSON, p. 123)

A função conativa, ligada ao destinatário e representada pelas expressões gramaticais que estão no vocativo e no imperativo, é a que nos interessa aqui.

A orientação para o destinatário, a função conativa, encontra sua expressão gramatical mais pura no vocativo e no imperativo, que sintática, morfológica e amiúde até fonologicamente, se afastam das outras categorias nominais verbais. (JAKOBSON, p. 125)

Em “Feitiço da Vila”, canção que demonstra o ufanismo de Noel em relação ao seu bairro no Rio, a Vila Isabel, o destinatário aparece em duas figuras: o Sol e Meus senhores.

Quem nasce lá na Vila Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos Do arvoredo
E faz a lua Nascer mais cedo

Lá em Vila Isabel Quem é bacharel
Não tem medo de bamba São Paulo dá café, Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba

A Vila tem
Um feitiço sem farofa Sem vela e sem vintém Que nos faz bem…
Tendo nome de princesa Transformou o samba Num feitiço decente Que prende a gente…

O sol na Vila é triste Samba não assiste Porque a gente implora: Sol, pelo amor de Deus Não venha agora

Que as morenas Vão logo embora!
(NOEL, 1934, “Feitiço da Vila”)

O sol assume a função conativa com um tipo específico: a função mágica ou encantatória. Segundo Jakobson, ela é a “conversão de uma terceira pessoa ausente ou inanimada em destinatário de uma mensagem conativa” (JAKOBSON, p. 126). Os versos “Sol, pelo amor de Deus / Não venha agora / Que as morenas / Vão logo embora!” retrata também o contexto da situação e do cenário narrados. Neste caminho, podemos dizer que os versos são a reprodução da função conativa dentro da função referencial.

Eu sei por onde passo Sei tudo que faço
Paixão não me aniquila… Mas tenho que dizer: Modéstia à parte,
Meus senhores,
Eu sou da Vila

(NOEL, 1934, “Feitiço da Vila”)

Os versos finais indicam novamente a função conativa, colocando como destinatário “Meus senhores”. Ao mesmo tempo, são esses versos que encaixam toda a canção dentro da função conativa, pois percebemos que a mensagem foi inteiramente dirigida aos “Meus senhores”.

Noel trabalha, em “Feitiço da Vila”, com dois registros quando faz uso da função conativa: o primeiro transcendental/ místico/ vertical, quando o cancionista conversa com o Sol, e o outro realista / social / horizontal, quando Noel se refere aos “Meus senhores”. A canção ainda expõe o significado da palavra “feitiço” de forma diversa do conhecimento do senso comum. Aqui, “feitiço” está num patamar aceitável, de classe média, longe do sentido envolvido na temática do candomblé, no que se refere a Vila Isabel. Feitiço, para Noel, é o encantamento que a Vila Isabel provoca em seus moradores e em quem a conhece.

Em “Conversa de Botequim”, Noel Rosa se coloca na posição de um malandro que, sentado à mesa de um bar, manda e desmanda no garçom. Ambos pobres diabos, malandro e garçom, que aqui estão posicionados verticalmente: um é freguês, o outro o serve. Mas como malandro que é malandro sabe que para se conseguir as coisas é preciso muito jeito, o personagem da canção de Noel prefere dizer “por favor” ao garçom do que travar uma batalha de posição social – até porque a diferença entre eles é circunstancial, muito provavelmente ambos moram na mesa casa e dividem o mesmo bonde para chegar lá.

Construída por completo dentro da função conativa, “Conversa de Botequim” tem, dessa forma, o garçom como interlocutor do narrador:

Seu garçom, faça o favor De me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada, Um pão bem quente com manteiga à beça,
Um guardanapo
(E) um copo d'água bem gelada. Feche a porta da direita
Com muito cuidado Pois não estou disposto A ficar exposto ao sol.
Vá perguntar ao seu freguês do lado Qual foi o resultado do futebol.

(NOEL, 1935, “Conversa de Botequim”)

Ao ser identificado como interlocutor do eu-lírico em “Conversa de Botequim”, o garçom é o vocativo no qual está representada a função conativa. O imperativo também aparece nesta canção, em versos como “Faça o favor de me trazer depressa / Uma boa média que não seja requentada” – a relação entre o narrador/cliente do bar e o garçom se dá sob a forma imperativa, em que o primeiro dá ordens ao segundo:

Se você ficar limpando a mesa,
Não me levanto nem pago a despesa. Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro Um envelope e um cartão.
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos. Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste uma revista Um isqueiro e um cinzeiro.

Telefone ao menos uma vez Para 34-4333
E ordene ao Seu Osório
Que me mande um guarda-chuva Aqui pro nosso escritório
Seu garçom me empresta algum dinheiro Que eu deixei o meu com o bicheiro,
Vá dizer ao seu gerente Que pendure essa despesa No cabide ali em frente.

Seu garçom
Faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada Um pão bem quente com manteiga à beça Um guardanapo
Um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado Pois não estou disposto a ficar exposto ao Sol Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol

(NOEL, 1935, “Conversa de Botequim”)

A função conativa na canção de Noel Rosa servia para o cancionista estabelecer uma comunicação com seu interlocutor e, através dessa conversa, fazer uma crônica da cidade e de seus tipos.

Nota

1 JAKOBSON, Roman. Linguistica e Comunicação. São Paulo: Cultrix.

Referências

CALDEIRA, Jorge. A Construção do Samba. São Paulo: Mameluco, 2007.

MATOS, Cláudia. Acertei no Milhar – Samba e Malandragem na Época de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

MÁXIMO, João e DIDIER, Carlos. Noel Rosa – Uma Biografia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1990.

JAKOBSON, Roman. Linguistica e Comunicação. São Paulo: Cultrix. RANGEL, Lúcio. Sambistas e Chorões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1962.